O período profético de supremacia papal iniciado em 538 d.C. foi palco de rigorosas sanções civis e eclesiásticas dirigidas contra os violadores da observância do domingo, visto ser este o sinal mais visível do poder e autoridade da Igreja.
Ellen G. White escreveu:
Entre as principais causas que levaram a igreja verdadeira a separar-se de Roma estava o ódio desta ao sábado bíblico. Conforme fora predito pela profecia, o poder papal lançou a verdade por terra. A lei de Deus foi lançada ao pó, enquanto se exaltavam as tradições e costumes dos homens. As igrejas que estavam sob o governo do papado, foram logo compelidas a honrar o domingo como dia santo. No meio do erro e superstição que prevaleciam, muitos, mesmo dentre o verdadeiro povo de Deus, ficaram tão desorientados que ao mesmo tempo em que observavam o sábado, afastavam-se do trabalho também no domingo. Isso, porém, não satisfazia aos chefes papais. Exigiam não somente que fosse santificado o domingo, mas que o sábado fosse profanado; e com a mais violenta linguagem denunciavam os que ousavam honrá-lo. Era unicamente fugindo ao poder de Roma que alguém poderia em paz obedecer à lei de Deus. (1)
Durante os primeiros séculos do cristianismo, havia muitos cristãos que continuaram celebrando o sábado, bem como o domingo. Durante muito tempo, os bispos tentaram em vão suprimir essa celebração do sábado. O Concílio de Laodiceia, finalmente, emitiu um decreto, no ano 364, pelo qual os cristãos deviam trabalhar no sábado judaico, abstendo-se, porém, de trabalhar no domingo. (2)
A aversão da Igreja ao sábado bíblico cristalizou-se, portanto, nas diversas leis civis e eclesiásticas que favoreceram a observância do domingo em detrimento do sábado e de seus observadores.
Reflexos da intolerância religiosa nas leis dominicais
Desde o princípio do século IV que o domingo havia alcançado preferência oficial sobre o sábado. No ano 300 d.C., o Concílio de Elvira decretou que “se alguém na cidade deixar de vir à igreja durante três domingos, que seja excomungado por um curto período para que possa ser corrigido”. (3) Quarenta anos mais tarde, o bispo Osório de Córdoba menciona essa mesma prescrição no Concílio de Sárdica. A sanção decretada pelo Concílio de Elvira foi posteriormente reiterada no sínodo imperial de Constantinopla, realizado em 692. (4)
As primeiras leis dominicais
A partir do século V, verifica-se uma crescente tendência de inserir o domingo no âmbito da moral e do direito eclesiástico, dissipando-se certos valores teológicos atribuídos ao primeiro dia e produzindo-se sua “sabatização”, com uma dupla problemática, mutuamente entrelaçada: a obrigação de ouvir toda a missa e de não trabalhar no domingo – duas leis ou mandamentos da Igreja cuja infração importará numa pena de pecado mortal. Para garantir o reto cumprimento das obrigações dominicais, a autoridade da Igreja e o braço secular aparecem, em certos momentos, atuando em coalizão. (5)
Silvestre I (314-335) foi o primeiro papa a sustentar a transferência da guarda do sábado para o domingo, e sua decisão reveste-se de especial importância, visto que foi durante o seu pontificado que Constantino promulgou a primeira lei civil sobre o descanso dominical.
O bispo Eusébio, amigo do imperador e o primeiro teólogo a argumentar em favor do domingo, afirma que Constantino “decretou que todos os súditos do Império Romano observassem o dia do Senhor como um dia de descanso. […] E sendo o seu desejo ensinar seu exército a zelosamente honrar o dia do Salvador (cujo nome deriva da luz do sol), concedeu livremente aos que entre eles participavam da divina fé a atenderem durante o tempo livre aos serviços da Igreja de Deus, a fim de que pudessem dedicar-se ao culto religioso sem nenhum impedimento”. (6)
Posteriormente, os imperadores cristãos confirmaram e ampliaram as decisões de Constantino. Todos os shows públicos, apresentações teatrais, danças e divertimentos foram estritamente proibidos no “dia do Senhor”. Decretos similares também exigiam a assistência dos fiéis ao culto público e uma rigorosa observância do dia mediante a cessação solene de todas as atividades seculares e abstinência de diversões e recreações vãs. (7)
No ano 368, Valentiniano e Valente proibiram a cobrança de impostos e dívidas públicas “no dia do Senhor”. Em 386, o termo dies dominica foi incorporado à legislação civil juntamente com a denominação pagã de “dia do sol”. Três anos depois, a lei do repouso dominical foi reeditada pelos imperadores Valentiniano, Teodósio e Arcádio, e em 392 os mesmos soberanos proibiram os certames circenses aos domingos. (8) Em um concílio realizado em Cartago (399 ou 401), membros do clero insistiram quanto à proibição de diversões públicas no “dia do Senhor”, embora seja provável que este tipo de interdição jamais tenha sido efetivamente aplicada. (9)
A primeira lei eclesiástica concernente à observância do domingo foi promulgada durante o Concílio de Laodiceia, realizado em fins do século IV. O cânon 29 determinava que “os cristãos não devem judaizar descansando no sábado, mas devem trabalhar nesse dia, honrando, antes, o Dia do Senhor, e, se puderem, descansando nesse dia como cristãos. No entanto, se alguém for encontrado judaizando, será deixado sob o anátema de Cristo”. (10)
Note que, por meio desse decreto, o concílio permitiu que houvesse culto no dia de sábado, mas designou-o como dia de trabalho, proibindo sua observância como dia santo sob pena de anátema. Mais tarde, o papa Gregório I (590-604), dirigindo-se aos cidadãos de Roma, expressou sua indignação contra os guardadores do sábado ao declarar:
Chegou aos meus ouvidos que certos homens de espírito perverso têm semeado entre vós algumas coisas que são errôneas e opostas à santa fé, de modo a proibir qualquer trabalho no dia de sábado. De que mais posso chamá-los, a não ser de pregadores do Anticristo? (11)
As leis dominicais se tornam mais rigorosas
Em virtude do acesso da Igreja ao poder temporal durante este período, o sexto século é o divisor de águas a partir do qual as principais medidas para anular o sábado e promover a guarda do domingo são adotadas pelos sínodos eclesiásticos e os editos civis.
Nessa época, encontramos o bispo Cesário de Arlés (470-543) ensinando que os Doutores da Igreja haviam decretado que toda a glória do sábado judaico havia sido transferida para o domingo, e que os cristãos deviam santificá-lo do mesmo modo como os judeus foram ordenados a santificar o sábado. (12) Gregório de Tours (538-594) chega ao ponto de relatar a história de uma mulher paralisada por um castigo de Deus porque ousara pentear-se no domingo. (13)
O Terceiro Sínodo de Orleans, realizado em 538 (o mesmo ano, aliás, que assinala o início do período profético de supremacia papal), reprovou essa tendência de “judaizar” a observância do domingo, considerando tal atitude como contrária aos interesses cristãos. Todavia, é significativo que pela primeira vez um sínodo eclesiástico tenha incorporado as prescrições civis sobre o descanso dominical, acrescentando, porém, à legislação constantiniana já conhecida a proibição dos trabalhos agrícolas. (14) Os cânones 28 e 31 determinam, respectivamente:
Trata-se de superstição judaica o não poder cavalgar ou caminhar no domingo, nem adornar a casa ou a si mesmo. Contudo, as ocupações no campo são proibidas, para que as pessoas possam comparecer à igreja e dedicar-se à oração. (15)
Decidimos permitir realizar no dia do Senhor o que antes era permitido. Quanto aos trabalhos do campo, como arar, ou trabalhar na vinha, colher ou fazer feno […] julgamos necessário abster-se deles, a fim de poder frequentar mais facilmente a igreja e dedicar-se à oração. (16)
Note-se que enquanto a lei dominical de Constantino permitia aos agricultores trabalhar no domingo, esse decreto agora os proibia especificamente. Esse foi um passo gigantesco rumo à aplicação das especificações sabáticas do Pentateuco ao domingo.
É significativo que antes de se transformarem em leis civis, as prescrições acerca da santificação do domingo procedessem das normas canônicas dos sínodos provinciais, os quais, por sua vez, originaram-se das exortações pastorais dos bispos quanto à importância do descanso dominical.
As autoridades eclesiásticas da época sempre se preocuparam em inculcar nos fiéis o respeito pelo preceito dominical, com recomendações, penas espirituais, multas pecuniárias e até castigos corporais, segundo a classe social do infrator. Assim, o Concílio de Macon, do ano 585, estabelecia multas para os homens livres, ao passo que, para os camponeses e servos, que não teriam com que pagar, previam-se chibatadas. (17) As leis de Macon também foram publicadas em 10 de dezembro de 585, pelo rei Guntram, sob a forma de um decreto estipulando uma cuidadosa observância do domingo. Esse tipo de apoio à Igreja por parte do poder civil cresceria em magnitude e alcance durante os séculos subsequentes. (18)
Em 589, o Concílio de Narbona estabelecia para os transgressores do descanso dominical multas pecuniárias, no caso de homens livres, e castigos corporais, no caso de servos. Para assegurar essa observância, serão designados homens zelosos que advertirão os desidiosos, e reportarão ao sacerdote. (19)
Aumentam ainda mais as prescrições e o rigor
No século VII, as determinações sobre o descanso dominical atribuídas ao rei franco Dagoberto I estabeleciam o seguinte:
Se alguém realizar obra servil no domingo, e se se tratar de um homem livre que junge seus bois ao carro e parte de viagem, perderá o boi do lado direito; se ceifar ou colher, ou realizar qualquer obra servil no domingo, será repreendido até duas vezes, e, se não se corrigir, receberá 50 golpes nas costas; se isso não o corrigir, e se continuar trabalhando no domingo, ser-lhe-á confiscada a terça parte de seus bens; no caso de novas reincidências, perderá sua liberdade, já que não quis ser livre no santo dia. Se for um servo, será esbofeteado; se for reincidente, perderá a mão direita, pois é necessário proibir absolutamente esses atos que excitam a cólera de Deus e nos atraem as pragas da miséria. (20)
Os Ditos de São Fermin, um catecismo do século VIII destinado aos missionários e sacerdotes de paróquias, traziam estas orientações sobre o descanso dominical:
Honrais os domingos; não façais nele nenhum trabalho servil, nem em vossos campos, nem em vossos prados, nem em vossas vinhas, se se tratar de trabalhos penosos. Não vos metais em processos no dia do Senhor. Na cozinha, preparai somente o necessário para vos alimentar, porque o domingo foi criado primeiro, as trevas foram expulsas, e se fez a luz. (21)
Um sínodo realizado em 772 estabeleceu uma constituição impondo a observância do “dia do Senhor” segundo as instruções da lei civil e dos decretos de concílios precedentes. Se alguém transgredisse o descanso dominical, estaria sujeito à punição conforme a lei e os concílios haviam determinado. Todo o homem devia ter o propósito de adorar a Deus e abster-se do trabalho secular no domingo:
Se qualquer homem trabalhar com sua carroça neste dia, ou fizer qualquer negócio secular, sua parelha será imediatamente confiscada para uso público, e se o indivíduo persistir em sua loucura será vendido como escravo. (22)
Em 789, um decreto de Carlos Magno proibia qualquer trabalho no domingo, considerado uma violação do terceiro mandamento (do catecismo). Especificava, inclusive, quais atividades não eram permitidas nesse dia:
Promulgamos como está ordenado na lei de Deus, que ninguém faça qualquer trabalho servil no dia do Senhor. […] que nenhum homem se ocupe em obras de pecuária, na preparação de vinhas, arando terras, fazendo feno, cercando sua propriedade, roçando ou cortando árvores, trabalhando em minas, construindo casas, plantando hortas, nem saindo à caça, e que não seja lícito às mulheres tecer, confeccionar vestuários, costurar, fiar a lã, estomentar o linho, lavar a roupa em público, ou tosquiar ovelhas; que compareçam, porém, à igreja, ao serviço divino, e louvem ao Senhor seu Deus pelas boas coisas que nesse dia tem feito por eles. (23)
O papa Eugênio, num sínodo realizado em Roma por volta do ano 826, observando que determinadas pessoas, especialmente mulheres, gastavam seu tempo em danças e cantigas, instruiu “que os padres da Paróquia devem, de tempos em tempos, exortar tais infratores, e ordenar que compareçam à igreja para fazer suas orações, caso contrário poderão trazer grande calamidade sobre si mesmos e a seus vizinhos”. (24)
Em 829, em um concílio provincial que teve lugar em Paris, os prelados se queixaram de que “o dia do Senhor não tem sido observado com a mesma reverência que convém à religião e ao costume de seus antepassados, o que foi motivo para que Deus enviasse vários juízos sobre eles, e de modo notável punisse algumas pessoas por seu desprezo e insulto. Porque muitos de nós, pelo nosso próprio conhecimento, e outros por ouvir dizer, sabem que vários compatriotas, após trabalharem nesse dia, foram mortos por raios, outros, acometidos com convulsões em suas juntas, tendo perecido miseravelmente. É evidente quão grande foi o desgosto de Deus pela negligência deles nesse dia”.
Para remediar tal situação, os mesmos prelados dão o seguinte conselho:
Em primeiro lugar, os sacerdotes e ministros, depois reis e príncipes, e todo o povo fiel empreguem seus maiores esforços e cuidados para que o dia seja restabelecido à sua honra e, para crédito do cristianismo, seja mais dedicadamente observado no futuro. (25)
Em seguida, os prelados se dirigiram às autoridades seculares, rogando-lhes que promulgassem um edito que inspirasse terror ao povo e o compelisse a abster-se do trabalho secular no domingo.
Em um sínodo realizado em Roma sob Leão IV, reafirmaram-se com maior força todas as decisões anteriores:
Que nenhum homem se atreva a partir de hoje a comprar ou vender no dia do Senhor… nem executar qualquer tipo de trabalho que pertença à pecuária.
Mais tarde, estas determinações foram incorporadas ao Direito Canônico e impostas pelas autoridades civis à maior parte da cristandade. (26)
Outras leis dominicais
Proibimos as vendas públicas, disputas civis e processos judiciais no dia do Senhor, como também a agricultura e todas as formas de trabalho, exceto as de natureza adequada ao dia e próprias à adoração divina. – Concílio de Arles.
Concordamos que não haja comércio ou processos no dia do Senhor, o qual os cristãos vêm aproveitar em louvores a Deus e em agradecimentos por suas bênçãos, permanecendo assim até o anoitecer. – Concílio de Tours.
Decretamos que o dia do Senhor deve ser observado com a devida veneração, e que para este fim as pessoas se abstenham de todo trabalho secular, de compra, corte de árvores ou coisa semelhante, e que nenhuma causa criminal seja examinada no sentido de decretar a punição de malfeitores mediante morte ou outro meio. – Concílio de Mentz.
Em conformidade com o mandamento do Senhor, nenhum indivíduo se atreva a realizar qualquer trabalho habitual aos domingos, nem promova litígios, nem vá a feiras e mercados. – Concílio de Rheims. (27)
Durante os séculos de ferro da Igreja, voltar-se-á com força redobrada ao caráter penal do descanso dominical. Se os sínodos não se ocupam do domingo a não ser esporadicamente, as leis civis, por exemplo, as leis irlandesas ou as leis de São Estevão, rei da Hungria, acionarão todo um arsenal de penas para exigir o correto cumprimento do repouso dominical. Os negligentes são condenados a uma pena corporal e a raspar a cabeça. Excetuam-se os que devem guardar os fogos, e os que moram muito longe da igreja. Mesmo nesses casos, porém, pelo menos um membro da família deve estar presente à missa e ofertar três pães e um círio.
No século XI, aqueles que não observavam o domingo eram normalmente castigados com bordoadas ou com a requisição dos instrumentos e dos animais de trabalho. Os castigos corporais, geralmente previstos também para outros delitos, eram administrados publicamente na praça ou no átrio da igreja. A penitência canônica imposta aos que confessavam ter infringido o descanso dominical era geralmente de três dias de jejum a pão e água. No século XIII, no Languedoc, a multa pecuniária é sucedânea do castigo corporal. (28)
No século X, Reginon de Prüm, em seu Liber de synodalibus causis, uma espécie de manual para a visita pastoral dos bispos, propõe um questionário tratando do domingo. Seguem algumas das perguntas que o bispo deve fazer a seus sacerdotes:
Todos, sem exceção, assistem à missa, às matinas e às vésperas?
Os porqueiros e outros guardadores de rebanhos vêm à igreja aos domingos para ouvir a missa?
Por aqui há pessoas perversas e desviadas de Deus, que mesmo aos domingos não vêm à igreja?
Em cada localidade foram nomeados homens sinceros e tementes a Deus, para lembrar aos outros sua obrigação dominical e denunciar os faltosos ao sacerdote? (29)
No final do século XIII, uma lista de obras permitidas ou proibidas no domingo, elaborada por Ricardo de Middleton, apresenta o seguinte:
Obras material e formalmente servis: trabalho corporal executado por um salário: proibido, sob pena de pecado mortal.
Obras materialmente liberais e formalmente servis: trabalho espiritual executado por um salário, por exemplo, o ensino: proibido, sob pena de pecado venial.
Obras materialmente servis, porém formalmente liberais: trabalho corporal realizado por caridade, por exemplo, construir a casa dos pobres: permitido.
Obras materialmente servis e formalmente liberais: permitidas. (30)
Um caso representativo
Em 1568, uma mulher foi acusada de não comer carne de porco e de trocar suas roupas brancas aos domingos. Segue um extrato do registro oficial da Inquisição que descreve o comportamento da vítima durante a tortura:
Ordenou-se fosse ela colocada sobre o potro. Disse ela: “Señores, por que não quereis dizer-me o que devo fazer? Señor, ponde-me no chão, não declarei eu que fiz tudo?” Mandaram-na contar o fato. Respondeu ela: “Não me lembro, tirai-me daqui, eu fiz o que as testemunhas disseram”. Ordenaram-lhe que contasse detalhadamente o que as testemunhas haviam dito. Respondeu: “Señor, conforme vos disse, não sei ao certo. Declarei que fiz tudo o que as testemunhas disseram. Señores, soltai-me, pois não me lembro do caso”. Mandaram-na contar o caso. Disse ela: “Señores, não me adianta nada dizer que fiz aquilo, e confessei que meu ato me trouxe a este sofrimento. Señor, vós conheceis a verdade. Señores, por amor de Deus tende piedade de mim. Oh! señor, tirai essas coisas de meus braços. Señor, soltai-me, estão me matando”. Ela estava amarrada no potro com cordas, foi advertida para que dissesse a verdade e ordenou-se que apertassem os garrotes. Declarou ela: “Señor, vede como essa gente está me matando. Eu cometi o ato. Por amor de Deus, soltai-me”. (31)
A redefinição do cristianismo
Alfred Baudrillart, reitor do Instituto Católico de Paris, escreveu que “a Igreja Católica respeita a consciência e a liberdade… ela acredita e professa que ‘a fé é uma obra de persuasão, não de força, fides suadenda est, non imponenda‘… No entanto, quando desafiada pela heresia, ela não se satisfaz com a persuasão; quando argumentos de ordem intelectual e moral se mostram insuficientes, ela recorre à força, ao castigo corporal, à tortura. Ela cria tribunais semelhantes aos da Inquisição, ela busca as leis do Estado para seu auxílio; se necessário, ela promove cruzadas ou guerras religiosas…” (32)
No período pós-nicênico, todos os afastamentos da fé da igreja-estado reinante não só foram abominados e excomungados como erros religiosos, mas também tratados como crimes contra o Estado cristão, e, por isso, punidos com sanções civis, primeiro com a deposição, o banimento e o confisco de bens, e, depois de Teodósio, até mesmo com a morte. (33)
Durante a maior parte da Idade Média, a Igreja e as autoridades seculares concentraram ingentes esforços no sentido de impor a observância do domingo. A repressão religiosa instaurada na virada do século XIII constitui, talvez, o mais trágico exemplo desse período, pois coincidiu com a prosperidade material e os sucessos externos da Igreja; o pontificado romano estava mais potente que nunca, apoiado na uniformização de crenças e ritos em todo o Ocidente.
O IV Concílio de Latrão, em 1215, foi o acontecimento decisivo que redefiniu o que era necessário para ser considerado um cristão. Todo fiel deveria frequentar a missa dominical, confessar-se todos os anos e comungar na Páscoa. (34) Os que não se enquadrassem nesse modelo eram considerados hereges. Dentre os desvios que estavam na mira da Igreja, a heresia representava a maior ameaça, pois a conduta de um herege, que fora um cristão e recusara a obediência, era vista como um desafio à ordem social.
A Inquisição, criada em 1231, fecharia o cerco contra os hereges e multiplicaria as perseguições. Somente no século XVIII os tribunais do santo ofício seriam abolidos na maioria dos Estados italianos. A Inquisição na Espanha e Portugal só seria abolida em 1820 e 1821, respectivamente. (35)
Ellen White escreveu:
O papado se tornou o déspota do mundo. Reis e imperadores curvavam-se aos decretos do pontífice romano. O destino dos homens, tanto temporal como eterno, parecia estar sob seu domínio. Durante séculos as doutrinas de Roma tinham sido extensa e implicitamente recebidas, seus ritos reverentemente praticados, suas festas geralmente observadas. Seu clero era honrado e liberalmente mantido. Nunca a Igreja de Roma atingiu maior dignidade, magnificência ou poder. (36)
Contudo, a hegemonia papal, e com ela o domingo, não deveriam durar para sempre. A mesma profecia que indicara o início e desenvolvimento da supremacia eclesiástica e política de Roma antecipara também sua queda. Este capítulo da história da Igreja será o tema de nosso próximo post.
Notas e referências
1. Ellen G. White. O Grande Conflito, 19ª ed. Santo André, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1978, p. 64.
2. A. Urban. Teacher’s Handbook to the Catholicism, Vol. II – The Commandments. New York: Joseph P. Wagner, 1903, p. 113.
3. Thomas Slater. “Sunday”. The Catholic Encyclopedia, Vol. 14. New York: Robert Appleton Company, 1912. Acesso em: 22 set. 2011, 08h42min.
4. Xabier Basurko. Para Viver o Domingo. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 179 e 180.
5. Ibid., p. 25 e 26. Essa “sabatização” do domingo consistiu em transferir para este dia as obrigações inerentes ao sábado bíblico. Tal equiparação, contudo, além de ter sido motivada por um forte espírito farisaico, tornou-se possível somente depois do reconhecimento civil do descanso dominical no quarto século. Eusébio de Cesareia foi quem introduziu a ideia de que “o sábado foi transferido para o domingo”. Em seu extenso comentário ao Salmo 91 (92), ele diz: “Sim, tudo o mais, tudo quanto se devia observar durante o sabá, nós o transferimos para o dia do Senhor, porque é mais importante, o primeiro e o que tem mais valor do que o sábado. Foi nesse dia da criação do mundo, com efeito, que o Senhor disse: Faça-se a luz; e a luz foi feita; foi também nesse dia que o sol da justiça se elevou para nossas almas. Por essa razão, a tradição manda que nos reunamos nesse dia, e prescreve que cumpramos aquilo que o Salmo anuncia.” – Commentaria in Ps. 91 [92]: p. 23, 1171-1172. Citado em Xabier Basurko, Para Viver o Domingo, p. 162.
6. Philip Schaff. A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church, Second Series, Vol. I. Eusebius Pamphilus: The Life of Constantine
. Book IV, Chapter XVIII, p. 1039 e 1040. Grand Rapids, MI: Christian Classics Ethereal Library. Acesso em: 21 dez. 2010, 08h12min.
7. Lyman Coleman. Ancient Christianity Exemplified. Philadelphia: Lippincott, Grambo & Co., 1853, p. 531.
8. Xabier Basurko, op. cit., p. 152 e 153.
9. Philip Schaff. History of the Christian Church, Vol. III: Nicene and Post-Nicene Christianity. A.D. 311-600. Grand Rapids, MI: Christian Classics Ethereal Library, 2002, p. 76. Acesso em: 10 dez. 2010, 10h47min.
10. Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church, Second Series, Vol. 14. Philip Schaff, Henry Wace (Ed.). Buffalo, NY: Christian Literature Publishing Co., 1900. Revised and edited for New Advent by Kevin Knight. Acesso em: 25 nov. 2011, 08h47min.
11. Saint Gregory the Great Epistles, Vol. 36. Book XIII, Epistle I. Acesso em: 06 fev. 2012, 10h06min.
12. Thomas Slater, op. cit.
13. Xabier Basurko, op. cit., p. 165.
14. Ibid., p. 166.
15. Philip Schaff, op. cit., p. 266.
16. Xabier Basurko, op. cit., p. 166.
17. Ibid., p. 168. Uma parte do texto desse concílio traz a seguinte orientação sobre aqueles que desprezavam o “dia do Senhor”: “Vemos que o povo cristão, por temeridade, despreza o domingo, e trabalha nesse dia como nos dias comuns. Por isso, decidimos, por esta carta sinodal, que cada um, em sua igreja, exorte o povo que lhe é confiado; se observarem nossas advertências, aproveitarão muitíssimo; caso contrário, submeter-se-ão aos castigos que lhes impomos.” – Xabier Basurko, Para Viver o Domingo, p. 188.
18. Kenneth A. Strand. “O Sábado”. Em Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia. Raoul Dederen (Ed.). Tatuí, SP: CPB, 2011, p. 580.
19. Xabier Basurko, op. cit., p. 169. Diz o decreto de Narbona: “É proibido, tanto a livres como a servos, a godos, romanos, sírios, gregos, como judeus, executar qualquer espécie de trabalho no dia de domingo… Se alguém ousar proceder em contrário, se for livre, pagará seis solídeos aos magistrados; se for servo, receberá cem bastonadas.” – Joannes Dominicus Mansi, Sacrorum Conciliorum: Nova et Amplissima Collectio, Vol. 9, “Concilium Narbonense”, p. 1015, cânon IV.
20. Ibid.
21. Ibid., p. 168.
22. Thomas Morer. A Discourse in Six Dialogues on the Name, Notion, and Observation of the Lord’s Day. London: Tho. Newborough, 1701, p. 268.
23. Peter Heylyn. The History of the Sabbath, Second Edition, Revised. London: Henry Seile, 1636, Part II, Chap. 5, Sec. 7, p. 256.
24. Thomas Morer, op. cit., p. 271.
25. Ibid.
26. Peter Heylyn, op. cit., p. 257 e 258.
27. Thomas Morer, op. cit., p. 269 e 270.
28. Xabier Basurko, op. cit., p. 172 e 190.
29. Ibid., p. 189.
30. Ibid., p. 174.
31. Henry Kamen. A Inquisição na Espanha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p. 218 e 219. O potro consistia em ser a vítima fortemente amarrada numa armação com cordas que passavam em volta do corpo e dos membros e que eram controladas pelo carrasco, que as apertava virando as extremidades. Com cada volta, as cordas fincavam-se no corpo.
32. Alfred Baudrillart. The Catholic Church: the Renaissance and Protestantism. London: Kegan Paul, Trench, Trübner & Co. Ltd., 1907, p. 182 e 183.
33. Philip Schaff, op. cit., p. 99.
34. Em nome de Deus. Dossiê Inquisição. História Viva. São Paulo: Duetto, ano L, nº 10, agosto de 2004, p. 29.
35. Ibid., p. 30 e 31.
36. Ellen G. White, op. cit., p. 60.