“A Bela Arvore: Uma jornada pessoal através de como os povos mais pobres do mundo estão educando a si mesmos” é um daqueles livros que surpreende, alegra e ao mesmo tempo indigna. Escrito pelo educador James Tooley, a obra apresenta uma instigante pesquisa de campo que revela a existência de escolas privadas de baixo custo e boa qualidade em diversas favelas e locais muito pobres ao redor do mundo.[1] Sua pesquisa abrange comunidades em países como Índia, Nigéria, Gana, Quênia e Zimbábue. Essas escolas são “ilegais” por não se adequarem às exigências dos seus respectivos governos estatais. No entanto, os pais preferem que seus filhos estudem nelas porque as consideram melhores que as escolas públicas em qualidade. E o livro mostra que elas de fato são.
Essa é a parte do livro que surpreende e alegra. É bacana descobrir pessoas em diversas partes do mundo que, não obstante a pobreza em que vivem, agem de maneira autônoma em relação ao Estado e conseguem, por si mesmo, resultados mais positivos que os do Estado. No entanto, a obra de Tooley também mostra como que a mentalidade de que o Estado deve prover educação leva a maioria dos teóricos da área a minimizarem o impacto positivo dessas escolas privadas ou mesmo considerar que elas “atrapalham” o Estado. Alguns, inclusive, propõem que os pobres não deveriam ter essa alternativa, pois isso enfraquece o ensino público. Em outras palavras, a defesa de que o Estado deve prover educação desemboca aqui na ideia de que o pobre não deve ter direito de escolher o que prefere para os seus filhos, muito menos de resolver suas próprias demandas.
Um dos pontos altos do livro é que Tooley mescla suas descobertas com sua própria jornada pessoal de alguém que concordava com as teses dominantes de que só o Estado consegue prover educação para os pobres para alguém que já não poderia pensar assim diante do que estava vendo.
Várias reflexões podem ser desenvolvidas a partir desses dados. Uma delas é que a mentalidade estatista é diametralmente oposta à ideia de autonomia dos indivíduos, das famílias e das associações livres. Pensemos mais especificamente nas famílias. Para o estatismo, não são as famílias que devem decidir a melhor forma de educar seus filhos. É o Estado. E mesmo que haja alternativas flagrantemente melhores, o mais importante não é que as famílias escolham a melhor opção, mas que rezem a cartilha do Estado.
Essa mesma mentalidade se vê nas discussões sobre homeschooling (ensino domiciliar). Aqueles que são contrários ao direito natural dos pais optarem por ensinar seus filhos em casa quase sempre ignoram as pesquisas que demonstram o quanto o aprendizado e a socialização dos alunos homeshoollers é, por vezes, superior aos que frequentam escolas regulares. Não importa. No estatismo, o que vale é o controle do Estado sobre a educação e, em última instancia, sobre as decisões que deveriam caber às famílias.
Há várias razões para esse controle. A principal, a meu ver, não tem tanto a ver com o que será ensinado dentro da escola, mas sim com o próprio ato de controlar em si. Para o Estado, é importante que os indivíduos, as famílias e as associações livres não tenham grande autonomia, pois isso gera uma cultura de dependência e até de concordância com o Estado. E é essa cultura que sustenta não só a existência dessa entidade, mas também o seu agigantamento em termos de funções, prerrogativas, arrecadação de impostos, criação de burocracias e ações autoritárias. Em suma, o controle da educação, nesse sentido, é apenas parte de um grande conjunto de outros controles que é fundamental para o Estado ser aceito como necessário, imprescindível, fundamental em todas as áreas da vida.
A segunda razão, agora sim, é o conteúdo em si. Se o Estado tem o controle da educação, pode criar um sistema que dificulte ou até impeça o surgimento de pensadores que põem em cheque a ideologia dominante ou mesmo a estrutura estatal como um todo. Esse ponto não é exclusividade de alguma ideologia ou posição especifica. Qualquer grupo que chegar ao poder na estrutura estatal tenderá a usar a educação para esses fins. Ou seja, a doutrinação dos governantes por meio da educação pode se tornar realidade a partir de comunistas, fascistas, nazistas, positivistas, socialdemocratas, conservadores, católicos, protestantes, islâmicos, etc.
A terceira razão é que dar grande autonomia à indivíduos e famílias é o primeiro passo para fortalecer a livre associação de indivíduos, como igrejas, clubes, instituições de caridade, escolas comunitárias, associações de moradores, etc. E o que todos esses núcleos tem em comum é a capacidade de resolução de problemas de modo autônomo e voluntarista. Para o Estado, que é uma instituição essencialmente baseada em coerção, isso é péssimo, pois enfraquece a ideia de que a melhor forma de resolver as coisas é na base da violência estatal, e assim torna essa estrutura cada vez menos necessária. Em suma, para a sobrevivência do Estado, em especial um Estado grande, pequenos núcleos voluntários não podem ter grande autonomia.
Socialistas marxistas, que levaram o estatismo às últimas consequências, já entendiam isso no século 19. Tomemos dois textos como exemplo. O primeiro leva o título “Os princípios do comunismo”. Foi escrito por Engels no final de outubro de 1847 em uma reunião da Liga dos Comunistas, onde se discutia um projeto de “Confissão de fé comunista”. Sobre a educação pública para as crianças, Engels afirma que ela deve ocorrer “a partir do instante em que [as crianças] possam prescindir dos cuidados maternos, em estabelecimentos nacionais e a cargo do Estado”.[2] O segundo faz parte do livro “O Manifesto do Partido Comunista”, de Marx e Engels. Ele afirma o seguinte sobre a doutrinação das crianças pelo Estado:
“Mas dizeis que abolimos as mais sublimes relações ao substituirmos a educação doméstica pela educação social. E vossa educação, não é ela também determinada pela sociedade? […] Os comunistas não inventaram a influência da sociedade sobre a educação; procuram apenas transformar o seu caráter, arrancando a educação da influência da classe dominante”.[3]
Em outras palavras, a educação estatal é importantíssima para o comunismo, nem tanto por uma preocupação com o acesso das crianças aos estudos, mas muito porque o Estado comunista precisa se certificar que nenhuma família estará dando uma educação “burguesa” ao seu filho. Evidentemente, o princípio serve para qualquer outro tipo de estatismo. É por isso que estatistas odeiam tanto, até hoje, o ensino domiciliar. O ideal estatista é que nossos filhos sejam deixados aos cuidados do Estado desde a mais tenra idade.
Não é à toa que O Manifesto também afirma que uma das medidas básicas do regime seria instituir o trabalho obrigatório igual para todos. Ou seja, a mãe não tinha a opção de só ficar em casa, educando o filho. Ela deveria trabalhar como qualquer outra pessoa e o filho, assim que desmamasse, deveria ser introduzido à educação estatal. Isso é curioso, porque logo em seguida Marx e Engels criticam a burguesia por romperem os laços familiares dos proletários através da exploração que empunham aos mesmos (sobretudo às crianças). O que se está propondo aqui, portanto, é substituir seis por meia dúzia.
Mas em que essas reflexões se relacionam com a fé cristã? Creio que existem alguns pontos importantes de relação. Em primeiro lugar, todo o cristão, sabedor de que a besta será um Estado com poder até para proibir compra e venda de quem não adorá-lo (Ap 13:15-18), deveria se sentir estimulado a lutar o máximo quanto possível pela autonomia do indivíduo, das famílias e das associações livres. Se, por um lado, não temos como fugir do que foi profetizado, por outro lado, é nossa obrigação lutar pelo que é certo e rechaçar o que é errado. Ademais, a profecia não nos impõe o dever de aceitar o pior cenário possível. É possível que nossos esforços criem bolsões de liberdade em alguns locais ou minimizem o autoritarismo do Estado em vários lugares. Lembremo-nos ainda que grandes conquistas (como o fim da escravidão na maior parte do mundo) se deram, em parte, porque cristãos lutaram por isso. Assim, não devemos permitir que a expectativa de uma grande perseguição final nos conduza a concordar com a redução da autonomia dos indivíduos, das famílias e das associações livres.
Em segundo lugar, todo o cristão, sabedor de que Deus é o único criador de todos os homens, deveria perceber que qualquer grupo que se arrogue a proibir direitos naturais ou impor o que vai contra os direitos naturais está usurpando autoridade divina. É por essas e outras coisas que a defesa dos indivíduos e das famílias é tão relevante. Portanto, defender, por exemplo, que os pais tenham o direito de optar pelo homeschooling com seus filhos, ou por escolas comunitárias de baixo custo, ou por escolas privadas confessionais, ou por algum tipo de ensino misto é um dever cristão – ainda que nenhum cristão seja obrigado a concordar com todas essas opções. Liberdade civil de escolha, de opinião e de religião são princípios que fluem da fé cristã bíblica e não podem ser negligenciados.
Em terceiro lugar, é importante perceber que na medida em que o Estado cresce e reduz a autonomia dos indivíduos, das famílias e das associações livres, ele cria uma cultura de acomodação. E assim as Igrejas, as famílias e os indivíduos perdem parte do senso de responsabilidade. Para que se preocupar com a educação dos filhos, dos pequenos crentes, se isso “é” função do Estado? Por que, por exemplo, Igrejas não são como as sinagogas da época de Jesus? Estas eram não apenas locais de culto e oração, mas também escolas. Seu intuito era ajudar a cumprir o mandamento de Deuteronômio 6, alfabetizando crianças para aprenderem a Torah, além de ensinarem outros conhecimentos importantes para a vida. Por que cada Igreja não é uma escola? Por que a educação não é uma das funções das igrejas? É porque o Estado tomou essa função para si. E assim pequenas comunidades, como igrejas, não mais precisam resolver problemas comuns.
Portanto, parece-me que o cristão deve prezar e lutar para ser protagonista da educação dos seus filhos e da sua própria; e defender o direito de todos as pessoas poderem fazer o mesmo. Isso não significa necessariamente ser contra escolas estatais ou mesmo contra o Estado. Eu, particularmente, sou um libertário. Mas aqueles que não seguem essa linha de pensamento ainda assim podem defender a liberdade na educação. A meu ver, todos têm a ganhar com isso. Em especial, os estudantes, pois terão mais opções.
[1] Ler TOOLEY, James. A Bela Árvore: Uma jornada pessoal através de como os povos mais pobres do mundo estão educando a si mesmos. São Paulo: Bunker Editorial, 2020. Livro disponível para compra em: https://www.amazon.com.br/%C3%81rvore-jornada-pessoal-atrav%C3%A9s-educando/dp/8568451055. O site da Amazon permite ler os primeiros capítulos do livro. Vale a pena.
[2] MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; tradução de NOGUEIRA, Marcos Aurélio e KONDER, Leandro. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 102.
[3] Ibdem, p. 62.
Por Davi Caldas
Fonte: Reação Adventista