Na noite da próxima terça (24), quando o papa Francisco abrir a chamada porta santa da basílica de São Pedro, no Vaticano, estará oficialmente inaugurado o Jubileu 2025, um ano especial para os católicos em que as chamadas indulgências poderão ser recebidas. A esta altura é possível que você tenha se lembrado das aulas de história na escola, mais especificamente daquela parte em que se estuda a reforma protestante e toda a questão encabeçada pelo monge Martinho Lutero (1483-1546) contra a venda das indulgências. A crítica, naquela época, era que a Igreja estava comercializando vagas no Céu.
De forma simplificada, indulgência é mais ou menos isso mesmo. A diferença é que, agora, ninguém está vendendo nada. “A indulgência é uma prática relacionada ao perdão dos pecados”, diz à BBC News Brasil o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, ex-coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e editor do jornal O São Paulo, da Arquidiocese de São Paulo.
Na crença católica, se o perdão dos pecados é recebido com o sacramento da confissão — que pode ser repetido quantas vezes o fiel desejar —, a culpa ou a dívida só é completamente paga depois de um período de purificação póstumo. A indulgência é uma forma de garantir esse benefício divino em vida — ou seja, um salvo-conduto para o paraíso. “Na realidade, existe um pagamento da pena ligada ao pecado cometido”, explica à BBC News Brasil a vaticanista e historiadora do catolicismo Mirticeli Medeiros, pesquisadora na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma.
“Por exemplo: na confissão com um sacerdote a pessoa tem o pecado perdoado mas, principalmente em relação aos pecados mortais, existe uma dívida que fica. Esta, caso não exista a intervenção de uma indulgência plenária, será reparada somente no purgatório”, esclarece ela.
“Quando há o pecado, esse pecado pode ser absolvido da reconciliação, na confissão. Isso coloca a pessoa no que a Igreja chama de estado de graça”, explica à BBC News Brasil o vaticanista Filipe Domingues, diretor do Lay Centre, em Roma, e professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, também em Roma.
“Já a indulgência se refere à culpa, que é uma coisa um pouco mais abstrata. O pecado deixa uma marca no espírito e isso, de alguma forma, teria de ser purificado na eternidade. Aí entra aquela ideia meio medieval e um pouco alegórica do que é o inferno, o purgatório e o Céu”, comenta ele.
Dessa forma, seria preciso “uma purificação antes da elevação completa junto a Deus”, pontua Domingues. “Com as indulgências, a Igreja permite que a purificação seja feita na Terra. É uma limpeza da alma mais profunda que permitiria que a alma, se morrer logo depois, vá para o céu imediatamente.” […]
Segundo a doutrina consolidada no Catecismo da Igreja Católica, atualmente o purgatório não é entendido como um lugar, mas como o “estado dos que morrem na amizade de Deus, com a certeza de sua salvação eterna, mas que ainda têm necessidade de purificação para entrar na felicidade do céu”.
O catecismo diz que há maneiras terrenas de ajudar nesse processo. Vivos podem fazer orações e realizar boas ações em memória dos que morreram. E as indulgências também estão elencadas como uma dessas ferramentas.
Para aqueles que creem, os declarados anos de Jubileu são oportunidades raras dessa remoção instantânea da culpa. “A indulgência é uma manifestação concreta da misericórdia de Deus, que transcende os limites da justiça humana e as transforma”, diz comunicado do Vaticano sobre o evento de 2025. “A indulgência permite libertar o coração do fardo do pecado, para que a reparação devida possa ser dada em total liberdade.”
“Concretamente, essa experiência de misericórdia passa por algumas ações espirituais que são indicadas pelo papa”, resume o texto.
Em documento publicado em maio pela Penitenciária Apostólica do Vaticano foram detalhadas as normas para se alcançar a indulgência durante o Jubileu de 2025. A condição preliminar para obtê-la é estar “verdadeiramente arrependido, excluindo qualquer apego ao pecado” e “movido por um espírito de qualidade”, “purificado pelo sacramento da penitência”, participando da eucaristia e dedicando constantemente orações ao papa.
O documento esclarece que o “tesouro” da “pleníssima indulgência”, com “remissão e perdão dos pecados” pode valer tanto para aquele que cumprir as exigências como para “as almas do purgatório sob a forma de sufrágio”.
Cumpridas essas premissas, o fiel precisa realizar ao menos uma das três tarefas ao longo do ano de 2025: participar de uma “sagrada peregrinação” — e o documento prevê que esta pode ser a Roma, à Terra Santa ou a outras “circunscrições eclesiásticas” designadas por bispos levando “em conta as necessidades dos fiéis”; visitar, de forma piedosa, lugares sagrados; realizar “obras de misericórdia e penitência” — que vão desde participação em encontros de formação a ações concretas como “dar de comer aos famintos” ou “visitar os presos”, entre outras.
A questão das indulgências se tornou uma polêmica na Idade Média, culminando com a reforma protestante no início do século 16 porque, na época, a Igreja Católica vendia o benefício como se estivesse loteando terrenos no céu. “[Isso] criou uma visão distorcida da prática [das indulgências]”, comenta Ribeiro Neto.
A historiadora Medeiros diz que, “na época, eram pedidas aos fiéis grandes somas para adquirir” essa purificação em vida. Essas cobranças foram especialmente praxe, conta ela, quando a Igreja estava precisando arrecadar fundos para terminar a construção da atual basílica de São Pedro, inaugurada em 1626.
“O tema é espinhoso e já passou por inúmeras transformações na história da Igreja, gerando certa polêmica até hoje”, comenta à BBC News Brasil o historiador e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
No Concílio de Trento, série de reuniões da cúpula do catolicismo ocorridas entre 1545 e 1563 para combater a Reforma Protestante, o tema esteve em discussão. “O concílio afirmou que deriva de Cristo a concessão das indulgências e que a Igreja Católica teria autoridade para concedê-las”, conta Moraes. “É bem verdade que o mesmo concílio reconheceu os abusos que vinham ocorrendo com a venda de indulgências e proibiu lucros resultantes dessa concessão.”
Historicamente, àquela altura a questão havia “ido muito longe” no seio do catolicismo, conforme explica o professor, “com uso indevido daquilo que deveria ser usado com parcimônia”. “Havia um abuso e a Igreja Católica fez seus revisionismos, reconhecendo alguns excessos e continuando a prática sem aquela carga negativa que acompanhou a cisão da cristandade no século 16”, conclui o teólogo.
“Para que a indulgência tenha valor, ela precisa ser acompanhada por gestos que demonstrem o arrependimento e a real conversão do pecador”, contextualiza Ribeiro Neto. “Ela não é válida sem a confissão sacramental e alguns gestos precisos estabelecidos com essa finalidade. Doar dinheiro para obras de caridade da Igreja era, tradicionalmente, um dos principais gestos que permitiam ganhar a indulgência.”
“Contudo, pelos desvios óbvios que esta prática comportava, foi sendo abandonada”, conta o sociólogo. “Importante notar que aquele que ‘comprava’ a indulgência sem se arrepender e procurar ter um comportamento melhor pagava mas não levava, pois não cumpria a condição maior que era o arrependimento sincero.”
(G1 notícias) via Blog Outra Leitura