É possível um cristão ser de direita? É possível um cristão ser de esquerda? São perguntas importantes, já que qualquer cristão sincero não quererá adotar uma posição política, econômica ou cultural que contradiga sua fé. Mas qual é a resposta? Eu já vi cristãos de direita dizendo que não dá para ser cristão e de esquerda. E já vi cristãos de esquerda dizendo que não dá para ser cristão e de direita. Curioso, não? Bom, vamos fazer uma análise desapaixonada e prática para ver quem tem razão (se é que alguém tem).
Definições
O que é ser cristão? É crer que Jesus é o Messias prometido nas Escrituras Hebraicas, nosso Senhor e nosso Salvador, e agir em conformidade com essa crença. Essa definição ainda implica logicamente a crença na Bíblia (AT e NT) como compêndio de livros inspirados pelo Espírito Santo, uma postura de amor a Deus e ao próximo, e um processo ativo de santificação. A despeito de diferenças interpretativas entre os diversos grupos cristãos, esse parece ser o núcleo básico do cristianismo, aquilo que é comum a todos os cristãos.
O que é esquerda? Podemos definir como uma posição política que defende um Estado com mais funções, presença e poder para gerar maior igualdade social e proteger classes oprimidas (pobres, negros, mulheres, homossexuais, etc.). E o que é direita? Podemos definir como uma posição política que defende um Estado com menos funções, presença e poder, a fim de que a liberdade econômica seja maior e o governo não se torne totalitário e corrupto. Note que eu defini direita e esquerda de um modo que faça jus a como cada grupo enxerga a si mesmo. Repare ainda que eu não assumi nenhum juízo de valor quanto a se os fins alegadamente pretendidos realmente são possíveis a partir dos meios evocados.
Apesar dessa definição, a realidade é sempre dinâmica. Assim, existem alas da direita que são menos liberais em economia, aproximando-se da esquerda nesse campo. Elas vão se diferir da esquerda por pretenderem um grau menor de intervenção econômica e terem uma visão um pouco mais positiva do capitalismo. De maneira semelhante, há alas da esquerda que são mais abertas ao liberalismo econômico, se aproximando da direita nesse campo, mas ainda conservando uma intervenção maior. Entre um e outro está o centro, onde há espaço para as alas mais moderadas dos dois lados. Em termos econômicos, nem sempre alguém é de um dos dois lados.
Para além dos aspectos econômicos da direita e da esquerda, há os aspectos ligados a outras pautas. E aqui existe bastante mistura. Por exemplo, a direita conservadora tende a ser contra o aborto, a eutanásia, a imigração irrestrita, o casamento homossexual (em termos jurídicos oficiais), a ideologia de gênero, etc. Já a direita liberal ou libertária tende a ser favorável a todas essas pautas. A antiga esquerda marxista, por sua vez, poderia ser contra ou a favor desses pontos. A nova esquerda ou esquerda libertária é favorável. E a esquerda do período da revolução francesa provavelmente seria favorável também.
Outro exemplo: tanto a direita conservadora quanto a liberal tendem a ser favoráveis à posse e porte de armas por cidadãos honestos e mentalmente saudáveis. A esquerda marxista old school tende a ser favorável enquanto não sobe ao poder. Já a esquerda libertária é totalmente contra.
Aqui fica claro que definir se alguém é de direita ou esquerda não é suficiente para saber o que ela defende em todas as áreas. É possível ser da direita liberal, da direita conservadora, da esquerda libertária, da antiga esquerda marxista, de uma posição mais centrista, etc. As definições de direita e esquerda que ofereci, portanto, são úteis, mas não suficientes para avaliar de modo amplo se um cristão pode ou não ser de um desses lados. De qualquer forma, já é um ponto de partida.
Avaliação
Pois bem, é possível alguém manter essas crenças e posturas sendo de direita ou de esquerda? Eu acredito que sim. No caso da esquerda, um bom cristão pode achar sinceramente que um governo mais interventor na economia e um Estado mais presente são mecanismos eficazes para melhorar a vida dos mais pobres. Pode ainda pensar que as forças policiais tem se excedido em muitos momentos, que boa parte das grandes empresas tem sido injustas com o trabalhador e irresponsáveis com o meio ambiente, que precisamos de um Estado capaz de tratar esses problemas.
Consideremos que essas crenças estão erradas no conteúdo e/ou no tipo de solução proposta. Ainda assim, não necessariamente uma pessoa que as acalenta deixa de crer em Jesus e na Bíblia, de amar a Deus e ao próximo, e de se preocupar com a santidade. Suas crenças políticas e econômicas são apenas uma análise da realidade que pode estar errada, assim como erramos na avaliação de tantas coisas na vida.
No caso da direita, um bom cristão pode achar sinceramente que um governo menos interventor na economia e um Estado menos inchado são mecanismos mais eficazes para gerar empregos, aumentar renda e impedir o surgimento de déspotas. Pode ainda pensar que todo cidadão honesto e mentalmente são precisa ter seu direito à autoproteção com armas de fogo garantido, que grandes empresas têm sido beneficiadas por meio da estrutura interventora do governo e que reduzir o poder do Estado é essencial para tratar esses problemas.
Mais uma vez: essas crenças podem até estar erradas no conteúdo e/ou no tipo de solução proposta. Mas é perfeitamente possível mantê-las e continuar crendo em Jesus, e na Bíblia, amando a Deus e ao próximo, e se preocupando com a santidade. Suas crenças políticas e econômicas são apenas uma análise da realidade que pode estar errada, da mesma forma como erramos na avaliação de tantas outras coisas na vida.
As distorções
Muito da agressividade desse debate entre cristãos de direita e de esquerda se dá por algumas distorções feitas em relação à posição do outro. Darei dois exemplos. Primeiro: muitos direitistas entendem esquerdismo como sinônimo de marxismo, socialismo e comunismo. No entanto, há esquerdistas moderados, que não são favoráveis a ditaduras socialistas, mas apenas querem um Estado com políticas mais voltadas para a justiça social. Não é justo colocá-los no mesmo pacote de comunistas.
Segundo: direitismo não é sinônimo de fascismo ou nazismo. Fascismo e nazismo são doutrinas políticas extremamente estatistas e contrária ao liberalismo econômico. Isso é algo que a maioria dos direitistas rechaça, mesmo os mais nacionalistas e interventores econômicos. Até porque os conservadores e liberais tendem a ver o fascismo como uma doutrina revolucionária com raízes em um marxismo heterodoxo.
Em resumo, não é necessário taxar o outro de extremista porque ele é de direita ou esquerda. Há mais posições no espectro político econômico do que o suposto binômio comunismo-fascismo.
As obrigações
Devemos destacar que independente de um cristão ser de direita, é obrigação do cristão e de qualquer pessoa sensata rechaçar comunismo, socialismo, fascismo e nazismo. Não se trata de ser de direita ou esquerda, mas de ser consciente. Esses regimes, onde quer que se instalaram, foram totalitários, ditatoriais e sanguinários. Perseguiram opositores, oprimiram o próprio povo e restringiram a liberdade religiosa (inclusive de cristãos) com perseguições e/ou intromissões. Então, não importa muito se um cristão tem uma visão mais à esquerda ou à direita. Importa é que ele seja cristão o suficiente para rechaçar regimes ditatoriais.
Além disso, um cristão deveria rechaçar o populismo, a defesa apaixonada de políticos, a defesa acrítica de corruptos ou suspeitos de corrupção. Não fomos chamados para confiar em governantes e defender todos os seus atos (e isso vale para o ser humano no geral), mas para orar por eles e não coadunar com seus pecados (Sl 146:3-4; I Sm 8:1-20; Jr 17:5-10; Dn 3:13-18 e 6:5-16; Mt 5:43-48 e 14:1-5; At 5:27-29 e 12:20-23; I Tm 2:1-3; Ap 13:15-18 e 14:9-10). Entre o desejo de ver um político ter bom desempenho e a idolatria vai uma distância grande que nunca devemos percorrer. Isso é algo que precisa ser observado por cristãos de direita e esquerda, pois a tentação da idolatria política é ambidestra.
Os pacotes fechados
Termino enfatizando que não é saudável tratar nossas visões político-econômicas como pacotes fechados. Quem o faz, acaba caindo no erro de tentar adequar a realidade ao seu pacote imutável de ideias. E pior: por vezes tentará adequar a própria fé cristã a esse pacote. Outro problema dos pacotes fechados é que sempre há algo nele que não condiz com a Bíblia. Vamos ver alguns exemplos.
Um cristão da esquerda ou da direita libertária pode cair no erro de defender o aborto por conta da concepção de liberdade que a nova esquerda e o libertarianismo tem, onde a mulher é livre para abortar, pois o corpo é dela. Só que essa concepção desconsidera que o feto/embrião no útero é uma vida (tanto para a Bíblia, quanto para a lógica). Aborto, portanto, jamais poderia ser defendido por um cristão, independente de ser de direita ou de esquerda.
Um cristão da direita conservadora pode cair no erro de desculpar policiais de qualquer abuso e defender tortura de criminosos. No extremo oposto, um cristão de esquerda pode cair no erro de defender leis brandas para criminosos e criticar em demasia as forças policiais. Ambas as posturas são antibiblicas.
Um cristão da esquerda libertária pode enxergar racismo e machismo em qualquer situação, bem como ignorar que também há racismo contra brancos (motivado por sentimentos de vingança coletiva) e violência física de mulheres ciumentas contra seus parceiros. No extremo oposto, um cristão de direita pode ignorar que existe racismo e machismo reais, interpretando tudo como “mimimi” e nada fazendo para resolver ou pelo menos discutir esses problemas.
Um cristão de direita pode ignorar que há atos de homofobia e pode até ser homofóbico. Já um cristão de esquerda pode enxergar homofobia em tudo e até passar a defender a prática homossexual como não sendo pecaminosa na Bíblia.
Um cristão de esquerda pode ser muito radical em relação à sua concepção de atuação do Estado, desejando o mal de ricos e empresários indiscriminadamente. Já um cristão de direita pode ser muito radical em relação à sua visão de Estado enxuto, esquecendo que hoje ainda há miseráveis que só tem sobrevivido por causa de auxílio estatal.
Num nível mais teológico, um cristão de direita pode se apegar com a doutrina e a lei a ponto de se tornar frio, legalista, rancoroso, intolerante e sem amor. E um cristão de esquerda pode se apegar a uma visão social, carinhosa e libertina do evangelho a ponto de menosprezar, na teoria e na prática, a justiça de Deus, a repreensão dos pecados, a relevância da doutrina e da Lei, e o dever da obediência.
Finalmente, num nível relacional, tanto o cristão de direita quanto o de esquerda podem ver e tratar um ao outro como se não fossem humanos, como se não merecessem diálogo, amor, tolerância, respeito e chance de explicar suas ideias.
Esses são, afinal, os resultados de politizar o evangelho. Em vez disso, deveríamos nos prender mais firmemente à Palavra de Deus e, claro, aprender a dialogar. Podemos discordar sobre a melhor maneira de resolver problemas sociais, mas negar que eles existem nunca é a opção mais cristã. Certo ou errado, um verdadeiro cristão quer impactar positivamente o mundo em que vive. Dialogar com um cristão que talvez esteja errado quanto ao modo de fazer isso pode ser muito eficaz em ajudá-lo a enxergar melhor. E certamente será muito eficaz em nos ajudar a entender melhor como realmente pensa o outro. Lembremo-nos sempre: por trás do rótulo de esquerdista, direitista, centrista ou qualquer outro há um ser humano. E é com esse ser humano que devemos nos preocupar.
Por Davi Caldas
Fonte: Reação Adventista