Nos quatro primeiros artigos da série, nos concentramos em argumentação relacionada às bases do catolicismo romano, a saber, o primado de Roma, a infalibilidade papal, o tripé Bíblia-Tradição-Magistério, a infalibilidade da Igreja e a crítica ao livre exame. Esse quinto artigo encerra as considerações específicas sobre o romanismo (a partir do sexto artigo, nos voltaremos a uma análise específica do protestantismo). O que veremos hoje são alguns dos erros doutrinários que a ICAR acumulou no decorrer dos séculos em função de suas bases equivocadas já analisadas nos artigos anteriores.
Evidentemente, não é possível abarcar todas as doutrinas, tampouco fazer uma exposição é uma análise completas delas, pois isso tomaria muito mais espaço que o conveniente. Mas escolhemos algumas doutrinas principais e faremos um resumo bastante sucinto das mesmas.
5. Doutrinas errôneas
5.1. Imortalidade da alma
A doutrina da imortalidade da alma é estranha à Bíblia e foi estranha ao pensamento hebraico/judaico pelo menos até o surgimento dos judeus helenistas, influenciados pelas visões gregas sobre a alma, cerca de três séculos antes de Cristo. É importante traçar a distinção.
A antropologia bíblica dos hebreus entendia o homem como uma entidade holística, isto é, integral, formada pelo sopro divino (espírito) e o corpo. O sopro divino não é o homem, mas a centelha de vida dada por Deus. O corpo também não é o homem, mas apenas o molde que recebe a centelha de vida. É apenas a união do sopro com o corpo que forma o ser humano (Gn 2:7 e 3:19). Por consequência lógica, o fim dessa união (acarretada pela morte) desfaz o ser humano. Ele volta à inexistência como no início. Sua consciência é desativada (Ec 9:5-6 e 10; Sl 6:4-5), pois a centelha de vida torna para Deus e o corpo torna ao pó da terra (Ec 3:18-22 e 12:1-7; Sl 146:3-4).
A palavra alma pode ter vários sentidos. Seu sentido mais literal é o de homem. Assim, não é dito, na criação do homem, que ele ganhou uma alma, mas sim que ele se tornou uma (Gn 2:7). Nesse sentido, a alma se desfaz na morte. A alma morre (Ez 18:20).
O destino do homem no pensamento bíblico hebraico era a morte real, assim como a dos animais (Sl 49:12-20). Todos os seus pensamentos, sentimentos e aptidões morriam, incluindo a capacidade de louvar ao Senhor (Sl 115:17-18; Is 38:18-19). Não há uma entidade imaterial que sobreviva após a morte do corpo (Jó 3:11-22, 10:18-22, 14:10-14 e 17:13-16). Além dos textos que afirmam isso claramente, a escassez de referências explícitas à conceitos como ressurreição e céu nos primeiros livros da Bíblia hebraica é um forte indício de que o monoteísmo primitivo pré-Israel (de pessoas como Noé, Abraão e Jó) e o monoteísmo israelita em seus primeiros séculos se ancoravam numa espécie de niilismo teísta: não se cultivava muitas certezas sobre o que viria após a morte. Uma esperança, talvez, de uma redenção divina que levantasse os mortos. Mas algo vago, expresso poucas vezes. E nesse meio tempo, nada de vida após a morte.
Especulo que Deus propositalmente permitiu essa nebulosidade por alguns séculos dentro do monoteísmo. A intenção foi impedir que seus fieis, fortemente influenciáveis pelas culturas ao redor, partilhassem de grande interesse pela morte e assim absorvessem de maneira geral a comum veneração pelos antepassados mortos, a mediunidade e os conceitos de reencarnação, almas penadas, submundo de mortos-vivos, etc. Há, aparentemente, um trabalhar gradual de Deus em seu povo para a recepção de revelações mais sólidas a respeito do futuro.
Quando a ressurreição começa a ser mais enfatizada e de modo explícito, isso não muda a concepção holística do homem. Ao contrário, a ideia trazida pela ressurreição é de que esta é a única esperança e consolo em relação à morte. Uma vez que o homem morre de fato, sem ressurreição não há vida. O hebreu, portanto, não se consolava ou consolava os demais dizendo que os mortos justos estão no céu ou em algum lugar bom à espera do juízo, mas dizendo que apesar da morte, os mortos tornariam à vida (Jó 19:25-27, Sl 16:10-11, 17:15 e 49:15; Is 26:13-19; Dn 12:2). Essa é a maior diferença entre o conceito grego e o hebraico: para a filosofia grega, a morte era uma libertação. Para a cosmovisão hebraica, a morte era uma condenação, a pior delas, o fim.
A antropologia grega entendia o homem como um ser dualístico, formado por uma parte imaterial imortal (alma) e uma parte material mortal (corpo). O conceito de imortalidade da alma não é de origem grega, claro. Mas é na Grécia que ela ganhará formato filosófico e não mais compromissado à crenças politeístas. Isso a torna palatável aos judeus pós-exílio babilônico/persa, que buscaram com afinco se manter distante da idolatria.
A filosofia dualística não dominou o judaísmo de forma geral ao adentrar a religião. Apenas apresentou uma possibilidade a mais. Não houve uma sistematização da doutrina e a crença permaneceu fragmentada, com alguns grupos mantendo o conceito holístico e outros flertando com o dualístico. É nesse contexto multifacetado que Jesus nasce, cresce e desenvolve o seu ministério. Crítico quanto às tradições humanas contrárias às Escrituras, Cristo não endossa o conceito dualista, mas continua trabalhando sobre as bases do hebraísmo ortodoxo, enfatizando a figura da morte como sono e a ressureição como única esperança, em vez da ideia de gozo da eternidade antes da ressurreição. Não há descrição de pessoas no céu ou no inferno, exceto na parábola do rico e do Lázaro (Lc 16:19-31), uma narrativa claramente alegórica, sarcástica e voltada para outro assunto, não a vida após a morte. Uma explicação detalhada desse texto será feita em uma série específica sobre o conceito da imortalidade da alma.
Os apóstolos permanecerão na mesma linha antropológica hebraica. Pedro, por exemplo, afirma claramente que Davi está morto (At 2:25-36); Paulo, quando explica sobre a morte aos tessalonicenses, os incentiva a se consolarem na ideia de ressurreição dos mortos (I Ts 4:16-18), não na sobrevida dos falecidos em algum lugar bom antes do juízo final; o mesmo Paulo faz uma argumentação enorme aos coríntios à respeito da ressurreição (I Co 15:12-54), deixando claro que esse era o tema central do cristianismo, o que não se coaduna com a ideia de imortalidade da alma antes da ressurreição.
É notável como a ideia de alma imortal tira da ressurreição a relevância que o Novo Testamento dá a ela. A morte deixa de ser real, já que os indivíduos apenas saem da terra para algum outro local. Não havendo perda de vida, a ressurreição se transforma apenas em um detalhe secundário; não se constitui mais o retorno à vida, mas só a reunião da parte imaterial à parte material, o que é dispensável para a existência. A doutrina da imortalidade da alma ameniza e esvazia os significados de morte e ressurreição.
A aceitação do conceito ignora tais fatos, ressignificando termos, reinterpretando as crenças originais da Bíblia hebraica à luz da filosofia grega e se baseando em interpretações falhas de alguns textos do Novo Testamento. Não há espaço para tratar todos eles aqui, nem com muita profundidade, mas pode-se citar ao menos um como exemplo. Em Filipenses 1:23, Paulo diz que seu desejo era partir e estar com Cristo. Entende-se essa passagem como se Paulo acreditasse que no período intermediário entre a morte física e a ressurreição, ele já estaria com Cristo. Mas isso é enxergar no texto mais do que é dito. Tanto na concepção dualística, quanto na holística, a morte levaria Paulo a Cristo. Na primeira, seria antes da ressurreição e do juízo final. Na segunda, seria logo após a ressurreição. Entretanto, considerando que na concepção holística, o homem se desfaz na morte e sua consciência é desativada até à ressurreição, esse período não conta como vida ou como memória. Assim, morrendo o homem, o momento seguinte de consciência e vida já é a ressurreição e a volta de Cristo.
Paulo se sentia cansado e sabia que a morte o faria ver Jesus no momento seguinte. Isso não quer dizer que ele cria na imortalidade em um período intermediário. Considerando que Paulo, como autor inspirado, certamente seguia a antropologia bíblica, que não é dualística, é lógico que a ideia em sua mente era de encontro com Cristo no momento seguinte após o sono da morte, um sono que não se conta por não haver nem memória, nem vida.
O que fica claro é que as interpretações referentes à antropologia bíblica deixaram de levar em conta o conceito de “Tota Scriptura”, no qual leva-se em conta o ensino de toda a Escritura para interpretar cada ponto. Em vez disso, adotou-se pressupostos extrabíblicos para interpretar não apenas as passagens do Novo Testamento, mas ressignificar as passagens do Antigo Testamento que claramente ensinam a mortalidade da alma. Pressupôs o dualismo, empurrou-se essa crença para os hebreus antigos e procurou-se encontrar indícios do conceito no hebraísmo. A afastamento das origens hebraicas em muitos aspectos e o anseio da criação de uma nova identidade fizeram do cristianismo do fim do primeiro século um receptáculo de pressupostos não bíblicos, abrindo caminho para a consolidação de distorções posteriores. Com a morte dos discípulos e a passagem do tempo, o dualismo se tornou norma de pensamento. E já não havia como ser contestado.
5.2. O Inferno Eterno
Entre os que não creem na imortalidade da alma, é comum a seguinte expressão: “A imortalidade da alma é a mãe de quase todas as heresias”. É verdade. E a ideia do inferno como um local de tormento eterno é uma delas. Ela depende totalmente da premissa de que a alma é imortal. Somente assim pode-se sustentar que as almas jogadas nesse local sofrerão eternamente.
O conceito não é bíblico. A palavra “inferno” é usada nas Bíblias da Língua Portuguesa para traduzir três palavras originais:
– Sheol (do hebraico), que significa “sepultura, sepulcro, cova, abismo;
– Hades (do grego), que também pode ser usado como sinônimo de sepultura. Essa palavra foi escolhida pelos tradutores judeus da Bíblia Septuaginta (a primeira tradução do Antigo Testamento hebraico para o grego, em cerca de 250 a.C.);
– Geena (do grego), que era o nome de um vale que existia em Israel. À época de Jesus, esse vale era usado para se jogar lixo, bem como corpos de criminosos e indigentes.
Sheol é usado durante todo o Antigo Testamento. Na cosmovisão hebraica ortodoxa, não havia o conceito de tormento eterno após a morte, até porque a morte era real e, portanto, o fim. Assim, do ponto de vista literal, Sheol era apenas a nossa sepultura e, de um ponto de vista mais simbólico, o mundo dos mortos, a sepultura coletiva de todos os homens. Mesmo na visão simbólica, o ser humano morto está realmente morto, em estado de putrefação, ou como um zumbi, em textos mais poéticos (onde é comum que seres inanimados sejam expressos como tendo vida). A regra, no entanto, é: não há nada na morte.
A escolha da palavra Hades para traduzir Sheol não foi boa, pois gera polissemia. É provável que ela tenha sido escolhida por influência helenística. Os tradutores provavelmente criam nos conceitos de imortalidade da alma e inferno eterno e, por isso, selecionaram uma palavra que, no grego, remetida a um mundo dos mortos distinto. Enquanto que os mortos do judaísmo realmente não viviam, a não ser em textos extrema e claramente simbólicos, os mortos dos gregos estavam bem vivos no Hades. O sentido pretendido por cada um, portanto, dependeria sempre do contexto. Um hebreu poderia falar em Hades pensando no mundo grego dos mortos ou no mundo hebraico.
A palavra Geena, não indica sepultura. Como eu disse, ela era um vale em que se jogava lixo e se queimava corpos. Geena (Ge Hinnon, em hebraico) ficava numa região chamada Tofete. No passado, quando Israel caiu em graves pecados, passando a seguir um deus pagão chamado Moloque, muitos israelitas sacrificaram crianças queimadas naquele local (Jr 7:31-32). Por essa razão, o vale virou sinônimo de um lugar amaldiçoado. Um lugar de morte.
Jesus usou esse vale como metáfora para indicar de que forma morreriam para sempre os ímpios. Assim como criminosos e indigentes eram queimados em Geena (e crianças, no passado), os ímpios também serão queimados, no juízo final, em local semelhante (o lago de fogo). Jesus enfatiza que em Geena o fogo não se apaga, nem o verme morre. Ele diz isso porque Geena era um lugar em que constantemente se jogava lixo e corpos. Por isso sempre havia vermes e fogo.
A ideia dessa metáfora não é indicar que os ímpios seriam queimados eternamente. A ideia é enfatizar que enquanto houver o que queimar, o fogo queimará. Enquanto houver o que ser comido pelo verme, o verme comerá. Mas obviamente copos não são comidos e queimados para sempre. Um dia eles se acabam.
O Antigo Testamento está repleto de textos que indicam que os ímpios serão totalmente consumidos pelo fogo, morrendo. O melhor deles, na minha opinião, está em Malaquias 4:1-3. O texto diz que os ímpios serão totalmente abrasados, não sobrando nem raiz, nem ramos; se tornarão cinzas.
Com relação aos textos que usam termos como “fogo eterno”, “fogo inextinguível”, “fumaça que sobe pelos séculos dos séculos”, etc., entenda o seguinte: no hebraico e no grego é comum que palavras que significam “para sempre” e “eterno” tenham um sentido diferente quando aplicadas a coisas que são, por natureza, efêmeras (ou seja, coisas que não são eternas). É o caso da palavra hebraica “olam” e das palavras gregas “aion”, “aionio” e “aiones” (todas com o mesmo radical). Por exemplo, no Antigo Testamento uma lei civil determinava que o servo que quisesse continuar trabalhando para o seu senhor após os seis anos que a legislação traçava como limite, deveria oficializar essa decisão perante um juiz através de um furo na orelha. Isso está em Êxodo 21:1-6. O verso 6 diz que após essa oficialização, o servo iria servir seu senhor “para sempre” (olam). Mas esse para sempre é, obviamente, só enquanto o servo viver. Se o servo morresse dez dias depois, não poderia mais servir.
Outro exemplo está no Salmo 23 em que Davi diz que habitará na Casa do Senhor para sempre. Algumas versões traduzem como “por longos dias”. Não se sabe ao certo, pois não fica claro se Davi estava se referindo à eternidade com Deus ou à sua vida aqui na terra.
No Novo Testamento há um exemplo que está no livro de Judas, verso 7. Ali diz que as cidades de Sodoma e Gomorra foram destruídas pelo fogo eterno. Mas essas cidades não estão queimando até hoje. Eterno aqui pode ser traduzido como “constante”. Ou seja, o fogo queimou as cidades completamente, sem parar. Ele não se extinguiu até que tivesse queimado tudo.
O termo serve para mostrar que nada, nem ninguém escapou. Não houve uma chuva que tenha apagado o fogo em algumas áreas ou durante algum breve período de tempo, de modo que algumas pessoas pudessem escapar. Esse é o sentido de eterno aqui. Nada pode parar o fogo. Nada pode extingui-lo. Ele queima até não haver mais o que ser queimado. O fogo é eterno sim, mas não o material que ele consome. Isso fica mais claro quando lembramos que no pensamento hebraico era comum se utilizar a ideia de fogo que destruía sem cessar. Há exemplos em passagens como Ezequiel 20:47-48, Amós 5:5-6, Isaías 34:8-17 e Mateus 3:12 – perceba em Mateus o uso da “palha” para a analogia, a qual se consome rápido, sendo um ótimo símbolo para destruição plena. Não há, nesses casos, ideia de eternidade da matéria consumida, mas de continuidade da destruição enquanto havia matéria.
Mesmo no português, existem alguns exemplos do gênero. Quando dizemos que um casal foi feliz para sempre, queremos dizer que ele foi feliz enquanto viveram. Quando digo que fulano sempre foi legal, esse sempre compreende apenas o tempo de vida dele (ou o tempo que eu o conheço). Não compreende a eternidade. Eu posso dizer, por exemplo, que meu primo sempre me levou ao parque quando eu era criança. Aqui o sempre compreende apenas o tempo em que eu era criança, não é um período que nunca teve fim. Da mesma forma, a Bíblia ensina que o lago de fogo queimará os ímpios apenas enquanto houver o que queimar.
O Apocalipse deixa isso mais claro quando diz que o inferno (Hades = Sepultura) e a morte serão lançadas no lago de fogo (Ap. 20:14). Ora, se o próprio Hades será lançado no lago de fogo, então ele não pode ser o próprio lago de fogo. Ele é a sepultura. Se a sepultura e a morte serão lançadas no lago de fogo, isso quer dizer duas coisas: (1) há morte e sepultura para quem está no lago de fogo e (2) a morte e a sepultura, elas mesmas, morrerão no lago de fogo. Como? Logo após todos morrerem, pois não haverá mais ninguém para morrer e ser sepultado após a morte de todos. É por isso o mesmo versículo diz que ser lançado no lago de fogo é a “segunda morte”. Ou seja, o que é lançado ali, morre de vez.
Aqueles que aceitam a teoria do inferno como um local de tormento eterno, esbarram em algumas dificuldades bíblicas, como o fato de que a promessa de corpo incorruptível e imortal é dada apenas aos salvos (I Co 15:51-53) e que só Deus possui a imortalidade intrínseca (I Tm 6:16). Isso implica que os ímpios são mortais e que, ao terem o corpo destruído pelo fogo, perecerão. A ideia de inferno eterno imortaliza o pecado e o homem mal. Além de isso ser contrário ao que a Bíblia diz, tornar o pecado eterno no universo não se coaduna com a natureza santa de Deus. A santidade de Deus exige que o pecado seja extinto, pois trata-se de uma anomalia em seu universo, em sua criação perfeita. A imortalização do pecado é um atentado à santidade e perfeição de Deus.
Do ponto de vista lógico e moral também há problemas na ideia do inferno eterno. O conceito não expressa punição, mas retaliação. A punição é ato imprescindível de um Deus justo diante do pecado. Ela busca valorar negativamente o pecado, impedir (ou, dependendo do contexto, tornar mais difícil) que ele seja cometido novamente, servir de aviso para os demais e gerar, se possível, arrependimento (o que não ocorre na punição final, pois todas as chances foram esgotadas). A retaliação, por sua vez, é ato praticado por humanos pecadores. Busca meramente causar dor, por prazer, sendo a dor um fim em si mesmo. Isso será melhor explicado numa série específica sobre imortalidade da alma e inferno. A suma é: Deus pune, não retalha. O inferno eterno seria uma obra de retaliação, não de punição.
Finalmente, supor que Deus carece ou deseja um inferno para a sua glória, como alguns sustentam, é um pensamento blasfemo que faz de Deus dependente do pecado para ser mais glorioso, e não maximamente glorioso por si só. Além de diminuir Deus, isso faz do pecado algo necessário e importante, o que é um ultraje. Um Deus santo e onipotente jamais concordaria com isso. Voltaremos a esse tema quando analisarmos a doutrina protestante/reformada da predestinação, que também apela para um suposto aumento da glória de Deus.
5.3. Orações aos santos mortos
Outra das heresias possibilitadas pela doutrina da imortalidade é a oração aos santos mortos. Com o tempo, os romanistas adoraram a prática de dirigirem orações aos mortos que viveram virtuosamente na terra. Esses santos foram elevados ao status de intercessores junto a Cristo e ajudadores de seus devotos.
Isso traz um problema lógico grave: dá aos mortos atributos exclusivos de Deus. O santo precisará ouvir orações de diversas pessoas ao mesmo tempo, espalhadas por lugares diferentes e estando muito distante do santo, no sentido espacial. Isso é onisciência, atributo que só um ser intrinsecamente atemporal poderia ter. Deus é inerentemente atemporal em sua essência porque criou o tempo. Por isso também é plenamente eterno. Todo o restante de sua criação é temporal. Surgiu no (e com o) tempo e está sujeita à sucessão de períodos.
Para tornar os mortos capazes de ouvir tudo ao mesmo tempo, acompanhar fiéis, abençoar, proteger, etc. é preciso fazer deles oniscientes, onipresentes e atemporais. Ou seja, torná-los como Deus. Isso não só é blasfemo como logicamente impossível. Onisciência, onipresença, atemporalidade e eternidade plena são exclusividades de um ser criador transcendente. Não há como nos tornarmos o Criador.
Por essa razão, não se encontra na Bíblia exemplos de oração aos santos mortos. Isso seria diviniza-los. Na ortodoxia hebraica, tal proceder estaria no limite do espiritismo. Orar aos mortos e contar com sua ajuda e proteção não está muito distante de consultá-los, o que é explicitamente condenado na Bíblia. Na ortodoxia judaico-cristã, eleger santos à intercessores e intermediadores entre nós e Deus seria competir com Jesus Cristo. A prática também foge ao pessimismo antropológico proposto pela Bíblia, criando confiança e exaltação no humano além do conveniente.
5.4. A abolição do sábado e a santificação do domingo
Essa talvez tenha sido a principal doutrina que fez o cristianismo se afastar das raízes judaicas e criar uma nova identidade religiosa. Conforme exposto no primeiro artigo da série, os primeiros cristãos eram judeus e gentios seguidores do Deus dos judeus, os quais frequentavam sinagogas e guardavam o sábado. Esse hábito permaneceu forte por pelo menos três décadas. O sábado não era apenas um mandamento, mas tornara-se uma questão de cultura e hábito. Era o dia em que os crentes em Yahweh, judeus ou gentios, separavam para descansar dos trabalhos seculares e adorá-lo. Por isso as sinagogas eram tão frequentadas aos sábados.
Os primeiros cristãos não romperam com o costume do sábado, nem fizeram força para romper. Uma leitura acurada do Novo Testamento revela que o grande problema que a Igreja enfrentou em relação aos judeus naturais e judaizantes nas primeiras décadas de cristianismo foi a questão da circuncisão. O reflexo da polêmica em torno da obrigação ou não da prática é observado fortemente nos textos neotestamentarios, deixando claro ser a maior das polêmicas. O mesmo não é visto em relação ao sábado, o que indica que sua guarda permaneceu constante, sem levantar qualquer debate de grande proporção.
Os intérpretes anti-sabatistas, incluindo católicos, geralmente se utilizam de três textos do Novo Testamento para sustentar que a guarda do sábado foi abolida nas primeiras décadas de Igreja: Romanos 14:5-6, Gálatas 4:8-11 e Colossenses 2:16-17. Mas existem problemas nessas interpretações. Os dois primeiros textos não mencionam o sábado e, pelo contexto, se referem a dias de jejum, dias de festivais judaicos, dias relacionados à astrologia, etc. Já o texto de Colossenses, o único que menciona diretamente o sábado, não necessariamente anula o sábado, já que o alvo do texto é criticar julgamentos feitos a respeito do sábado e outros assuntos por uma seita que elevava os símbolos e seu cumprimento ascético ao patamar de Cristo. Isso foi explicado em detalhe em um texto meu sobre o sábado (clicar aqui).
No entanto, o problema é mais profundo. Se considerarmos que realmente esses textos anulam o sábado, isso vale para qualquer dia de guarda, incluindo o domingo. Não há sentido em atacar o sábado argumentando que Paulo foi contrário a guarda de dias e, ao mesmo, defender a guarda do domingo; e sobre as mesmas bases do sábado. A ICAR não se opõe ao quarto mandamento do decálogo, porém entende que a solenidade foi mudada para o domingo. Neste caso, a essência do mandamento continua, o que implica que usar tais textos para sustentar a abolição do mandamento do sábado é um tiro no próprio pé. É preciso escolher: ou Paulo aboliu nesses textos todos os dias de guarda e assim nem sábado nem domingo possuem sentido, ou Paulo não aboliu todos os dias de guarda e assim ou sábado ou domingo permanecem.
O mandamento do sábado não pode ser atacado pela ICAR, pois nele se baseia o domingo. Anule o sábado em sua essência e o domingo também é anulado. Reafirme o sábado em sua essência e há uma possibilidade de sustentar que Deus autorizou a troca da solenidade de um dia para o outro.
Embora não seja o foco do artigo, é importante ressaltar aqui que quem defende a outra opção possível – não há mais nenhum dia de guarda – também se encontra em uma situação complicada. Isso porque no Novo Testamento há evidência suficiente, como já dito, de que os primeiros cristãos continuaram guardando o sábado (seja por costume ou por consciência de que era mandamento). E há evidência histórica suficiente de que já pelo finzinho do primeiro século e início do segundo, o domingo já começava a ser guardado. Também há registros de cristãos do segundo século guardando tanto o sábado quanto o domingo e uma linha ininterrupta de judeus cristãos ebionitas, uma vertente bastante judaizante do cristianismo ortodoxo, que sobreviveu até o segundo século e guardava o sábado.
Os fatos acima constituem um forte indício de que os cristãos, em geral, guardaram algum dia desde a época dos apóstolos, não sendo comum a ideia de que não havia mais dia algum de guarda. Uma vez que não há indicativo no Novo Testamento de embate causado pela guarda do sábado em sua essência (isto é, a guarda de um dia semanal como sagrado) e que o dia guardado era o sábado, não o domingo, a conclusão lógica é que o sétimo dia continuou sendo guardado nas primeiras décadas, sem gerar polêmica, e só deixou de sê-lo em função de fatores extrabíblicos.
O que parece ter ocorrido foi o seguinte: a expansão da Igreja foi tornando mais difícil a fiscalização por parte dos apóstolos. Muitas das epístolas de Paulo demonstram que era comum surgirem muitos problemas de ordem disciplinar e doutrinária nas igrejas. A inclusão cada vez maior de gentios foi modificando o perfil da Igreja, trazendo mentes menos judaicas e com pressupostos distintos. A hostilidade dos judeus descrentes em Cristo e dos judeus crentes partidários da circuncisão foi criando um muro de separação entre o judaísmo e o cristianismo. A morte de vários apóstolos, incluindo nomes de grande influência, como Pedro, Paulo e os dois Tiagos, e sua dispersão de Jerusalém, deixaram a Igreja sem poder recorrer mais aos primeiros detentores da ortodoxia. Com a destruição de Jerusalém e do templo, os cristãos foram desconectados de um lugar que servia de sede espiritual de judeus e cristãos.
Tudo isso acarretou um sentimento de busca por nova identidade. O cristianismo deixou de ser uma vertente do judaísmo e desejava agora forjar um novo conjunto de doutrinas, costumes, símbolos, hierarquia, organização, locais de culto, etc. Nessa aspiração por uma nova identidade, havia o desejo de se diferenciar dos judeus, de renegar o judaísmo e de fazer novas todas as coisas. A visão já não era mais de continuidade e progresso da religião judaica em Cristo, mas de cisão com o judaísmo e renovação total em Cristo. É como se o “eu faço novas todas as coisas” de Cristo, incluísse a própria religião.
Obviamente, esse processo não ocorreu de maneira integral, rápida e igual. A Igreja era, em alguns aspectos, descentralizada e com especificidades em cada região. A lentidão na comunicação antiga tornava essa realidade mais aguda. Assim, o processo não foi um grande bloco de mudança abrupta. Mas as ideias acima elencadas foram circulando e moldando um pensamento que se concretizaria nas décadas seguintes. A morte de João, o último apóstolo, foi a partida do último representante da ortodoxia, que para o fim do século primeiro já estava velho e isolado, sem possibilidade alguma de saber da situação de cada localidade da Igreja mundial e muito menos de combater erros que começavam a germinar em muitos lugares.
É neste contexto dos últimos trinta anos do primeiro século que as bases de uma futura guarda generalizada do domingo começam a ser construídas. Para a formação da nova identidade, duas questões eram fundamentais: a definição de um novo dia de guarda e o surgimento de uma nova sede espiritual para o cristianismo. Entenda-se que o processo não foi direto. Não houve um grupo de teólogos que se reuniu e afirmou: “Vamos criar um novo dia de guarda e uma nova sede”. As coisas apenas foram se encaminhando para isso.
O domingo foi aparecendo cada vez mais como um dia importante a ser honrado, por ter sido o dia da ressurreição. Uma ideia inicialmente inocente: por que não? Relembrar a ressurreição é sempre algo bom. Fazer isso de modo especial todos os domingos, ao menos nas primeiras horas da manhã, não se configura necessariamente uma guarda. Uma vez que o domingo vinha após o sábado, era fácil para um sabatista estender o seu sábado e relembrar de modo vivo como as primeiras testemunhas da ressurreição, logo após o sábado, foram ao sepulcro e encontraram com o Senhor ressurreto.
A criação desse novo hábito inocente poderia facilmente desencadear em muitos a ideia de que o sábado vinha sendo guardado apenas por hábito e que era uma instituição judaica. De fato, cristãos advindos do paganismo talvez tivessem ido a sinagogas aos sábados por mero costume, porque todos iam. Não há como diferenciar muito quem guarda o sábado de quem apenas segue o hábito. Sem uma discussão à respeito nos primeiros anos de cristianismo, agora o sábado tomava uma aparência de antiguidade judaica. Expulsos das sinagogas, ademais, os cristãos já não tinham mais a força do costume sabático, o que levantava questionamentos. Como também durante anos as discussões sobre o sábado estavam permeadas de legalismo, farisaísmo e ascetismo. O resultados disso foram, por um lado, uma guarda cada vez mais liberal do sábado por parte de alguns cristãos e, por outro lado, a associação do sábado aos fardos farisaicos e de seitas ascéticas, o que era condenado por Jesus e os apóstolos. Daí para considerar o próprio sábado como um fardo é um pulo.
O domingo então começa a emergir como à contraparte ao sábado judaico, legalista e relacionado às coisas velhas. Ele será um símbolo adequado para a ressurreição, a nova aliança e a cisão definitiva com a religião israelita. O processo todo é tão convincente e natural que até discípulos diretos dos apóstolos, após a morte deles, poderiam pensar dessa maneira. Sobretudo porque a questão do sábado não foi assunto enfatizado no ministério dos apóstolos, o que abria margem para esse tipo de interpretação. Apesar disso, a interpretação não deixa de ser baseada em suposições não bíblicas e deduções não lógicas (embora convincentes). O processo descrito ocorrerá em relação não só ao domingo, mas também às ideias de primado romano e papal, com retórica igualmente convincente. A construção da nova identidade torna-se muito bem-sucedida e a tradição se encarrega de torna-la verdade à despeito da Bíblia e da lógica.
5.5. Outras doutrinas
Não há espaço aqui para tratar mais especificamente outras doutrinas, porém é possível citar rapidamente algumas. Além do conceito de inferno como lugar de tormento eterno, a ICAR também sustenta, com base na imortalidade da alma, a ideia de purgatório, onde algumas almas terminariam o processo de limpeza dos pecados, indo então para o céu. O conceito foi repudiado pela reforma por não possuir qualquer base bíblica, além de abrir margem para a salvação por mérito e a oração pelos mortos.
Algumas das crenças romanistas sobre Maria, mãe de Jesus, também não se coaduna com a Bíblia. Dentre elas, a ideia de que Maria nasceu sem inclinação ao pecado. Alega-se que se houvesse Maria a mancha do pecado original, Jesus também teria, já que humanamente era filho dela. Assim, Deus teria feito um milagre para que Maria nascesse pura, possibilitando que também Jesus não tivesse pecado.
O problema da doutrina é que ela procura justificar-se em uma necessidade que não existe. O mesmo Deus que é capaz de fazer um milagre para que Maria não herde de sua mãe o pecado original, é capaz de fazer Jesus não herdar o pecado original de sua mãe biológica. Assim, não há necessidade lógica de Maria ter nascido diferente de todos os seres humanos nesse sentido. Ademais, a lógica usada pelo romanismo, se levada até às últimas consequências, retrocederia até Eva, já que para Maria não ter pecado, sua mãe também precisaria não ter, e a mãe de sua mãe, etc. A justificativa é frágil, e além dela não há apoio bíblico para a doutrina.
Outra ideia que carece de apoio bíblico e lógico é o batismo de crianças recém nascidas. A prática, de longuíssima data, se baseia em falsas deduções, como a de que o batismo equivale, em todos os aspectos, à circuncisão. A Bíblia, contudo, não traça uma equivalência perfeita entre os dois rituais. Ao contrário, o batismo surge como um ritual de arrependimento de pecados, morte do velho homem carnal e ressurreição espiritual em Cristo Jesus (Mc 1:4, At 2:38, At 8:35-39, Rm 6:3-6 e Cl 2:12). Isso só pode ser feito, é claro, por adultos ou crianças em idade de entenderem quem é Cristo, como fica bastante explicito, aliás, no caso do eunuco batizado por Filipe em Atos 8.
O ritual da circuncisão, por sua vez, é frequentemente apontado pelo apóstolo Paulo como relacionado à carne, um sinal que pode não acompanhar o coração da pessoa, já que o rito é feito antes de o indivíduo ter consciência de si e de Cristo (Rm 2:17-29, Cl 2:11-12). O batismo, conquanto seja também um sinal externo, se é feito em idade mais madura, precedido por uma escolha consciente, tem propensão muito maior de refletir a união do indivíduo com Deus.
O batismo inconsciente parece ter muito mais razão pragmática para surgir do que bíblica. Não há exemplos de batizandos recém nascidos na Palavra, mas apenas de adultos. Tampouco uma única ordem nesse sentido. Mas por pragmatismo, a igreja pós-apostólica pode ter aceito a ideia como positiva, já que garantia novos filhos como cristãos (ao menos nominais) muito anos antes de essa escolha ser feita por eles.
Uma última doutrina que quero citar é a do celibato obrigatório do clero da Igreja. Embora, historicamente, tenha havido algumas razões plausíveis para que a ICAR tornasse isso regra, o fato é que a Bíblia não impõe o celibato ao clero. Paulo, que era celibatário por opção, e cria ser o ideal para a vida missionária, reconheceu não ser mandamento de Deus e não ousou impor a ideia a ninguém, apenas se limitando a incentivar (I Co 7:6-9 e 25-40). O casamento, sendo normativo, foi pressuposto até nós requisitos para o episcopado e o diaconato (I Tm 3:2 e 12; Tt 1:6).
Por melhores que sejam muitas para algumas pessoas ou contextos, não devem ser impostas como regras morais da Igreja se não forem mandamentos de Deus ou, no mínimo, deduções lógicas de mandamentos divinos. Não é o caso da proibição do casamento. Assim, tal doutrina se torna antibíblica, uma sobreposição da conveniência e da tradição da Igreja à Palavra de Deus.
A Igreja Adventista do Sétimo Dia, por exemplo, incentiva o vegetarianismo, por questões relacionadas a saúde. Não há problema nisso. Mas no momento em que ela fazer do vegetarianismo um mandamento, estará fugindo ao que a Bíblia diz. Não por acaso, grupos que caem nessa armadilha tem recebido oposição por parte da liderança. De igual forma, a proibição de casamentos por quaisquer grupos é querer legislar acima da Bíblia, o que nem o apóstolo Paulo ousou fazer. Em carta à Timóteo, chegou a profetizar que nos últimos dias haveria grupos proibindo casamento e alimentos não condenados por Deus (I Tm 4:1-5). Como diz o ditado: “De boas intenções, o inferno está cheio”.
Chegamos, então, ao fim do artigo, tendo feito um brevíssimo resumo sobre doutrinas da ICAR que não se coaduna com a Bíblia, com a lógica e com a ortodoxia judaico-cristã. No próximo artigo da série, passaremos a estudar a reforma protestante, analisando, em especial, a doutrina da predestinação, comum aos primeiros reformadores e que também foge ao ensino bíblico.
Por Davi Caldas
Fonte: Reação Adventista