O sábado não era um problema para a Igreja Primitiva

Na maior parte do primeiro século não houve, entre judeus e gentios frequentadores de sinagogas (ou simpatizantes do judaísmo), questionamento sobre se o sábado deveria ser guardado ou não. Isso inclui os apóstolos (que eram judeus), os primeiros seguidores dos apóstolos (também judeus) e os primeiros cristãos (gentios seguidores desses judeus que acreditavam em Jesus como Messias). O objeto de discussão em relação ao sábado era outro: como guardar? E em grande parte, a discussão foi causada por Jesus.

Teologicamente Jesus era quase um fariseu. Ele aceitava o Canon bíblico que os fariseus comumente usavam, frequentava sinagogas, valorizava o conhecimento das Escrituras e cria na ressurreição dos mortos. Estava muito mais alinhado com as doutrinas, mentalidade e hábitos dos fariseus do que dos saduceus, essênios e zelotes. Entretanto, Jesus criticava fortemente a hipocrisia, a soberba e algumas tradições (orais) distorcidas que eram marca de muitos dos principais líderes fariseus. Como contraponto, Jesus argumentava pelas Escrituras. Aqui emergia o ponto de discordância sobre o sábado: os fariseus tinham tradições sobre a forma de guardar o sábado que não eram analisadas pelas Escrituras. E, por causa disso, era comum que essas tradições acabassem se chocando com algum princípio da própria Escritura.

Jesus provavelmente foi o que mais trouxe à baila, no primeiro século, essa oposição entre certos hábitos tradicionais e o que as Escrituras diziam. Como resultado, muitos líderes fariseus invejosos acusavam Jesus de transgredir o sábado. Mas as acusações eram infundadas. Jesus nunca fizeram nada no sábado que pudesse ser enquadrado como transgressão nas Escrituras.

Com o início do ministério dos apóstolos (após a morte, ressurreição e ascensão de Jesus aos céus), as coisas não mudaram muito. Os apóstolos continuaram indo a sinagogas e pregando para judeus e gentios que ali se encontravam. Os judeus que aceitavam a Jesus continuavam sendo judeus e indo à sinagoga. E os gentios também recebiam essa fé permaneciam congregando com os judeus crentes em Jesus normalmente. Assim, as práticas de guardar o sábado e até de se abster de determinados alimentos não eram alteradas.

A aceitação de Jesus como Messias era tratada não como uma nova religião ou fé, mas apenas como a aceitação de algo que a fé judaica já pregava e esperava. Da mesma forma, um cristão que crê hoje na volta de Jesus não está aceitando outra religião. A volta de Jesus é doutrina essencial do cristianismo. Olhando por essa perspectiva, é justamente o cristão que descarta a volta de Jesus e o judeu que descrê de seu próprio Messias que estão negando sua fé/religião.

Para os gentios do primeiro século (tanto simpatizantes da fé judaica, quanto críticos), esses judeus que criam em Jesus eram mais uma vertente do judaísmo. Para o gentio que aceitava que, enfim, aceitava o evangelho, era a vertente verdadeira. Assim, era natural para quem aceitava o evangelho passar a congregar em sinagogas com judeus crentes em Jesus e/ou nas casas, quando os crentes em Jesus eram expulsos pelos judeus descrentes. Aos poucos, com o acirramento da disputa entre judeus crentes e descrentes, as reuniões nas casas foram se tornando mais viáveis e constantes.

Mesmo na falta de sinagogas, o hábito de reunir-se o dia inteiro de sábado permaneceu por algum tempo, já que era o dia santo. Isso não impedia reuniões em outros dias, porém quem tinha maior disponibilidade em todos os dias eram os apóstolos, que trabalhavam integralmente no evangelho. As pessoas comuns não tinham (como não tem até hoje) todo esse tempo disponível, o que tornava natural separar o dia santo já conhecido de todos para atividade cúltica.

Uma vez que o ambiente inicial da Igreja de Cristo era fortemente judaico (tanto em termos de membros, como de hábitos), o crescimento de conversões gentílicas gerou um impasse: o gentio se torna parte da Igreja e da fé judaica apenas aceitando a Cristo? Ou há algo mais que precisa ser feito? Formou-se duas alas. A primeira entendia que se um gentio precisava ser circuncidado para se tornar judeu, então era razoável pensar que precisava ser circuncidado para se tornar membro da Igreja. A Igreja era judaica e não podia contar com membros incircuncisos. Deus, por certo, desejava um povo só e um povo santo, logo, circuncidado. E se o gentio era circuncidado, obviamente deveria se submeter a mandamentos dados especialmente aos judeus como a comemoração da Páscoa e outras festas. Além disso, pela tradição judaica (em especial a farisaicas), o gentio era impuro. Logo, a única maneira de comer com ele e entrar em sua casa sem se contaminar espiritualmente era ele sendo circuncidado.

Essa primeira ala era formada principalmente por líderes fariseus que haviam aceitado a Cristo. Trazendo toda uma mentalidade farisaica para o evangelho, estes crentes se preocupavam em manter todo o arsenal de regras e costumes dos fariseus. A própria noção de fazer prosélitos era um costume forte entre os fariseus naqueles dias. Assim, a ala pró imposição da circuncisão aos gentios desejava criar uma síntese entre judaísmo farisaico e o judaísmo nazareno (isto é, crente em Jesus).

A segunda ala, no entanto, entendeu que esse era um raciocínio falacioso. Em primeiro lugar, circuncisão era um rito específico para descendentes físicos de Abraão. Jamais foi imposto a gentios nas Escrituras (exceto os servos que moravam com Abraão). Em segundo lugar, Yahweh nunca cobrou circuncisão do gentio que queria segui-lo. Cobrava apenas o sábado e mandamentos que são gerais para todos os povos. Em terceiro lugar, a circuncisão física não definia santidade moral. Em quarto lugar, os gentios crentes estavam recebendo o Espírito Santo visivelmente. Logo, não fazia sentido impor a circuncisão sobre os gentios, nem as festas específicas dos judeus.

Note que a questão não era se os judeus podiam ou não continuar circuncidando seus filhos. Também não era se podiam ou não continuar comemorando suas festas. A questão era se isso deveria ser imposto aos gentios para eles serem parte da Igreja e salvos.

Também deve ser ressaltado que o problema não era o sábado. Como já dito, a separação do sábado como dia para atividades cúlticas era natural para quem se aproximava da fé judaica (At 13:14 e 42-44, 16:11-13, 17:1-4, 18:1-4; ver também At 2:46, 3:1-3, 5:20-21, 5:42, 9:2, 13:5, 14:1, 15:21, 17:10-17, 18:19, 19:8-10). E os que simpatizavam com essa fé não achavam isso ruim. As críticas em relação à guarda do sábado partiam de pagãos críticos do judaísmo, não de gentios simpatizantes.

A separação do sábado entre conversos era tão natural como é hoje a separação do domingo entre a maioria dos cristãos. Alguém que se converte hoje em alguma igreja protestante, por exemplo, naturalmente passará a frequentar os cultos de domingo. Se for fiel e vibrante, irá tanto pela manhã como pela noite. Talvez até apareça na igreja pela tarde, se tiver algum cargo e precisar organizar algo ou ensaiar. Como a maioria das pessoas, esse converso não trabalha no domingo. Assim, ele usa esse dia mais frequentemente para a igreja e para a sua família, ainda que talvez não o veja como um dia de guarda formal. Se esse indivíduo tiver de trabalhar domingo e for privado de ir à igreja nesse dia, provavelmente ficará triste. E sua família também. É perceptível, portanto, a naturalidade da separação desse dia nos dias de hoje (e, evidentemente, desde muitos séculos). E assim era a relação entre os seguidores e simpatizantes da fé judaico-cristã na maior parte do primeiro século.

Em suma, o grande problema que dividia as duas alas era a imposição do rito da circuncisão aos gentios e, por conseguinte, outros mandamentos que eram específicos para os judeus. Guardar ou não o sábado não era um ponto discutido.

Para além dessa grande celeuma, outro problema surge em algumas cidades: grupos de tendência gnóstica. Embora o gnosticismo só vá se desenvolver mais amplamente a partir do segundo século, já é possível constatar sementes de ideias gnósticas nas cidades da Galácia, Colossos e outras. Esses grupos tendiam a enfatizar ritos e tradições judaicas e até extrajudaicas como formas de alcançar elevação espiritual e uma gnose (conhecimento) secreta e libertadora. Tratava-se de uma espécie de esoterismo e sobrepunha ritos diversos, ascetismo e tradições humanas a Cristo e ao modo correto de interpretar as Escrituras.

Outro problema (este comum até hoje) era o apego de muitos crentes a tradições extrabíblicas e o uso delas para segregar irmãos que não as seguiam. Essa, aliás, era uma característica em comum entre o grupo dos crentes judeus que impunham a circuncisão e os crentes inclinados a uma forma primitiva de gnosticismo. Dentre as tradições, incluía-se o vegetarianismo, os jejuns semanais em dias fixos e maneiras específicas (geralmente ascéticas) de comer, beber, observar festas e até o sábado.

É desse contexto que surgem, da pena do apóstolo Paulo, algumas declarações que parecem contrariar a guarda do sábado (Rm 14:1-6; Gl 4:1-11 e Cl 2:16-17). Mas o problema não era a guarda do sábado em si. Como vimos, ninguém questionava isso nos primeiros anos de Igreja. O problema era todo um conjunto de interpretações e tradições errôneas que estavam sendo impostas aos gentios. Dentre essas, formas distorcidas de guardar o sábado – tal como os fariseus exigiam de Jesus, seus apóstolos e o povo em geral. A questão do sábado continuava sendo o modo de guardar. Ainda assim, esse não foi o maior dos problemas nas igrejas. O que, de fato, tomou proporções gigantescas foi a questão da circuncisão. Esta sim é referida diversas vezes no NT (Rm 2:25-29, 3:30, 4:9-12; I Co 7:18-19; Gl 2:12, 5:2-11 e 6:12-15; Ef 2:11; Fl 3:2-5; Cl 2:11-13, 3:11; Tt 1:10).

Ainda que alguém, no contexto de hoje, pressuponha que o sábado não precisa mais ser guardado, é preciso reconhecer que Paulo não tinha como foco falar contra a guarda do sábado em si nessas cartas. Nem o sábado é trabalho em detalhe, nem o argumento de Paulo repousa sobre uma mera guarda. Aos colossenses e aos gálatas, por exemplo, o apóstolo fala genericamente não de um dia de guarda, mas de um sistema de dias. E esse sistema estava relacionado a questões como retorno à idolatria, concepção legalista da salvação, preconceitos, ascetismo, culto aos anjos e gnosticismo. Ou seja, o problema ia muito além da guarda em si de um dia específico. Aos colossenses, aliás, Paulo sequer diz que os dias não deveriam ser guardados. Ele apenas orienta que os crentes não levassem a sério os juízos que os hereges faziam contra eles em relação ao modo como faziam as coisas – incluindo guardar o sábado.

No caso dos romanos, o foco é claramente discussões sobre questões extrabíblicas. Paulo as chama de “opiniões” (v. 1) e dá exemplos como a abstenção de carne (vs. 1-3) e de vinho (v. 21), que claramente não são mandamentos bíblicos. Assim, por uma questão de contexto, é bastante improvável que ao falar de dias (vs. 5-6), o apóstolo tivesse o sábado em mente. O sábado era uma questão da Lei e exigiria uma discussão relacionada à Lei. Paulo devia estar pensando em questões extralegais como dias fixos de jejum ou qualquer outro tipo de dia não estipulado pela Lei.

Com toda a certeza os conselhos de Paulo foram compreendidos pelas comunidades originais para as quais ele escreveu. Mas provavelmente não pela geração seguinte de crentes. O aumento dos conflitos nas sinagogas gearam um processo de remodelagem da fé cristã. Sendo expulsos das sinagogas, os cristãos foram perdendo o contato com os judeus e os hábitos judaicos. As brigas com os judeus crentes pró-circuncisão criaram separações entre eles e os crentes gentios. A ampliação de gentios conversos na Igreja, por sua vez, formou um ambiente mais gentílico. E a liderança da Igreja passou a ser formada, em sua maioria, por gentios.

Em meio a esse processo, a destruição de Jerusalém e seu templo corroboraram com (e ampliou a) crescente separação. O maior dos pontos de contato entre os primeiros cristãos e os judeus (incluindo os judeus crentes em Jesus) não existia mais. Agora, o cristianismo não possuía nada concreto que o ligasse a Israel. A rejeição da maioria dos judeus em relação a Jesus acabou por selar o muro entre a fé judaica e a cristã, criando duas religiões distintas. Isso impulsionou líderes gentios a verem Israel como rejeitado por Deus e a Igreja como o novo povo de Yahweh.

Ora, se a Igreja era um novo povo, tornava-se conveniente, desejável e até natural o desejo de ter uma identidade própria, distinta da judaica. O sentimento, então, fez emergir novas tradições, remodelou tradições antigas e fomentou discussões que antes não existiam. O alvo agora era jogar fora aquilo que parecia judaico demais. Neste contexto, o sábado perde a importância em diversas localidades, em especial em Roma, uma candidata excelente para ser a nova cidade santa.

Com a maioria dos apóstolos já mortos ou distantes demais dos principais centros de remodelagem da fé, o esvaziamento das raízes judaicas não puderam ser combatidos pela influência apostólica. Como também este não fora um problema contra o qual os apóstolos precisaram lutar durante as primeiras décadas, o assunto simplesmente ficou sem discussão. Os apóstolos foram chamados e treinados para pregar a Cristo e em um contexto amplamente judaico (mesmo nas cidades gentílicas, já que em quase todos os lugares havia sinagogas e simpatizantes do judaísmo). O novo contexto que surgia rapidamente fugia à previsão dos apóstolos que restavam e até mesmo à capacidade de assimilação e reação, já que agora havia centenas de igrejas em terras distantes e um número reduzido de apóstolos já velhos. A morte de todos os apóstolos tornou essa situação irreversível.

Do segundo século em diante, o processo de desconstrução do sábado e de tudo o que era judaico demais ganha força. Os chamados pais da Igreja (patrística), em sua maioria antijudaicos, influenciam os cristãos a verem a fé judaica com maus olhos, rechaçando judeus e gentios que mantinham práticas judaicas. Nomes como Inácio, Barnabé (que provavelmente era um pseudônimo), Justino Mártir, Origines, Eusébio, Epifânio e João Crisóstomo são apenas alguns dos principais pais da Igreja que escreveram contra judeus, judaísmo e cristãos “judaizantes”. Eram jogados no pacote dos judaizantes todos os que simplesmente insistiam em guardar o sábado, por exemplo.

A partir do quarto século, diversos concílios e sínodos locais e gerais passaram a proibir práticas judaicas (como a guarda do sábado), discriminar judeus, exaltar o domingo, proibir a Páscoa no dia 14 de Nissan, etc. Apesar desses fortes ataques, o sábado ainda permaneceria guardado por judeus nazarenos, alguns gentios e muitas igrejas locais orientais (que guardavam tanto o sábado quanto o domingo e conservaram por mais tempo práticas judaicas, como a Páscoa em 14 de Nissan). No entanto, os líderes adeptos da fé cristã romanizada acabariam por asfixiar o sábado após os primeiros cinco séculos de Igreja, substituindo-o pelo domingo em toda a Igreja.

O sábado passa a ser um problema, portanto, no cristianismo pós-apostólico, quando o ambiente judaico em que a fé cristã floresceu já estava renegado e esquecido. Nunca foi um problema nas primeiras décadas da Igreja primitiva. O sábado era visto como mandamento, mas também era uma cultura, um hábito, algo natural entre todos aqueles que aceitavam a fé judaica. A mudança foi um desvio. Um terrível desvio.

Por Davi Caldas

Fonte: Reação Adventista

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Escritor & Evangelista da União Central Brasileira

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