Num contexto polarizado – de beligerância entre grupos políticos e religiosos, contexto em que alguns parecem viver num ambiente dual e, por isso mesmo, reducionista – alguns cristãos parecem tomar a Bíblia por um livro político ou de prescrições morais – o que ela definitivamente não é – e, sob essa perspectiva, deixam de anunciar as boas novas para arvorarem-se à condição de arautos de uma moralidade que não logram êxito em observar (veja Sl 14.2-3; Is 64.6; Rm 3.23; 11.32 e Rm 2.1-3). A Bíblia não constitui, prima facie, um livro de regras religiosas e morais; ela é, essencialmente, a revelação do plano de Deus para o homem: é o anúncio do advento do Salvador.
O Cristianismo, ao contrário do que o contexto atual parece sugerir, não é mero sistema silogístico de regras morais que se deva cumprir. As boas novas não se tratam, primariamente, de um chamado a fazer algo; mas de um chamado a contemplar uma obra já concluída em favor dos homens. Se trata de um convite à contemplação do calvário. “Não vem das obras, para que ninguém se glorie” (Ef 2.9). Se nos propusermos a estabelecer a fé cristã tão somente como um sistema de prescrições morais, estaremos reduzindo o Cristianismo e fiando-nos na tão criticada salvação pelas obras. A prática da fé cristã não está vinculada à mera obediência a regras; o processo é inverso: o amor a Deus e aos seus mandamentos é a causa primeira da consequência prática de uma vida disciplinada e vivida de conformidade com a Escritura.
Em toda ocasião nacional ou cívica esse é o tipo de coisa que se ouve, e são feitos apelos em prol do comportamento, da lealdade para com a pátria, e assim por diante. Isso não é boa nova e, logo, não é o evangelho. Não é a mensagem cristã, mas frequentemente passa como tal. Às vezes se lhe dá o designativo de ‘religião da escola pública’, que é simplesmente um apelo para a boa conduta e para o bom comportamento. Mas isso não é cristianismo. [1]
Liberdade religiosa
Quando falamos em liberdade religiosa, tratamos de um direito fundamental garantido no âmbito do Estado de Direito. Nós, cristãos, vivemos sob a égide de um Estado de Direito. Todavia, esse modelo político pode afetar de alguma forma a expressão da nossa fé? Se sim, como? E, ainda, os cristãos podem afirmar com segurança que a liberdade religiosa lhes é garantida no multiverso de razões que permeiam o ambiente público? Podemos falar daquilo em que cremos sem pressões ou repressões de ordem ideológica?
Liberdade religiosa para quem?
Ao contrário dos judeus do Israel Antigo, os cristãos do nosso tempo não vivem numa teocracia. Em verdade, as mais modernas organizações estatais – notadamente no ocidente – pautam-se pelos ideais da democracia. E, dentre os princípios de uma democracia, encontra-se a laicidade do Estado, que preconiza a impossibilidade de existir uma religião oficial no âmbito de determinada nação. Significa, também, que o Estado é proibido – normalmente por uma Constituição escrita – de privilegiar ou embaraçar o exercício de qualquer religião. É a concretização da efetiva separação entre Igreja e Estado. Por isto, a liberdade religiosa não se dirige apenas a nós e aos nossos, mas a todos aqueles que professam outras religiões; e a igreja cristã deve respeitar o princípio da laicidade, mantendo-se separada institucionalmente do governo. Por vezes há afrontas, é verdade; mas, nestas situações, devemos lembrar que a nossa luta não é “contra carne e sangue” (Ef 6.12).
O discurso cristão no areópago pós-moderno
O fato de, ao menos no quadro ocidental, os cristãos não sofrerem perseguições cruentas – como ocorre, ainda, no Oriente Médio – e não terem suas vidas ceifadas em virtude de sua fé, não implica na inexistência de perseguições de qualquer natureza. Em verdade, no contexto brasileiro, o que poderíamos chamar de perseguição ocorre no âmbito das ideias. Isto porque, conforme asseverou Albert Mohler Jr, “Saímos de um tempo em que era impossível não crer em Deus, passamos por um tempo em que se tornou possível não crer e chegamos, agora, à situação em que, em especial para as elites, se tornou impossível crer.” [2] Assim, no ambiente pós-moderno, as afirmações que levam em conta os pressupostos bíblicos são, de imediato, neutralizadas por objeções já automáticas de quem “se esquece de Deus” (Sl 9.17). Nesse contexto, a liberdade de expressão da fé é, por vezes, tolhida. É semelhante ao que ocorreu com Paulo, no Areópago em Atenas, ao confrontar as crenças estabelecidas dos gregos de seu tempo (At 17.32).
A ideia de uma religião estabelecida
À maioria dos cristãos atuais pode parecer adequada a ideia de o Cristianismo figurar como religião oficial de nosso país. Todavia, a história demonstra que a dissolução da Igreja no Estado não foi bem sucedida, como demonstra R. C. Sproul: “A rainha Maria Tudor é melhor conhecida como Maria, a Sanguinária. Ela recebeu este título porque procurou levar a Inglaterra de volta à Igreja Católica Romana, por meio de um extensivo programa de perseguição contra os protestantes.” [3] É evidente que Deus não deseja que o homem se converta a seus caminhos em virtude da coerção estatal, ou em virtude do amor ao rei; mas pela graça, mediante a fé.
O Cristianismo e os privilégios legislativos
Já pudemos afirmar que Igreja e Estado devem permanecer institucionalmente separados. Todavia, há pessoas que ainda não compreenderam bem essa necessidade. Hoje, no âmbito legislativo, cada grupo social deseja sua própria lei – e essa é a razão de existirem tantas leis no contexto brasileiro – e alguns grupos cristãos não fogem a essa realidade.
É verdade que devemos prezar pelos princípios da Escritura no ambiente público, mas “os cristãos precisam ser muito cuidadosos quanto a tentarem persuadir o magistrado civil a adotar a agenda deles”. [4] Isto porque o Brasil se compromete, desde cedo, com o princípio da laicidade. Ainda mais contundente é a crítica de César Moisés Carvalho: “fico pensando na atuação dos seguidores do Caminho, primeiros discípulos de Jesus, fazendo lobby e tentando infiltrar um representante no senado romano a fim de protegê-los da perseguição estatal. Simplesmente impensável! A fé genuína é vivida em meio à adversidade e oposição (Jo 15.18-23).” [5] Por essa razão, é relevante que lembremos de que a fé cristã deve ser professada não em virtude das circunstâncias, mas a despeito delas. Isto porque as perspectivas dos primeiros seguidores de Cristo já não foram boas (Mt 24.9); o que nos faz pensar que deveríamos esperar melhores condições?
Exerçamos, portanto, a nossa fé em Cristo cada vez mais, dentro e, sobretudo, para além dos muros de nossas congregações; preenchamos os espaços públicos à nossa disposição e apropriemo-nos da liberdade de crença que nos tem sido – até agora – conferida. Anunciemos com ousadia a mensagem de Cristo, que é poderosa para salvar o perdido; tendo em mente que, caso optemos por esperar melhores condições para anunciar a Cristo, talvez elas nunca venham.
BIBLIOGRAFIA:
[1] D. Martyn Lloyd-Jones. Romanos: O Evangelho de Deus, p. 78. [2] MOHLER JR., R. Albert. Ateísmo Remix: um confronto aos novos ateístas, p. 37-38. [3] SPROUL, R. C. Qual é a relação entre Igreja e Estado?, p. 37[4] Idem, p. 40.
[5] CARVALHO, César Moisés. Pentecostalismo e pós-modernidade: quando a experiência sobrepõe-se à teologia, p. 35.
Por Calleb Ribeiro
Fonte: Reação Adventista