Daniel 9 começa com uma das orações mais expressivas da Bíblia, uma oração em que o profeta se identifica com o seu povo pecaminoso e roga fervorosamente a Deus para perdoá-lo e abençoá-lo.
Não é pela nobreza de seu caráter que Daniel age assim, em profunda contrição por si mesmo e pelos seus concidadãos, mas pelo reconhecimento sincero de que sem a misericórdia e o perdão de Deus não há qualquer esperança para o homem.
Por isso, na oração de Daniel não existe qualquer tentativa de desculpar ou esconder o pecado. A variedade de termos presentes que denotam os diferentes tipos de pecado e de rebelião é uma demonstração vívida de que a confissão de Daniel apresenta as coisas como elas são realmente, sem a intenção de abrandá-las ou minimizá-las. Sua oração é uma lembrança permanente do quanto necessitamos da misericórdia e da graça, como são reveladas na cruz.
Orando e obtendo resposta
Em sua confissão cheia de arrependimento e esperança de alcançar o favor divino, Daniel não apresenta uma única nota de murmuração pela situação desfavorável em que se encontrava o seu povo. O profeta não pergunta a Deus os por quês nem os para quês. Ele sabia a verdadeira causa:
Temos pecado e cometido iniquidades, procedemos perversamente e fomos rebeldes, apartando-nos dos teus mandamentos e dos teus juízos…
… por causa dos nossos pecados e por causa das iniquidades de nossos pais, se tornaram Jerusalém e o teu povo opróbrio para todos os que estão em redor de nós. (Daniel 9: 5 e 16)
Daniel não questiona a Deus nem espera explicações. Na verdade, a única ocasião em que vemos o profeta sem entender algo foi no final do capítulo 8, com relação à visão da tarde e da manhã:
Eu, Daniel, enfraqueci e estive enfermo alguns dias; então, me levantei e tratei dos negócios do rei. Espantava-me com a visão e não havia quem a entendesse. (Daniel 8:27)
O leitor deve se lembrar de que, no capítulo 8, somente a parte histórica da visão (o carneiro, o bode e o chifre pequeno) é explicada pelo anjo Gabriel. A visão da purificação do santuário (verso 14) não é explicada.
- Daniel 2: sonho e explicação.
- Daniel 7: visão e explicação.
- Daniel 8: visão e parte da explicação.
Antes que Daniel terminasse a oração, Deus já lhe tinha enviado a resposta:
Falava eu ainda, e orava, e confessava o meu pecado e o pecado do meu povo de Israel, e lançava a minha súplica perante a face do Senhor, meu Deus, pelo monte santo do meu Deus. Falava eu, digo, falava ainda na oração, quando o homem Gabriel, que eu tinha observado na minha visão ao princípio, veio rapidamente, voando, e me tocou à hora do sacrifício da tarde. (Daniel 9:20-21)
Qual foi a última vez que vimos Gabriel? No capítulo 8, verso 16:
E ouvi uma voz de homem de entre as margens do Ulai, a qual gritou e disse: Gabriel, dá a entender a este a visão.
Mas Daniel havia recebido somente parte da explicação dada por Gabriel. Isto significa que o anjo não havia concluído sua tarefa de explicar a visão no capítulo 8. A porção profética que não foi explicada é a que envolve o elemento do tempo: a visão dos 2.300 dias. De fato, Gabriel se limita apenas a confirmar a veracidade dessa visão, sem entrar em mais detalhes sobre ela:
A visão da tarde e da manhã, que foi dita, é verdadeira; tu, porém, preserva a visão, porque se refere a dias ainda mui distantes. (Daniel 8:26)
Em Daniel 9, Gabriel faz uma segunda visita a Daniel com um propósito específico:
Ele queria instruir-me, falou comigo e disse: Daniel, agora, saí para fazer-te entender o sentido. No princípio das tuas súplicas, saiu a ordem, e eu vim, para to declarar, porque és mui amado; considera, pois, a coisa e entende a visão. (Daniel 9:22 e 23)
A expressão de Gabriel: “considera, pois, a coisa e entende a visão”, não se refere, naturalmente, à visão como um todo, pois a parte histórica da profecia já havia sido explicada. No capítulo 8, em suas palavras finais, Gabriel declarou que a visão da tarde e da manhã era “verdadeira”, a parte do conjunto da visão a qual “não havia quem a entendesse” (verso 27). Em Daniel 9:24, portanto, Gabriel começa exatamente no ponto em que terminou no capítulo 8:26.
Começa a explicação: as setenta semanas
O objetivo específico de Gabriel é o de esclarecer a Daniel a visão dos 2.300 dias. O anjo inicia a explicação com estas palavras:
Setenta semanas estão determinadas sobre o teu povo e sobre a tua santa cidade, para fazer cessar a transgressão, para dar fim aos pecados, para expiar a iniquidade, para trazer a justiça eterna, para selar a visão e a profecia e para ungir o Santo dos Santos.
A explicação começa com um período de setenta semanas destinadas ao povo judeu. As setenta semanas não se baseiam em semanas de dias, mas em semanas de anos. Em Daniel 10:2-3, quando o profeta quer especificar que as semanas ali referidas são semanas de sete dias, o original diz explicitamente “semanas de dias”. As setenta semanas de anos seriam 490 anos literais, sem a necessidade de aplicar o princípio profético de dia por ano. (1)
A expressão “estão determinadas” significa, entre outras coisas, que o período profético das setenta semanas foi “decretado”, “cortado” ou “separado”. Evidentemente, a clara relação entre Daniel 9 e Daniel 8 favorece a interpretação de que este período profético menor foi “cortado” ou “separado” do período maior, os 2.300 dias/anos. Conclui-se, além disso, que as setenta semanas seriam cortadas ou separadas a partir do início do período maior, não do meio ou do fim, casos em que não fariam nenhum sentido, tendo em vista as especificações contidas na profecia.
O que deveria ser realizado no período de setenta semanas ou 490 anos? Há seis propósitos significativos, todos eles envolvendo o ministério de Cristo, tanto o terrestre como o celestial:
1. “Para fazer cessar a transgressão”. A transgressão diz respeito à separação entre Deus e o homem por causa do pecado. Por meio de Seu sacrifício na cruz, Cristo reconcilia a humanidade Consigo mesmo e com o Pai. A relação que era de inimizade, devido ao pecado, se converte em uma relação de amizade, em virtude da graça.
2. “Para dar fim aos pecados”. Gabriel anuncia que Cristo tomaria sobre Si os pecados da humanidade, provendo uma solução efetiva para essa tragédia que aflige o mundo.
3. “Para expiar a iniquidade”. Iniquidade é outra forma ofensiva de pecado, significando perversão daquilo que é certo e verdadeiro. Não há forma de pecado para a qual Cristo não tenha feito provisão na cruz.
4. “Para trazer a justiça eterna”. Deus considera nossa justiça como “trapo da imundícia” (Isaías 64:6). A esperança da humanidade consiste na certeza da justiça divina, eterna e eficaz para aqueles que se apropriarem dela através da fé. Foi a morte de Jesus no calvário que trouxe justiça eterna.
5. “Para selar a visão e a profecia”. A palavra “selar” não se usa aqui com o sentido de “fechar”, mas de “confirmar” ou “ratificar”. O cumprimento das predições relacionadas ao primeiro advento do Messias no tempo especificado pela profecia nos assegura que os outros elementos da profecia, em particular os 2.300 dias proféticos, serão cumpridos com a mesma precisão. (2)
6. “Para ungir o Santo dos Santos”. Cristo foi ungido no momento de Seu batismo, quando o Espírito Santo desceu sobre Ele na forma de uma pomba (Atos 10:37-38), mas a unção aqui predita também se refere à inauguração da obra sacerdotal de Cristo no santuário celestial (Hebreus 8:1-2), da mesma forma que o antigo santuário foi ungido para inaugurar seus serviços (Êxodo 40:9).
Desse modo, a profecia das setenta semanas se centraliza em Jesus e na obra redentora que Ele deveria realizar. Embora a profecia se concentre na primeira vinda de Cristo e se aplique de maneira direta à nação judaica, ela contém elementos da segunda vinda, pois tudo aquilo que nosso Salvador conquistou na primeira, realizar-se-á plenamente na segunda. Não admira que a profecia nos conduza para a derradeira obra de Cristo antes de Sua vinda: a purificação do santuário!
Uma profecia messiânica
Gabriel estabelece o ponto de partida das setenta semanas – e, consequentemente, dos 2.300 dias/anos – com esta afirmação:
Sabe e entende: desde a saída da ordem para restaurar e para edificar Jerusalém, até ao Ungido, ao Príncipe, sete semanas e sessenta e duas semanas; as praças e as circunvalações se reedificarão, mas em tempos angustiosos. (Daniel 9:25)
A data em que foi expedida a ordem para restaurar e edificar Jerusalém deve ser localizada em função de sua relação com o Ungido, o Príncipe. Se perdermos de vista o princípio cristocêntrico da profecia, perderemos, por conseguinte, a oportunidade de localizar a data correta para o início do período profético.
Com relação à sorte de Jerusalém e do templo depois do exílio babilônico, Esdras menciona três importantes decretos:
Os anciãos dos judeus iam edificando e prosperando em virtude do que profetizaram os profetas Ageu e Zacarias, filho de Ido. Edificaram a casa e a terminaram segundo o mandado do Deus de Israel e segundo o decreto de Ciro, de Dario e de Artaxerxes, rei da Pérsia. (Esdras 6:14)
O primeiro decreto foi promulgado por Ciro entre 538 e 537 a.C.(Esdras 1:2-4); o segundo, durante o reinado de Dario I Histaspes, entre 520 e 519 a.C.(Esdras 6:3-12); e o terceiro, no sétimo ano de Artaxerxes, entre 458 e 457 a.C. (Esdras 7:11-26). O decreto de Ciro apenas permitia o retorno dos exilados judeus a sua terra natal para a edificação do templo. O decreto de Dario I foi uma confirmação do decreto anterior. Mas o decreto de Artaxerxes permitiu o nascimento legal de Jerusalém, atendendo, assim, as especificações da profecia. Isso ocorreu mais precisamente no outono de 457 a.C.
Sessenta e nove semanas de anos (sete semanas + sessenta e duas semanas), ou 483 anos depois do outono de 457 a.C. nos levam ao outono do ano 27 d.C., data em que o Príncipe, o Messias, foi ungido pelo Céu por ocasião de Seu batismo numa manifestação especial do Espírito Santo e com a aprovação do Pai: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mateus 3:17; Atos 10:37-38). Foi somente depois de ungido, que Cristo iniciou o Seu ministério. Por isso, logo após o batismo, Ele declarou: “O tempo está cumprido” (Marcos 1:14-15).
Gabriel prossegue a explicação:
Depois das sessenta e duas semanas, será morto o Ungido e já não estará; e o povo de um príncipe que há de vir destruirá a cidade e o santuário, e o seu fim será num dilúvio, e até ao fim haverá guerra; desolações são determinadas. (Daniel 9:26)
O Messias seria morto em algum momento depois das sessenta e duas semanas, ou seja, em algum momento depois do ano 27 d.C. A expressão “e já não estará” é esclarecida na profecia messiânica de Isaías:
Por juízo opressor foi arrebatado, e de sua linhagem, quem dela cogitou? Porquanto foi cortado da terra dos viventes; por causa da transgressão do meu povo, foi ele ferido. (Isaías 53:8)
Gabriel também faz alusão à destruição de Jerusalém e do templo depois das sessenta e nove semanas e depois da morte do Messias. A ruína de Jerusalém e da nação, embora tivesse sido prorrogada por tanto tempo, cumpriu-se no ano 70 de nossa era, e foi o resultado de terem crucificado o próprio Salvador a Quem tanto esperavam. O “povo do príncipe que há de vir” responsável pela queda de Jerusalém se refere aos romanos, cuja incursão contra a cidade e o templo foi semelhante a um “dilúvio”, até ao ponto de não ficar pedra sobre pedra que não fosse derribada (Mateus 24:2).
O último verso do capítulo 9 revela detalhes sobre o que aconteceria durante o período de sete anos da septuagésima semana da profecia:
Ele fará firme aliança com muitos, por uma semana; na metade da semana, fará cessar o sacrifício e a oferta de manjares; sobre as asas das abominações virá o assolador, até que a destruição, que está determinada, se derrame sobre ele. (Daniel 9:27)
Aquele que firma a aliança ou a promessa é o Messias mencionado nos versos anteriores. Antes que a profecia das setenta semanas se cumprisse, a aliança dizia respeito à nação judaica como o povo escolhido de Deus. Por esta razão, Jesus instruiu Seus discípulos: “Não tomeis rumo aos gentios, nem entreis em cidade de samaritanos; mas, de preferência, procurai as ovelhas perdidas da casa de Israel.” (Mateus 10:5-6). Cumprido, porém, o período profético, a aliança é estendida a todos os que aceitam a Cristo mediante a fé (Atos 2:39; Gálatas 3:28-29).
Jesus foi morto na metade da última semana profética, isto é, na páscoa do ano 31 d.C., três anos e meio após o Seu batismo, em 27 d.C. Com a Sua morte, Jesus fez cessar os sacrifícios e ofertas que apontavam para Ele. Três anos e meio depois, em 34 d.C., os líderes judaicos mataram Estevão, o primeiro mártir cristão, atitude extrema que marcou o fim da “aliança com muitos”, ou seja, o fim do concerto que Deus fizera com a nação judaica.
Mas o leitor deve se lembrar de que as setenta semanas constituem somente a primeira parte de um período profético maior, do qual elas foram extraídas. Quatrocentos e noventa anos foram “cortados” dos 2.300 anos de Daniel 8:14, restando, portanto, 1.810 anos. Sabendo que os quatrocentos e noventa anos terminaram em 34 d.C., se somarmos 1.810 anos, chegaremos ao ano de 1844, quando, então, segundo a profecia, o santuário seria purificado. Esse santuário não pode se referir ao antigo santuário terrestre, pois ele era uma “sombra dos bens vindouros”, e foi destruído no ano 70 d.C. A profecia faz referência ao santuário celestial, ao “verdadeiro tabernáculo que o Senhor erigiu, não o homem.” (Hebreus 8:2).
Conclusão
A profecia das setenta semanas prova acima de qualquer dúvida que Jesus é o Messias! Por isso, ela é a profecia messiânica mais poderosa das Escrituras. Mas ela é apenas uma parte de uma profecia maior, os 2.300 anos. Ambas estão intimamente ligadas, comprovando sua mútua importância no plano divino de redenção.
É porque Cristo é o Messias da profecia que Ele tem o direito de exercer a obra de purificação do Seu santuário no Céu, isto é, a obra de julgamento celestial que determinará quem é digno ou não de possuir o reino de Deus. Com efeito, trata-se de um juízo que ocorre antes da segunda vinda de Cristo, como comprovam as profecias de Daniel.
O risco de não estarmos preparados para este derradeiro evento que culmina com o segundo advento de Cristo é tão real quanto foi o despreparo da nação judaica em relação à primeira vinda. Por este motivo, o anjo portador do evangelho eterno proclama sua incisiva mensagem “em grande voz”, apelando para que nos voltemos a Deus enquanto existe oportunidade (Apocalipse 14:7).
Notas e referências
1. Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia, vol. 4. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2013, p. 937.
2. Ibid., p. 938.
Fonte: Três Mensagens