Somos obrigados a seguir os 613 mandamentos da Torá?

Um argumento muito comum utilizado contra os adventistas do sétimo dia é o de que quem guarda o sábado e crê na distinção entre alimentos puros e impuros, está obrigado a guardar todos os 613 mandamentos da Torá. O objetivo do argumento é chamar os adventistas de hipócritas ou, no mínimo, incoerentes, por não observarem a Torá por completo. O raciocínio está correto? Realmente, guardar o sábado e distinguir alimentos puros de impuros nos obriga a guardar toda a Torá? Não, esse raciocínio não está correto. Vamos entender.

Em primeiro lugar, nenhuma pessoa jamais foi obrigada a cumprir os 613 mandamentos. Nem mesmo os judeus na antiga aliança. Por uma razão óbvia: a Torá se compõe de diversos mandamentos que se aplicam a grupos distintos. Há preceitos só para sacerdotes, outros apenas para mulheres, outros somente para homens, alguns exclusivos para israelitas, etc. Muitos desses mandamentos são contextuais. Os de cunho civil/penal, por exemplo, só podem ser cumpridos na vigência do sistema teocrático israelita e no próprio Israel. Há preceitos um tanto circunstanciais também, como os que versam sobre o israelita na guerra. Em suma, até mesmo em relação à antiga aliança, a ideia de alguém estar sujeito aos 613 mandamentos é falsa.

Ora, os 613 mandamentos não precisam ser aplicáveis a todos os grupos, contextos, lugares e épocas para que a Torá seja válida. Alguns mandamentos, de fato, são de natureza geral, sendo sempre aplicáveis. Outros foram dados por Deus com finalidades aplicáveis à conjunturas específicas – fora delas, não há aplicação. Se já era assim na antiga aliança, não há porque enxergar de modo distinto na nova.

Em segundo lugar, a Torá/Lei não foi abolida no sacrifício de Cristo Jesus. Na verdade, o que ocorreu foi o oposto: ela foi confirmada e cumprida. Os sacrifícios de animais, as festas sagradas (que tinham íntima relação com o sistema sacrificial) e o serviço dos sacerdotes no templo (também ligados aos holocaustos) eram preceitos da Torá com função específica de prefigurarem a obra redentora de Cristo. Quando Cristo se sacrifica pelo ser humano, tais preceitos são cumpridos no próprio sacrifício dele (Hb 7:23-28; 9:9-14 e 23-28; 10:1-18). Uma vez que a finalidade deles era exatamente essa (representarem a Cristo e serem cumpridos nele), a obra redentora do Messias cumpre a Torá, não a anula. Anular a Torá seria justamente o oposto: fazer desses preceitos que prefiguravam Jesus fins em si mesmos.

O cumprimento dos preceitos prefigurativos da Torá na obra redentora de Cristo implica que ao aceitá-lo como nosso Senhor e Salvador, todos esses ritos são cumpridos de uma vez por todas em nossa vida. Não é mais preciso recorrer às representações, porque já temos a realidade. E isso só pode ser descrito como cumprimento da Torá, não como uma abolição. A finalidade dos ritos foi alcançada. Temos aqui, aliás, o mesmo conceito de aplicabilidade já abordado: os sacrifícios, festividades e serviços sacerdotais eram mandamentos aplicáveis ao período pré-Cristo.

Em terceiro lugar, vale ressaltar o caso da circuncisão. É provável que o argumento dos não adventistas em relação aos 613 mandamentos se baseie em Gálatas 5:3. Ali Paulo diz que quem se deixa circuncidar está obrigado a guardar toda a Lei. O que o crítico do adventismo faz aqui é trocar o termo “circuncisão” por “sábado” ou “alimentos puros e impuros”. O pressuposto é: sábado e distinção de alimentos tem a mesma natureza que a circuncisão. E se tem, deveríamos nós, adventistas, passar também pela circuncisão, tal como guardar todos os outros mandamentos da Torá.

Há uma grande falha nesse argumento. Ele ignora que a circuncisão foi instituída como um sinal da aliança de Deus com Abraão e sua descendência física (Gn 17:9-14), não como um mandamento de aplicação universal. Por essa razão, não há uma passagem do AT em que Deus exija circuncisão de seguidores não israelitas. Entretanto, ao gentio que desejava servir a Yahweh era requerido, guardar o sábado (Is 56:1-8). Ou seja, o gentio podia não ser circuncidado, não comer do cordeiro da Páscoa (só circuncidados podiam comer – Ex 12:42-49), presumivelmente não participar das demais festividades, mas devia guardar o sábado. Nota-se, assim, que o fato de guardar o sábado não o obrigava a também se circuncidar e praticar todos os ritos judeus. A conclusão é óbvia: circuncisão e alguns outros ritos eram só para israelitas. O sábado era para todos.

A razão pela qual o sábado se aplicava a todos é simples: ele foi instituído ao término da criação, quando não havia nem judeus, nem Israel, nem Abraão, nem mesmo pecado no mundo (Gn 2:1-3). De modo semelhante, a distinção entre alimentos puros e impuros remete a época de Noé, quando o homem começou a comer carne (Gn 7:2-9). Também a proibição de comer sangue é da época de Noé (Gn 9:4-5) e foi, aliás, explicitamente mencionada pelos apóstolos como ainda válida (At 15:20 e 29). São preceitos, portanto, que possuem natureza muito distinta da circuncisão, esta sim dada exclusivamente aos israelitas.

O que fica claro é que a Torá continua válida, mas nem todos os mandamentos possuem natureza tal que são aplicáveis a qualquer contexto. Os que são aplicáveis a todos os contextos e, portanto, também aos cristãos na nova aliança são geralmente chamados de morais. Eles têm a ver com a relação do homem com Deus, com o próximo e com a própria vida. Estão baseados diretamente no amor e em objetivos práticos; portanto, devem continuar sendo praticados por nós. O decálogo é um exemplo dessa espécie de mandamentos. Todos eles têm origem anterior à Torá (conquanto sua formalização escrita tenha sido dada a Moisés) e não possuem ligação exclusiva com a teocracia judaica ou o sacrifício de Cristo Jesus. Por isso são universal e eternamente aplicáveis.

Uma vez que só podemos cumprir os mandamentos que nos são aplicáveis (obviamente), podemos dizer que cumprimos toda a Torá quando cremos em Cristo e praticamos os mandamentos de aplicação universal e eterna (em especial, os morais). Não é necessário (nem logicamente possível) guardar todos os 613. De fato, esse é o argumento de Paulo (Rm 13:8-10 e Gl 5:14), o qual ecoa os próprios ensinos de Jesus sobre a essência da Torá e a essência da salvação em seu sacrifício (Mt 22:36-40; Mc 12:28-34; Lc 10:25-28; Jo 13:34-35; Mt 12:7; Jo 17:3; Jo 2:19-22; Jo 3:16). Em suma, os adventistas e nenhum outro cristão que siga o sábado e a distinção entre os alimentos puros e impuros está obrigado a guardar os 613 mandamentos. Isso é um absurdo teológico.

Por Davi Caldas

Fonte: Reação Adventista

Sobre Weleson Fernandes

Escritor & Evangelista da União Central Brasileira

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