A origem da meretriz como metáfora

Com base no contraste entre as mulheres simbólicas de Apocalipse 12 e 17 e na constatação de que a mulher pura do capítulo 12 representa o povo fiel da nova aliança, devemos concluir que a meretriz de Apocalipse 17 simboliza a igreja infiel, cujas relações impróprias com “os reis da terra” (verso 2) expõem sua vergonhosa condição, bem como seu ódio a todos os que ameaçarem a estrutura de suas pretensões.

Por isso, embora a meretriz, “com quem se prostituíram os reis da terra”, embriague seus habitantes “com o vinho de sua devassidão”, ela mesma se acha “embriagada com o sangue dos santos e com o sangue das testemunhas de Jesus” (Apocalipse 17:1-2, 6).

Ela efetivamente não é a igreja perseguida, representada pela mulher pura que deu à luz o Messias prometido em meio a grandes dificuldades, foi posteriormente perseguida e fugiu para o deserto, onde ficou fora da vista de seus algozes por 1.260 anos (Apocalipse 12:1-6, 14), mas a igreja perseguidora, que durante esse período oprimiu, com o apoio do poder secular, aqueles que ela considerava hereges.

Diante desse quadro quase surreal, em que professos seguidores de Cristo agem como uma meretriz sedenta de sangue, o apóstolo João não poderia ter reagido de outra forma, a não ser admirar-se “com grande espanto”. E, na verdade, esse quadro é tão espantoso que requer a confirmação de que a grande meretriz simboliza de fato a igreja apóstata.

Para isso, devemos regressar ao Antigo Testamento, à história do povo de Israel, tendo em vista que as expressões e imagens que descrevem a prostituta simbólica de Apocalipse 17 são diretamente extraídas do fracasso de Israel como esposa fiel de Deus.

Antecedentes bíblicos da grande meretriz

Os profetas do Antigo Testamento frequentemente representavam o Israel de Deus por meio da figura de uma mulher virtuosa, “formosa e delicada, a filha de Sião” (Jeremias 6:2).

A respeito de Seu povo, o Senhor declarou: “Desposar-te-ei comigo para sempre; desposar-te-ei comigo em justiça, e em juízo, e em benignidade, e em misericórdias; desposar-te-ei comigo em fidelidade, e conhecerás ao SENHOR” (Oseias 2:19-20).

Deus Se identificou com a “filha de Sião”, então estéril e desamparada, abatida e repudiada, como “o teu marido” e “o teu Redentor” (Isaías 54:1, 5-6)! Vestiu-a com as melhores roupas, adornou-a com os mais belos enfeites, nutriu-a com as mais finas iguarias e a escolheu para ser Sua noiva (Ezequiel 16:8-14).

No entanto, por confiar em sua formosura e orgulhar-se de si mesma, a filha de Sião esqueceu-se de seu marido, entregou-se à lascívia, e ofereceu-se “a todo o que passava, para seres dele” (Ezequiel 16:15).

Jeremias recorreu à mesma linguagem ao se referir à infidelidade do povo de Deus: “Ora, tu te prostituíste com muitos amantes” (Jeremias 3:1), e Isaías exclamou: “Como se fez prostituta a cidade fiel! Ela, que estava cheia de justiça! Nela, habitava a retidão, mas, agora, homicidas” (Isaías 1:21).

Profetizando acerca do reino do Norte, o reino de Israel, Oseias declarou: “O seu proceder não lhes permite voltar para o seu Deus, porque um espírito de prostituição está no meio deles, e não conhecem ao SENHOR” (Oseias 5:4).

E o profeta associa a prostituição à idolatria: “O meu povo consulta o seu pedaço de madeira, e a sua vara lhe dá resposta; porque um espírito de prostituição os enganou, eles, prostituindo-se, abandonaram o seu Deus” (Oseias 4:12).

Ezequiel é o profeta que descreve em tons mais fortes e metáforas marcantes a apostasia do povo de Deus.

No capítulo 16, ele compara Judá ou Jerusalém a uma mulher impura, devassa, que se prostituiu com as nações pagãs, aderiu à sua aviltante idolatria e sacrificou até mesmo os próprios filhos em honra aos seus deuses, tudo para ser “como as nações, como as outras gerações da terra, servindo às árvores e às pedras” (Ezequiel 20:32).

Em Ezequiel 23, o profeta se refere à Samaria e Jerusalém (respectivamente, as capitais do reino do Norte e do Sul) como duas meretrizes, que, inflamando-se pelos seus amantes – as nações estrangeiras com as quais fizeram alianças -, com eles se prostituíram.

Essas expressões e imagens chocantes que descrevem a condição espiritual e moral de Israel e Judá revelam a que ponto pode chegar o professo povo de Deus quando este abandona Seus caminhos e despreza Sua aliança. Os profetas comparam essa infidelidade à prostituição ou adultério.

Vamos refletir um instante sobre isso.

A natureza da primeira promessa divina

O próprio Senhor escolhera Eva como figura da linhagem do povo eleito de Deus, pondo-a em inimizade com a serpente, Satanás, e seus descendentes.

Deus não fez isso porque Eva possuía alguma virtude (na verdade, devido à sua queda, não havia nenhuma), mas por causa do “descendente” prometido, o Messias vindouro, Jesus Cristo (Gênesis 3:15; Gálatas 3:16)!

Satanás presumira que, enganando a Adão e Eva, teria então arrastado para sua causa toda humanidade, colocando-a contra Deus. Não contara, porém, com a providência divina em favor do homem, que o colocaria em posição vantajosa. Tudo que ele havia perdido, rendendo-se a Satanás, poderia ser recuperado por meio de Cristo! [1]

A sentença de Deus contra a “antiga serpente” representou para nossos primeiros pais uma preciosa promessa. Ao predizer em Gênesis 3:15 o dramático conflito entre o homem e Satanás, Deus antecipara também, e sobretudo, o triunfo final do Messias sobre o grande adversário:

Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.

Nunca foi tão claramente evidenciada a inimizade entre Satanás e o Príncipe da vida como quando Cristo Se manifestou entre os homens.

Nunca houve alguém que odiasse mais o pecado como Cristo e que definisse tão perfeitamente a diferença entre a luz e as trevas como Ele o fez. Sua santidade, pureza e imaculada justiça são uma constante reprovação ao mal e ao pecado.

Essa inimizade devia estender-se a toda a humanidade contra Satanás e seus anjos. Ela também determinaria a separação entre os que aceitassem as provisões da graça divina e os que as recusassem.

Por isso, ao contrário da reconciliação efetuada por Cristo na cruz, em que a condição de inimizade entre o homem e Deus por causa do pecado do homem é revertida para uma condição de amizade e comunhão plenas (Romanos 5:11; Efésios 2:12-16), a inimizade a que se refere a sentença de Gênesis 3:15 é irreversível.Não é possível nenhum acordo, nenhuma acomodação entre Cristo e Satanás, entre os legítimos representantes de Jesus e as forças satânicas, visto que a grande controvérsia iniciada no Céu e que envolve o reino de Deus e o reino de Satanás entre os homens decorre dessa inimizade.

A inimizade tem estimulado não só os ataques contínuos ao povo de Deus da parte daqueles que servem aos interesses de Satanás (II Timóteo 3:12-13), mas também e, sobretudo, o conflito íntimo, pessoal, em que o crente se vê em permanente luta com sua disposição natural para o pecado (Romanos 7:18-25; 8:7-8; I Coríntios 9:27).

Em sua decidida inimizade e rebelião contra o Filho de Deus, a “antiga serpente” não pôde tocar-lhe a cabeça.

No entanto, ele está determinado a tocar a mente dos seguidores de Jesus, de modo a estimular a inimizade que há no coração humano caído para resistir à salvação proporcionada a um custo imensurável.

Somente o Autor da promessa feita no Éden pode implantar no coração a inimizade contra Satanás e o pecado, despertando na alma a firme convicção de sua própria pecaminosidade e o propósito de viver segundo a vontade de Deus (Ezequiel 36:26-27)!

A aliança de Deus com Seu povo

A inimizade entre a serpente e a mulher é a primeira e mais fundamental linha divisória entre o erro e a verdade, entre os representantes de Satanás e os representantes de Cristo. Dessa inimizade derivam todas as demais alianças, promessas e condenações do Antigo e do Novo Testamento.

Não é por acaso, portanto, que a exortação mais frequente em toda a Escritura se refira à necessária distinção que deve existir entre os que professam o nome do Senhor e os que O negam.

Essa inimizade sentenciada por Deus em Sua promessa no Éden exige tal distinção ou separação, e ela tem existido desde a queda de Satanás.

Ignorá-la ou simplesmente rejeitá-la por meio de qualquer acordo ou ajuste estranho ao concerto original que Deus firmou com Sua igreja é considerado por Ele um ato de traição comparável à infidelidade conjugal!

Em Êxodo 19:5-6, Deus declarou a respeito de Israel (note as palavras):

Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, então, sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos; porque toda a terra é minha; vós me sereis reino de sacerdotes e nação santa.

As expressões “propriedade peculiar” e “reino de sacerdotes” se referem à santidade do chamado e da missão. Israel deveria ser um povo santo (Deuteronômio 7:6; 14:2; 26:18-19) e nação sacerdotal e santa, “ministros de nosso Deus” (Isaías 61:6).

Pedro aplicou os mesmos conceitos à igreja cristã, o novo Israel do Senhor (I Pedro 2:9)!

Portanto, em virtude do concerto divino com os filhos de Israel, Deus os advertiu expressamente a absterem-se “de fazer aliança com os moradores da terra para onde vais”, e “não suceda que, em se prostituindo eles com os deuses e lhes sacrificando, alguém te convide, e comas dos seus sacrifícios” (Êxodo 34:12-16).

O Senhor também instruiu os sacerdotes do povo sobre sua conduta, “para fazerdes diferença entre o santo e o profano e entre o imundo e o limpo” (Levítico 10:10), e recordou-lhes mais tarde sua principal tarefa: “A meu povo ensinarão a distinguir entre o santo e o profano e o farão discernir entre o imundo e o limpo” (Ezequiel 44:23).

A mesma instrução é dada à igreja cristã. Jesus mesmo advertiu: “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro” (Mateus 6:24).

Paulo declarou: “Não vos ponhais em jugo desigual com os incrédulos; porquanto que sociedade pode haver entre a justiça e a iniquidade? Ou que comunhão, da luz com as trevas? Que harmonia, entre Cristo e o Maligno? Ou que união, do crente com o incrédulo? Que ligação há entre o santuário de Deus e os ídolos?” (II Coríntios 6:14-18).

E Tiago, num tom vigoroso, também escreveu: “Infiéis, não compreendeis que a amizade do mundo é inimiga de Deus? Aquele, pois, que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus” (Tiago 4:4).

Assim como Cristo e o mundo não constituem sociedade, não pode haver da parte de Sua igreja nenhum compromisso com os poderes das trevas, nenhuma amizade ou comunhão (João 17:14-16).

A infidelidade do povo de Deus

É com base nesse ponto – a necessária distinção que deve haver entre o crente e o descrente – que devemos entender a terrível condição da igreja em Apocalipse 17.

Voltemos novamente à história de Israel.

Os profetas de Deus usam a figura da meretriz para acusar a infiel companheira da aliança do Senhor da mais vil e degradante depravação sexual, que consiste na amizade que ela mantém com as nações estrangeiras e sua idolatria, resultando nos piores males, como opressão, injustiça e até mesmo o assassinato dos próprios filhos.

Note que a meretriz do tempo do fim é acusada da mesma infidelidade e idolatria e dos mesmos crimes hediondos (Apocalipse 17:1-2, 4, 6), razão pela qual João recorre à história de Israel para descrever a condição da igreja cristã. [2]

Para usar as palavras de Hans K. LaRondelle, assim como a antiga Jerusalém se tornou inimiga de Jeová, a igreja institucional seria infiel a Cristo, apóstata em seu culto de adoração, e sedenta do sangue de todos os que se recusassem prostrar-se perante ela e sua “marca” de adoração.

É possível, não obstante, identificar bíblica e historicamente a origem dessa infidelidade e apostasia da igreja cristã, cujas características apresentam um paralelo notável com a degradação espiritual e moral do antigo Israel?

Sim, certamente. E este será o assunto de nossos próximos artigos.

Notas e referências

1. Ellen G. White. Educação, p. 27.

2. Em As Profecias do Tempo do Fim, Hans K. LaRondelle faz uma análise bastante instrutiva sobre a maneira como João usa a meretriz de Apocalipse 17 como um antítipo da infidelidade de Israel. Confira no capítulo XXX – A Sétima Praga: A Retribuição de Babilônia – Apocalipse 17.

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Fonte: As Três Mensagens


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Sobre Weleson Fernandes

Evangelista da Igreja Adventista do sétimo dia, analista financeiro, formado em gestão financeira, pós graduado em controladoria de finanças, graduado em Teologia para Evangelistas pela Universidade Adventista de São Paulo. Autor de livros e de artigos, colunista no Blog Sétimo dia, Jovens Adventista. Tem participado como palestrante em seminários e em Conferências de evangelismo. Casado com Shirlene, é pai de três filhos.

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