O fim (transitório) de uma era trágica

Por mais razoáveis que tenham sido os motivos para a escolha do domingo como o dia do Senhor, a adoção cristã dessa prática implicou uma trágica identificação com as ideias e a mentalidade pagãs expressas no dies solis.

O conceito romano de religião implicava um dever civil em que a lealdade aos deuses se confundia com a lealdade ao império.

A religião era considerada um contrato entre os deuses e o Estado, e as responsabilidades religiosas do cidadão eram definidas pela autoridade pública. Infringir essas obrigações significava desobedecer às leis civis, e, portanto, incorrer na pena correspondente determinada pelo Estado.

Tal conceito era incapaz de abranger as verdadeiras necessidades humanas, pois estava circunscrito aos interesses de um Estado teocrático onde o indivíduo só possuía algum valor na qualidade de cidadão.

Quando a igreja cristã associou-se ao paganismo, absorveu muito dessa mentalidade e estrutura, o que se refletiu mais tarde na rigidez de sua política. A imposição cristã do descanso dominical é o exemplo mais significativo desse fenômeno.

E assim como a letra não santifica a música, as atribuições cristãs ao domingo pagão jamais poderiam santificar um dia que o próprio Deus não declarou santo. Esta é a principal razão porque a observância desse dia não pode resultar em bênçãos para a humanidade.

O papado recebe uma ferida mortal

O caráter coercitivo do domingo perdeu força juntamente com a queda do poder temporal do papado predita pela palavra profética. Roma papal deveria exercer seu domínio por 1.260 anos, contados a partir de 538 d.C. Antes, porém, que esse período chegasse ao seu fim, já seriam plenamente visíveis os sinais de declínio da Igreja. O próprio Salvador, referindo-se a essa grande tribulação, afirmou que aqueles dias seriam abreviados por causa dos escolhidos (Mateus 24:21-22).

Com efeito, a partir do século XIV surgem fortes indícios de uma cultura laica, humanista e revolucionária que desafia a cultura católica medieval predominante. Em 1324, por exemplo, os doutores parisienses Marsílio de Pádua e João de Jandun escreveram o Defensor Pacis, um livro revolucionário dirigido contra o papado, considerado inimigo da paz. Nele, os autores declaram:

A doutrina da plenitude dos poderes é a ruína da Igreja que, como comunidade dos fiéis, tem um caráter divino. Ela não tem como chefe supremo senão o Cristo; não deve possuir bens; não deve ser senão uma instituição religiosa. O detentor do poder da Igreja não é o Papa, mas a comunidade cristã; a sua instância suprema é o Concílio ecumênico, que só deve ser convocado para questões de fé, e no qual devem também ter assento e voto leigos inteligentes, conhecedores da Bíblia… O seu primado [do papa] funda-se somente em especiosos motivos jurídicos; e pois que não se pode demonstrar com a Bíblia que Pedro tenha estado em Roma, nem que tenha sobre os outros Apóstolos qualquer precedência (a não ser a da idade), o bispo de Roma não pode nem dizer-se seu sucessor nem elevar-se acima de outro bispo qualquer que ele seja. Só a Bíblia merece fé absoluta; fora dela, nenhum escrito, os decretos do Papa menos que todos. Não é ao Papa que compete o direito de coerção, mas ao príncipe que, como legislador máximo, convoca o Concílio. Este, contudo, não é senão o mandatário dos cidadãos; e é responsável perante o povo que é o portador supremo de todos os direitos do Estado. (1)

Poucos anos mais tarde, durante a peste que assolava a Europa e que vitimou um terço de seus habitantes, circulou em Avinhão uma “carta de Lúcifer ao papa”, pela qual exprime sua gratidão a ele, aos seus cardeais e aos seus prelados por todo o auxílio que lhe prestam na luta contra o Cristo. Saúda-os a todos, em nome também de sua mãe, a Soberba, e de todos os vícios, irmãos dela. (2)

Esses primeiros ventos de indignação pressagiavam um golpe mutilador no papado, que não viria antes que a Reforma Protestante e o Iluminismo ocupassem seu lugar na história. O primeiro produziria um forte impacto no princípio da exclusividade eclesiástica; o segundo, uma revolução radical de opiniões que favoreceria mais tarde a tolerância religiosa, afrouxando gradualmente a base da igreja-estado e fazendo uma clara distinção entre os direitos civis e religiosos e o poder temporal e espiritual.

O golpe decisivo da Revolução Francesa

O auge desse longo processo revolucionário ocorreu em julho de 1789, quando revolucionários franceses se reuniram em uma Assembleia Nacional Constituinte. Era o início da Revolução Francesa, em parte consequência do próprio mundo que Roma criara em torno de si, e cuja rigidez inflamava agora séculos de insatisfação e revolta.

Durante a fase mais aguda da Revolução, elementos radicais iniciaram um processo de descristianização generalizada, cuja maior vítima foi a Igreja Católica: logradouros públicos com nomes de santos foram renomeados; ícones religiosos foram destruídos e substituídos por imagens que incorporavam os ideais revolucionários; igrejas e catedrais foram privadas de seus altares e depredadas; a Igreja foi, finalmente, despojada de suas riquezas. Nem mesmo o calendário cristão foi poupado: os meses foram renomeados segundo as estações do ano e divididos em três semanas de dez dias cada.

Para a Europa, mais chocante que a decapitação de Luís XVI pelos revolucionários franceses foi o duro golpe sofrido pela Igreja e o papado, vistos pelos insurgentes como instrumentos de ignorância e tirania. Joseph Bernhart, em sua obra O Vaticano, descreve com estas palavras esse dramático acontecimento:

O armistício e depois a paz de Tolentino, em 1797, custam ao Papa Bolonha, Ferrara e a Romanha, 36 milhões de liras, tesouros de arte das igrejas, da biblioteca e do Museo Pio-Clementino completado pelo Papa. Tudo isso é levado em carros para o Sena. Mas Paris exige ainda mais. O “Lama da Europa” e a sua religião devem desaparecer para sempre. Forma-se em Roma um partido republicano e iça a bandeira tricolor. “Abaixo o Papa!” Os soldados pontifícios fuzilam um jovem general francês. Para vingá-lo, o Diretório manda outro: Berthier. A cidade é obrigada a render-se. O Papa é deposto, é proclamada a república, o governo provisório é confiado a sete cônsules. A árvore da liberdade ergue-se no Capitólio… O Papa não fugira, como se tinha esperado. Berthier intimou-o, pois, a abdicar… Os Franceses receiam um levante dos Romanos; prendem o Papa para levá-lo da cidade. Ele quer morrer em Roma. E Berthier: “Podeis morrer em qualquer lugar”. (3)

Pio VI, sendo levado de Roma a Valence, França, onde morreu em 1799.

Em 15 de fevereiro de 1798, Berthier emitiu a seguinte declaração:

O povo romano é reintegrado aos seus direitos de soberania ao proclamar sua independência, apropriar-se do governo da antiga Roma, e constituir a República Romana. O general-em-chefe do exército francês na Itália declara, em nome da República Francesa, que reconhece a República Romana independente, e que a mesma está sob a proteção especial do exército francês. O general-em-chefe também reconhece, em nome da República Francesa, o governo provisório eleito pelo povo soberano. Toda autoridade temporal que emana do Papa é, consequentemente, suprimida, e não mais exerce qualquer função… A República Romana, reconhecida pela República Francesa, abrange todo o território que permaneceu sob a autoridade temporal do Papa, após o Tratado de Campo-Formio. (4)

A Declaração do Fim da antiga Autoridade Papal, emitida por Berthier, com o original em francês à esquerda e a transcrição em italiano à direita.

Vendo-se obrigado a abandonar Roma em 20 de fevereiro, Pio VI partiu para o exílio, morrendo um ano depois na cidade francesa de Valence, em 19 de março de 1799. Ao ser informado de sua morte, Napoleão escreveu: “Morre o papa. A velha máquina da Igreja desmorona-se por si mesma”. (5)

Consequências da queda do papado

A queda do poder temporal do papa causou imenso júbilo na França revolucionária. Na ocasião, o presidente do Diretório pronunciou, no conselho dos quinhentos, o seguinte discurso:

Este poder estava em contradição com as doutrinas fundamentais que pretendia reconhecer, aceitava o nome cristão para aviltá-lo, aniquilava ainda a religião que pregava, pretendia que seu reino não era deste mundo e, não obstante, queria arrogar-se o domínio universal. Há 14 séculos demandava a humanidade o aniquilamento de um poder oposto à sociedade e que havia coberto a Europa de fogueiras e a havia regado com sangue, que se havia assenhoreado das consciências, que havia queimado em Constança e para honrar ao céu aos desditosos João Huss e Jerônimo de Praga, e que havia disposto bárbaros sacrifícios nas Índias orientais e ocidentais. Quantos males, mortes e abominações não haviam causado a política papal principalmente em França! Quantas guerras civis não havia originado! Em virtude dos sentimentos que abrigavam ainda alguns franceses obcecados por consideração aos papas, havia-se tido considerações até então para com Roma. Porém, a medida das iniquidades estava já cheia. À petição dos cidadãos romanos entrou Berthier em Roma. Que rasgo na história universal, o que os cônsules romanos mandaram a um ministro a Paris para dar graças aos franceses pelo auxílio magnânimo que estes prestaram para libertar Roma. (6)

Foram, então, pronunciadas orações fúnebres não pelo papa, mas pelo papado. No castelo de Santo Ângelo já se erguia a deusa da Liberdade, calcando aos pés a tiara. (7) O poder que perseguira e condenara ao exílio e à destruição os santos do Altíssimo (Daniel 7:21, 25; Apocalipse 13:7) sofrera então a mesma sorte. A Palavra de Deus diz:

Se alguém leva para cativeiro, para cativeiro vai. Se alguém matar à espada, necessário é que seja morto à espada. (Apocalipse 13:10)

Note que a declaração no conselho dos quinhentos ocorreu em 10 de março de 1798, exatos 1.260 anos depois que os godos levantaram o cerco a Roma. Estes foram perseguidos pelos soldados de Belisário e completamente derrotados na ponte Milvio em março de 538. (8) Cumpriu-se, assim, o período profético ao longo do qual o papado exerceu sua dominação política e religiosa.

Embora o clero romano tivesse conservado a posse de seu principado italiano por meio de um tratado entre a Igreja e Napoleão, o golpe mortal de que foi vítima impôs ao papado a perda de seus poderes civis, ampliando o caminho para o desenvolvimento do Estado laico. A observância do domingo, reflexo do poder e autoridade da Igreja, perderia paulatinamente seu caráter sagrado e coercitivo de outras épocas, transformando-se em um “tempo livre” por força das inovações tecnológicas, econômicas, sociais e culturais promovidas pela Revolução Industrial.

Roma ainda possui o mesmo espírito

É um engano supor que a mera forma de governo ou sistema social é uma garantia contra a opressão e o despotismo. A história e a própria estrutura de pretensões da Sé romana demonstram que seu caráter e propósitos não mudaram. Na verdade, Roma está mais ávida do que nunca por reaver o poder e autoridade que um dia desfrutou. A crescente reaproximação entre Igreja e Estado é uma evidência disso, assim como o clamor cada vez maior pela santificação do domingo.Se há algo que a profecia e a história podem nos ensinar é que qualquer ordem social baseada na flagrante violação dos mandamentos de Deus comprometerá, mais cedo ou mais tarde, os direitos e liberdades fundamentais adquiridos no passado a tão elevado custo.

Roberto Romano, Professor titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, observa que as teses de João Paulo II resumiram-se ao aggiornamento do Concílio de Trento. A sua autoridade foi elevada acima de tudo e de todos. A imaginação dos romancistas já produz obras nas quais o pontífice aparece como homem de ferro, um Richelieu de nosso tempo, com a inteligência estratégica de Bismarck. Romano adverte:

Quem deseja tremer diante do futuro, devido ao legado de João Paulo II [o qual o papa Francisco tem efetivamente ampliado], leia o romance bem escrito publicado recentemente nos EUA por Arun Pereira: Papal Reich. A Novel. O título diz tudo: os novos poderes mundiais deixam de ser os Estados laicos. Surge a velha Republica Christiana em seu esplendor. No outro lado do mundo, renasce o Islã. Ambos lutam para vencer os infernos. E os infernos reúnem os que não aceitam o mando clerical, os “infiéis”. Pesadelo? Imaginação louca? Apenas advertência de um escritor que sabe ler os sinais dos tempos. (9)

 

Notas e referências

1. Joseph Bernhart. O Vaticano: Potência Mundial. História e Figura do Papado. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores, 1942, p. 175 e 176.

2. Ibid., p. 181.

3. Ibid., p. 277.

4. The Times, London, Monday, March 12, 1798, p. 3. Acesso em: 16 ago. 2012, 14h11min.

5. Eric Frattini. A Santa Aliança: Cinco Séculos de Espionagem no Vaticano. São Paulo: Boitempo, 2009, p. 151.

6. Correspondent, 14 de março de 1798. Citado em A.S Mello, A Verdade sobre as Profecias do Apocalipse. São Paulo, 1959, p. 341 e 342.

7. Joseph Bernhart, op. cit.

8. J.B. Bury. A History of the Later Roman Empire from Arcadius to Irene (395 A.D. to 800 A.D.), Vol. I. London: Macmillan and Co., 1889, p. 393.

9. Roberto Romano. Tu es Petrus”. Acesso em: 22 jun. 2007, 12h33min.

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Escritor & Evangelista da União Central Brasileira

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