A invenção do catolicismo e do protestantismo – Parte 6

Nos cinco artigos anteriores dessa série, discutimos as bases doutrinárias do catolicismo romano (como o primado de Roma, a interpretação de Mateus 16:18-19, o tripé “Bíblia-Tradição-Magistério”, a infalibilidade papal e da Igreja, etc.) e expusemos, no quinto artigo, um brevíssimo resumo sobre algumas das principais doutrinas errôneas que se acumularam no romanismo no decorrer dos séculos. A partir desse artigo, passaremos a discutir alguns pontos da reforma protestante. Devemos lembrar que a série se propôs, desde o início, a fazer uma avaliação sobre os principais erros dos sistemas romanista e reformado na busca pela verdadeira ortodoxia cristã. O presente artigo seguirá a mesma linha de raciocínio.

A reforma protestante teve papel fundamental em questionar as bases romanistas citadas acima, resgatando a noções bíblicas como, por exemplo, a Sola Scriptura e livre exame da Palavra de Deus. No entanto, a pressuposição de inerrância da ICAR e sua consequente recusa de aceitar a reforma, transformou o que deveria ser reforma em uma ruptura o seio da Igreja, exigindo um redirecionamento e uma reconstrução do movimento reformista, bem como um longo processo de formação de identidade e busca pela ortodoxia.

Com a complexa missão de reformar quase mil e quinhentos anos de erros acumulados, através de grupos frágeis, desconexos e que agora sofriam os efeitos negativos da ruptura imposta pelo proceder da ICAR, a reforma cometeu acertos e erros. O reconhecimento da Bíblia como autoridade acima das tradições e magistério, o estímulo à leitura e ao estudo das Escrituras Sagradas para toda a Igreja e a ênfase na salvação pela graça são exemplos de acertos. Por outro lado, as primeiras igrejas da reforma continuaram carregando muitas distorções romanistas, como a santificação do domingo, o batismo de crianças, a imortalidade da alma, o inferno como lugar de tormento eterno, uma relação muito próxima com o Estado, etc.

É compreensível que a reforma não resolvesse todos os problemas em algumas décadas, já que seu trabalho era rejeitar mais de mil anos de tradições errôneas, um processo complicado, que exigiria estudos intensos e extensos, muita oração, honestidade e grande disposição emocional, espiritual e intelectual. Isso leva tempo. No entanto, hoje, passados quinhentos anos da reforma, as primeiras igrejas reformadas (e a maioria de suas herdeiras posteriores) não reformaram a maior parte desses pontos, antes os transformaram em dogmas. A reforma estagnou. O protestantismo se tornou engessado.

Além da manutenção de alguns erros clássicos do romanismo, a reforma desenvolveu a doutrina errônea da predestinação, baseada em algumas considerações de Agostinho de Hipona. Segundo a doutrina, Deus predestina uns para a salvação e outros para a perdição, não existindo livre arbítrio quanto a isso. O presente artigo se concentrará em analisar apenas essa doutrina, tendo em vista que já trabalhamos as demais em artigos anteriores. Serão analisadas as bases do conceito reformado de predestinação, do ponto de vista lógico e bíblico, bem como suas críticas ao conceito de livre arbítrio. O objetivo é demonstrar que tal doutrina se constitui uma resposta incorreta às também incorretas cosmovisões pelagiana e semipelagiana. Enfatizará ainda as observações formuladas por Jacó Armínio, que combatem acertadamente os extremos pelagiano e calvinista.

6. A distorção da predestinação

Antes de analisar as falhas da doutrina de predestinação, é necessário entender melhor de que contexto ela surge e o que exatamente ela defende. Por falta de espaço, faremos apenas um resumo breve; simples, mas não simplista na medida do possível.

As discussões que originaram a doutrina reformada da predestinação foram uma espécie de reedição atualizada do embate entre o bispo Agostinho de Hipona e o monge britânico Pelágio. Por volta do ano 405, Pelágio escreveu algumas críticas ao livro Confissões, de Agostinho, no qual o bispo conta sua história de conversão ao evangelho e faz reflexões teológicas. O alvo das críticas de Pelágio era a concepção agostiniana de graça. Agostinho entendia que a graça incluía a iniciativa e o poder de Deus para salvar e santificar o homem. Sem a iniciativa e o poder divinos, o ser humano não tinha capacidade, por si só, de se converter a Deus, vencer o mal e se desenvolver espiritualmente, pois era inclinado ao pecado. Assim, tanto a conversão, quanto a santificação não eram obras humanas.

O pensamento pelagiano era radicalmente oposto. Pelágio sustentava o livre arbítrio puro, isto é, um poder de escolha não impedido ou amenizado por nenhum fator. O homem tinha total capacidade natural de fazer o que era bom e trilhar o caminho da perfeição, necessitando apenas saber qual é o caminho. No entender de Pelágio, afirmar que o homem era inclinado naturalmente ao pecado equivalia chamar a criação divina de imperfeita. E dizer que o homem não podia ser santo por sua própria iniciativa era criar desculpas para uma vida de pecados. Ademais, na concepção pelaginana, Deus não nos ordenaria a fazer o que não temos capacidade.

Em consequência dessas considerações, o conceito de graça de Deus, para Pelágio, era distinto. A graça deveria ser entendida como um conjunto de instruções e exemplos dadas por Deus ao homem, como os dez mandamentos e o proceder de Jesus. Cabia ao homem, por si mesmo, escolher se iria seguir essas instruções e exemplos ou não.

Evidentemente, o conceito de Pelágio se afasta muito do que é ensinado pela Bíblia e pelo evangelho de Cristo. E Agostinho enfatizou isso em suas respostas, demonstrando que as noções de pecado original, natureza depravada após a queda e total dependência de Deus para a restauração moral/espiritual do homem são fundamentos do evangelho e de toda a cosmovisão bíblica. O que o pelagianismo defendia, em suma, era um homem não propenso ao mal e um sistema de salvação e santificação por esforço e merecimento próprios, ideias totalmente rejeitadas pelas Escrituras Sagradas.

Uma versão mais suavizada do pelagianismo, levada adiante posteriormente por outros autores, é igualmente antibiblica. O semipelagianismo, como ficou conhecido, admite o pecado original e certa inclinação natural ao mal. Mas o homem ainda tem em si mesmo capacidade de ir a Deus por sua própria iniciativa, e suas capacidades naturais, ainda que afetadas pelo pecado, podem são suficientes para desenvolver sua santificação e gerar mérito para ser salvo.

Tanto a visão pelagiana radical como a moderada foram acertadamente condenadas pela Igreja, sobretudo a partir dos pontos bíblicos levantados por Agostinho a respeito da natureza corrompida do homem. Contudo, o bispo de Hipona, ao sustentar que a graça de Deus é irresistível e flertar fortemente com o conceito de que Deus não a oferece a todos, tendeu para outro extremo, plantando as sementes da doutrina da predestinação, que também se afasta do ensino bíblico sobre salvação.

Não obstante, as bases agostinianas da predestinação ficaram adormecidas por um longo tempo, sobretudo durante a idade média, quando a ICAR, em muitas práticas e ensinos, se encontrou imbuída de um espírito semipelagiano (embora, na teoria, houvesse uma boa maquiagem). Séculos após a controvérsia entre Agostinho e Pelágio, uma ênfase errônea na função das obras, somada à prática da venda de indulgências, transformou o catolicismo em uma religião que caminhava na borda da ideia de salvação por mérito, o que ofuscava a soberania de Deus e amenizava o estado decaído do ser humano.

A doutrina reformada da predestinação emerge nesse contexto de distorção romanista da salvação pela graça, mediante a fé (Ef 2:8-10). O conceito, como dito, se caracterizará pelo extremo: o livre arbítrio é negado em absoluto. Não são rejeitadas apenas as noções pelaginana e semipelagiana de salvação e santificação por iniciativa, esforço e mérito humanos (noções claramente antibíblicas). Também é rejeitada a possibilidade de Deus iluminar a mente do homem, a fim de que ele, por iniciativa e poder divinos, recupere a capacidade de escolher se deseja a presença de Deus ou não. Essa ideia seria defendida por Armínio, como veremos mais adiante.

Para os primeiros reformados, porém, a ideia de livre arbítrio, mesmo que possibilitado apenas por iniciativa e iluminação divinas, retirava de Deus a sua soberania e implicava a salvação por mérito. A soberania de Deus é o centro da questão para os proponentes da doutrina da predestinação. Por essa razão, sistemas como o calvinismo chegam a concluir que a própria queda do ser humano foi decretada por Deus; todas as coisas foram traçadas por Deus, incluindo a origem do mal. E tudo isso é para a sua glória.

Tendo feito esse breve mapeamento, podemos agora avaliar algumas características falhas da doutrina. Há pelo menos sete grandes problemas em sua formulação, do qual decorrem outros. Vamos trabalhar brevemente cada um deles.

6.1. Má definição de mérito

O primeiro problema da doutrina reformada da predestinação é a má definição de mérito. Ela sustenta que a mera escolha correta do ser humano em relação a Deus faria do homem merecedor da salvação, de onde se conclui que o homem não tem como escolher. A ideia está errada de diversas formas. Em primeiro lugar, uma vez que somos pecadores e Deus é a principal vítima de nossos pecados, somos por natureza seus devedores. Nós devemos a Deus, não o contrário. Por uma questão de lógica, não há como devermos a Deus e, ao mesmo tempo, Ele nos dever o perdão das dívidas. O perdão de dívidas é, por definição, um ato de misericórdia – não se merece.

Note, portanto, que a condição de devedor só muda se (1) o mesmo efetuar o pagamento da dívida ou se (2) seu credor, sem qualquer obrigação, perdoar a falta. Alguns creem que se poderia pagar a dívida fazendo mais bem do que mal, numa ideia de saldo positivo de atitudes. Mas ainda que fosse possível a todos manter um saldo positivo de atitudes ao fim da vida, um bem não é capaz de anular um mal. Um homem que tenha cometido mais bons atos do que maus, continua sendo um homem que cometeu maus atos. É necessário que Deus perdoe esses maus atos para que os mesmos sejam anulados.

Ora, se o homem é devedor de Deus e depende de sua misericórdia para deixar de ser, já não há mérito nele e suas boas obras não são eficazes para a salvação. Então, a simples escolha do ser humano por Deus não tem como implicar merecimento de salvação, já que ele permanece sendo pecador e só pode sair desse estado se Deus liberar perdão.

Em um texto meu sobre a necessidade da morte de Jesus Cristo, explico que existem dois tipos de perdão: um relacional e um jurídico. O relacional simplesmente restabelece a relação entre ofendido e ofensor através do amor. O jurídico livra o ofensor de ter de pagar a dívida através de um substituto. Como Pai Amoroso que é, Deus oferece perdão relacional facilmente. Mas como Juiz Justo, Deus só pode oferecer perdão jurídico se houver esse substituto. Aqui mais uma vez se enfatiza a impossibilidade de salvação por boas obras: o perdão será oferecido mediante a aplicação da pena a um substituto, o que significa que as obras e os méritos que salvam são do substituto, não do ofensor.

Sabemos que o substituto provido por Deus foi Jesus, que é parte do próprio Deus. Então, temos que o próprio ofendido pelos pecados, toma a punição dos pecadores, o que sem dúvida alguma não é obrigação divina, nem direito humano. O ato redentor de Cristo é totalmente baseado em sua vontade de livrar pecadores de suas punições, sem com isso infringir a justiça, não em alguma obra meritória humana.

Em segundo lugar, a ideia de saldo positivo de boas obras para obtenção do perdão divino e salvação não serviria para pessoas que se converteram após anos de pecado e adoradores sinceros que cometeram muitas falhas ao longo da vida. Talvez não alcançasse nenhum ser humano, pois como pecadores tendemos a errar mais do que acertar e até nossas boas obras estão, muitas vezes, repletas de imperfeições. A ideia de saldo positivo tornaria impossível, por exemplo, a salvação do criminoso arrependido na cruz (Lc 23:39-43), posto que não houve tempo hábil para criar um saldo positivo.

A resposta de Jesus garantindo a salvação do arrependido torna clara a salvação por graça, mediante a fé, anulando seus pecados cometidos no passado e desconsiderando seu saldo negativo de obras. O entendimento de que a mera escolha constitui merecimento não tem sentido, já que escolher a Deus não muda a condição de pecador, nem o saldo de obras da pessoa. Continua sendo necessário que Deus, sem obrigação alguma, decida oferecer o seu perdão. Por essa razão, o pecador arrependimento pede, não exige perdão. Ele sabe que seu pedido não implica direito para si e dever de Deus.

Em terceiro lugar (e este é o ponto central), nem o desejo por Deus, nem a iniciativa em busca-lo, nem a permanência nele, nem o cumprimento de sua vontade partem do ser humano. Talvez essa tenha sido a maior contribuição de Jacó Armínio ao debate a respeito do livre arbítrio. Armínio, que elaborou suas teses entre o fim do século 15 e início do século 16, sustentava o conceito da depravação total, tal como os calvinistas. Assim, diferentemente de Pelágio, Armínio entendia que o homem não poderia, por iniciativa e força próprias, se achegar a Deus. Contudo, também diferentemente de Calvino e demais primeiros reformados, Armínio entendia que Deus, por meio do Espírito Santo, ilumina o entendimento dos homens, capacitando-os a perceber o estado em que se encontram e sentirem necessidade de Deus. Diante da escolha por Cristo feita pelo pecador de livre arbítrio restaurado por Deus, o Espírito continua a sua obra, regenerando o converso.

Não precisamos nos prender a exatamente tudo o que Armínio disse a respeito de outros temas. O ponto que importa aqui é que se a hipótese de ação do Espirito na restauração do livre arbítrio é correta, mais uma vez a mera escolha humana por Deus não constitui mérito. Ela sequer ocorre por ímpeto humano, mas por iniciativa e obra divina. Não fosse a vontade de Deus em iniciar esse processo, nenhum homem sequer teria a capacidade de sentir desejo por Deus. E se Deus iniciasse o processo, mas largasse o homem converso às suas próprias forças, este tornaria ao seu estado totalmente decaído. O Espírito Santo, na hipótese levantada por Armínio, é componente essencial para que o homem possa escolher a Deus. Assim, o homem tem seu entendimento e poder de escolha restaurados pela graça, ganha força espiritual pela graça, recebe pela graça também um substituto para a condenação do seu pecado, recebe o perdão relacional e jurídico pela graça, avança na santificação pela graça e é, por fim, salvo da morte eterna pela graça.

Interessante é que, assumindo que o Espírito Santo nos possibilita fazer o bem apesar de decaídos, isso implica que até nossas boas obras, se geram algum mérito, são méritos de Deus e não nossos. Assim, o que quer que façamos de bom, ainda que por escolha própria, só foi possível por iniciativa divina, incluindo a escolha por Deus. Nós escolhemos a Ele porque Ele nos escolhe primeiro.

Algumas analogias podem ser utilizadas aqui para expressar isso. Imagine um homem à beira da morte trancafiado num porão totalmente escuro, sujo e bagunçado. A escuridão o impede de enxergar a saída, a sujeira e a bagunça. Mesmo que tateasse e encontrasse a saída, ela está trancada. Ademais, ele se encontra sem forças no chão, sem poder levantar ou gritar. Contudo, um bombeiro abre a porta do porão, irradiando o lugar com luz, vai até o moribundo e pergunta a ele se ele deseja sair dali. Ao receber um “sim”, o bombeiro pega o semimorto nas costas e o tira do porão. Nessa analogia, o que salvou o homem não foram seus gritos, sua força, suas batidas na porta, sua pura e simples vontade de sair ou qualquer plano de sua autoria. Foi sim a obra do bombeiro. É o que Deus faz ao homem.

A analogia falha, no entanto, no sentido de que um homem nessas circunstâncias ainda teria ciência de sua situação e vontade de sair do porão. Uma analogia que abarque essa questão também pode ser a do viciado em crack. Como dependente químico, ele deseja se drogar. E quando se droga, perde a noção da realidade e qualquer possibilidade de refletir sobre seu estado. Assim, não há desejo de cura. Mas se alguém puxar o viciado pelo braço e deixa-lo sob cuidados médicos até que ele recupere a consciência, poderá depois contar ao dependente químico sobre sua situação e influenciá-lo a tomar uma decisão em consciência a respeito de um tratamento. De modo semelhante, Deus restaura nosso poder de decisão constantemente, buscando nos informar do pecado. A obstinada recusa por Deus pode acarretar o fim desse agir divino, o que finda a possibilidade do indivíduo se voltar a Deus. Esse é o endurecimento do coração e, para muitos teólogos, a blasfêmia contra o Espírito Santo, um pecado sem volta.

Uma última analogia trata de um homem que, por irresponsabilidade sua, contraiu uma dívida impossível de ser paga, em razão de sua pobreza. Um bilionário resolve por livre e espontânea vontade dar o dinheiro na mão desse homem irresponsável para ele saldar a dívida. E coloca ao seu lado um conselheiro para acompanha-lo no trajeto. Perceba que o homem ganha uma opção que não tinha antes: pagar a dívida. E não a ganha por mérito seu ou qualquer obra, pois é um vagabundo, desempregado e irresponsável. Nem mesmo o pedido de ajuda ao bilionário foi iniciativa sua. Ele apenas é surpreendido pela oferta generosa, imerecida e gratuita.

Apesar disso, cabe ao irresponsável decidir se pagará a dívida ou se usará o dinheiro para outra coisa. Se pagar, isso não será mérito. O dinheiro não é dele, nem foi conquistado por qualquer coisa que ele tenha feito. O mérito é do bilionário. É apenas obrigação do homem usar o dinheiro para pagar a dívida, não uma ação meritória. Se não pagar, mesmo sob vigorosos protestos do conselheiro, incorrerá em mais um erro. Alguém que recebe um presente imerecido, pode aceitar ou não. Se aceitar, não se torna uma boa pessoa por isso, nem merecedor do presente. Fica bem claro, então, que a noção de mérito dos primeiros reformadas é errônea. E esse erro é uma das bases de sua rejeição do conceito de livre arbítrio exposto por Armínio.

6.2. Incoerência lógica

O segundo problema da doutrina da predestinação é que ela sustenta uma incoerência lógica. Para os primeiros reformados, sobretudo os calvinistas mais tradicionais, ao mesmo tempo que Deus predetermina os pecados do homem (incluindo a queda da espécie humana e a incredulidade das pessoas que Ele escolheu condenar), cada perdido é responsável por seus pecados e a consequente condenação. É evidente que se trata de uma contradição lógica. Ou Deus é a causa da perdição de alguns, sendo responsável por isso, ou é o homem que se perde, não tendo Deus qualquer culpa. Não se pode escolher as duas opções.

O que poucos reformados se dão conta é que assumindo a predestinação como fato, não só a salvação não depende de obras como a perdição também não. Deus salva por sua livre eleição e condena por sua livre eleição, não por obras boas ou más, não por mérito ou demérito das pessoas envolvidas. A doutrina reformada da predestinação implica necessariamente em um calvinismo do contra, por assim dizer. Tudo o que o calvinismo diz sobre os salvos eleitos deve ser dito sobre os perdidos eleitos. Assim, passagens usadas para sustentar a eleição para a vida, igualmente servem para sustentar a eleição para morte. Então, de Romanos 9:16, por exemplo, devemos depreender que no caso dos perdidos, não depende de quem não quer ou de quem não corre, mas de Deus não usar misericórdia. E de Efésios 2:8-9, que pela desgraça muitos são perdidos, mediante a descrença e isso não vem dessas pessoas, mas é dom de Deus; não de obras para que ninguém tenha escolha. Se não há livre arbítrio, não há como responsabilizar o homem nem pela salvação, nem pela perdição. O que se diz de um grupo, necessariamente vale para o outro.

A doutrina procura conciliar duas ideias opostas porque se assumir que as pessoas se perdem sem qualquer responsabilidade própria, mas por pura vontade divina, cria um duplo problema moral. Esse é o terceiro problema da doutrina da predestinação, o qual veremos a seguir.

6.3. Incoerência moral

O duplo problema moral causado da doutrina da predestinação é que ela torna Deus um tirano e o homem sem culpa. Se o homem é responsável pelo seu pecado, a condenação é moralmente justa, Deus não tem a menor obrigação de salvá-lo e a salvação se dá unicamente pela graça. Não obstante, se quem causa a queda da espécie humana e a incredulidade/desobediência de cada um é Deus, não há culpa real no ser humano. Deus está condenando humanos por erros que Ele mesmo predeterminou. Embora o Senhor tenha total direito de fazer o que bem entender de suas criaturas, já que as criou, não é possível dizer que é moralmente justo e lógico Deus atribuir culpa a criaturas que só erraram por sua predeterminação. Na verdade, tal quadro faria de Deus um louco.

Tradicionalmente, as repostas a esse tipo de argumento tem sido um apelo ao mistério, ao incompreensível. Em suma, Deus é tão superior ao ser humano, que não podemos entender a moral e a lógica presentes na eleição. O problema do apelo ao mistério é que ele pode ser usado em qualquer discurso, à bel prazer do orador. O que quer que seja ilógico ou imoral pode ser defendido apenas com base no: “Não podemos compreender porque é mistério de Deus”. Tal uso irresponsável do apelo ao mistério destruiria toda a teologia, todo o conhecimento possível ao homem e ofenderia à sabedoria divina.

O fato é que vivemos em um mundo lógico, organizado e ordenado racionalmente por Deus, a mente mais racional que há. E nós, feitos à sua imagem e semelhança, ainda que limitados à posição de criaturas e desfigurados pelo pecado, recebemos do Senhor a faculdade da razão. A bíblia, por sua vez, não nos incentiva a declinar da razão, mas a estudar e questionar, pois a verdadeira ciência e a genuína sabedoria pertencem a Deus e aponta para ele. A ideia de que há incompatibilidade entre Deus e a lógica é espúria. Tal como João afirma que Deus é amor porque amor é atributo intrínseco de Deus, Ele é também moral, justiça e lógica, pois todos esses atributos são inerentes à sua essência.

A lógica jamais pode ser demonizada ou posta como contrária a Deus ou a Bíblia, pois ela é parte de Deus e o sentido das coisas. Pensamos pela lógica, julgamos pela lógica, montamos argumentos pela lógica e as coisas só existem por ela. A Bíblia Sagrada, por consequência, é lógica. Portanto, somos chamados a buscar com afinco o sentido das coisas e não aceitar aquilo que é claramente uma contradição.

Perceba que isso não significa crer que tudo pode ser entendido pelo ser humano. É óbvio que nem tudo entenderemos. Mas não compreender algo não significa não haver lógica ali. Mesmo quando não entendemos algo na Bíblia, por falta de dados ou pela própria limitação de nossa natureza, ainda assim podemos saber se é lógico ou não. Um milagre, por exemplo, embora nos seja incompreensível não é uma contradição lógica, visto que é perfeitamente possível haver relações entre o mundo sobrenatural e o natural que desconhecemos, o que nos impede de entender como funciona. Trata-se de uma limitação por falta de dados. Mas um milagre não é uma contradição lógica como o é um círculo quadrado ou um corrupto honesto, por exemplo.

Ademais, existe também aquilo que chamo de supra lógica. São coisas que não conseguimos imaginar plenamente não por falta de dados, mas por limitação natural. É o caso da Trindade, do fato de Deus não ter início, da atemporalidade, etc. Por serem atributos divinos e pertencerem só a Deus, não conseguimos formar um entendimento perfeito sobre isso, mas apenas algo vago, baseado em várias analogias limitadas. Isso não significa, contudo, que tais coisas são ilógicas. Pelo contrário, a lógica nos leva exatamente até elas. Só não conseguimos ultrapassá-las. Por isso, não se trata de ilógica, mas de supra lógica.

Em suma, o apelo ao mistério no caso da eleição não se faz necessário, já que não é um caso de supra lógica ou de falta de dados. Há dados suficientes e é muito evidente que a doutrina da predestinação falha na moral e na lógica.

6.4. Destruição da relação pessoal Deus-homem

O quarto problema da doutrina reformada da predestinação é que ela retira a personalidade do ser humano, o que, por consequência, destrói a relação pessoal entre Deus e o homem. Ao não ter direito de escolha e ter seu destino definido não por decisões de sua responsabilidade, mas por arbitrariedade divina, o homem se torna uma marionete movida por Deus. Assim, já não há uma relação pessoal, embora tenhamos dois seres pessoas na questão.

A questão moral torna a pulsar aqui. Na doutrina reformada da predestinação, as pessoas são despersonalizadas por Deus. Analogamente, é como se um homem se casasse com uma mulher dopada e com ela tivesse relações sexuais. Essa ideia não representa a moralidade de Deus. Por mais que, do ponto de vista do direito, Ele possa fazer o que quiser de suas criaturas. Se Deus é bom, moral e amoroso, por certo deseja manter uma relação pessoal com suas criaturas. Na doutrina da predestinação, contudo, isso não existe.

6.5. Exaltação do pecado e redução de Deus

O quinto problema da doutrina reformada da predestinação é que ela acaba por tornar o pecado necessário para Deus. Isso porque em argumenta-se que Deus predeterminou a queda da espécie humana, os pecados dos homens e quem será condenado por eles para a sua glória. Se isso é verdade, segue-se que ou (1) Deus necessita do pecado para que sua glória se torne maior (ou mais evidente) ou (2) Ele não necessita, mas deseja que ela se torne maior (ou mais evidente) por meio do pecado. Em ambos os casos, fica claro que Deus deixa de ser entendido como ser maximamente glorioso em si mesmo. Ele passa a depender de um fator externo (e mal) para que sua glória aumente (ou se torne mais evidente). Isso contradiz muito do que a Bíblia e a própria lógica testificam de Deus. Como ser absoluto, perfeito e acima de tudo, Deus não pode depender de nenhum fator externo para se tornar mais completo ou com melhores atributos.

É fato que a Bíblia menciona atos de Deus cujos objetivos são exaltar/evidenciar a sua glória. Mas deve-se notar que a ideia expressa nesses relatos não é de que Deus era menos glorioso ou sua glória menos evidente por natureza, necessitando do pecado para uma calibrada. A glória do Senhor é a mesma desde sempre. Nada pode reduzi-la ou aumenta-la. O que mudou foi a percepção dessa glória por parte dos homens. Com o advento do pecado, a glória de Deus se tornou menor e menos perceptível aos olhos do ser humano. Quando, portanto, o Senhor faz algo para a sua glória, está visando não a sua glória propriamente, mas a percepção dela pelas pessoas.

Ora, se é justamente o pecado que reduz essa percepção no homem, é ilógico supor que Deus predetermina o pecado para aumentar a percepção da sua glória. O pecado é o mal, o problema, o câncer, a grande anomalia do universo, o extremo oposto de Deus. Sem o pecado, há perfeição. Sem o pecado, a percepção da glória de Deus é exatamente como deve ser, sem defeito. Supor que Deus criou o pecado para a sua glória é inverter tudo, colocando o pecado como algo necessário e positivo, como um antídoto, um remédio para uma limitação divina. A doutrina reformada da predestinação, portanto, dá um tiro no próprio pé. Desejando tornar Deus soberano e o homem totalmente depravado, acaba por jogar toda a responsabilidade do pecado em Deus, fazer dele algo necessário e de quebra reduzir a natureza do Senhor.

6.6. Má definição de soberania divina

O sexto problema da doutrina reformada da predestinação é que ela possui uma definição errônea de soberania divina. Para os primeiros reformados, se o homem puder escolher seu destino, ainda que sua escolha seja possibilitada apenas por graça divina, isso seria tornar Deus dependente da escolha humana, o que atacaria sua supremacia e frustraria algumas de suas vontades. Há vários erros aqui. Em primeiro lugar, a escolha humana não pode militar contra a soberania divina se foi o próprio Deus que deu ao homem a possibilidade de escolher. Ora, se Deus livremente decide dar esse possibilidade ao homem, sua decisão está sendo cumprida. E Ele, como soberano, pode escolher dar ao homem qualquer possibilidade que seu santo caráter julgar justo e bom. Qualquer. Incluindo o livre arbítrio humano. Não há, portanto, quebra de soberania, mas confirmação dela.

Em segundo lugar, não é necessário sustentar que todas as vontades de Deus não podem ser frustradas. Muitos teólogos observam que há pelo menos dois tipos de vontades em Deus (alguns trabalham com mais): a vontade a ideal e a vontade final. A vontade final nunca é frustrada. Por exemplo, Deus tem a vontade final de que muitos sejam salvos e o pecado seja exterminado. Isso não pode ser frustrado. Vai acontecer. Por outro lado, a vontade ideal é aquela que Deus gostaria que ocorresse, mas que, por conta do livre arbítrio que Ele dá ao ser humano por escolha própria, acaba não ocorrendo. É fácil visualizar isso. Deus gostaria que Adão e Eva não comessem do fruto proibido (e por isso Ele proibiu). Mas sabia, em sua onisciência que, por livre escolha, eles diriam não à sua vontade ideal.

A frustração da vontade ideal de Deus não representa uma quebra em sua soberania, pois essa vontade só é frustrada por permissão de Deus. No caso da queda, Ele poderia ter evitado que o casal pecasse, controlando-os, ou não os criando, ou não colocando a árvore no Éden, ou destruindo Satanás, etc. Mas permitiu tudo isso, sabendo de antemão que isso impossibilitaria sua vontade ideal.

A vontade ideal também pode ser expressa como sendo vontade condicional. Neste caso, visualiza-se melhor a soberania de Deus. Funciona assim: Deus deseja que X ocorra se e somente se Y também ocorra. Logo, não deseja que X ocorra se Y não ocorrer. Sendo sua vontade condicional, qualquer das duas opções está de acordo com ela. Um exemplo para deixar mais claro: Deus quer que o homem seja salvo se e somente se ele aceitar a Cristo como Senhor e Salvador. Logo, não quer que o homem seja salvo se não houver essa aceitação. Em qualquer um dos casos, a vontade condicional de Deus é satisfeita, o que demonstra a sua soberania. Ele determina os requisitos. Aqui a doutrina reformada da predestinação parece dar outro tiro no pé: desejando exaltar a soberania do Senhor, faz uma “proibição” ao próprio Senhor de usar sua soberania como bem entende.

6.7. Incoerência bíblica (exemplos da Bíblia de exortação ao arrependimento)

Finalmente, o sétimo problema da doutrina reformada da predestinação é que ela não possui coerência bíblica. A cosmovisão que a Bíblia nos apresenta é de um Deus que oferece ao ser humano a capacidade de escolha e o exorta constantemente a escolher corretamente (Dt 30:19, Js 24:15, II Reis 17:13, I Cr 28:8, Ez 20:19, Mt 11:28, Jo 15:10, Ap 2:5 e 3:20, etc). Deus fala claramente sobre coisas que não ordenou, mas o homem fez contrariamente à sua vontade (Gn 3:11, Jr 32:35, Os 8:34). Através da sua Palavra alerta sobre o seu julgamento (Ec 12:13-14, Hb 10:19-31). Afirma que os crentes devem ser fiéis até o fim (Mt 24:13, I Co 10:12, II Pd 3:17-18, Ap 2:10). Exorta repetidas vezes à santificação, numa ampla insistência (Lv 20:7, Js 3:5, Rm 6:12-13, Gl 5:25-26, Hb 12:14, I Pd 1:15-16 e 3:15, etc.). Demonstra mudar de atitude em relação à punições diante do arrependimento e orações humanas (Gn 6:6, I Sm 15:11 e 35, II Cr 7:14, II Cr 33:13, Jn 3:10, Ez 18:32 e 33:11, I Jo 1:9). Revela o desejo de estender a oferta de salvação a todos (I Tm 2:1-4, II Pd 3:9, At 17:30, Jo 3:16).

Tudo isso mostra que (1) há responsabilidade individual; (2) há liberdade de escolha, ainda que possibilitada apenas pela graça de Deus; (3) há risco de apostasia da fé e a necessidade de se conservar firme em Deus; (4) existe a possibilidade de não andar em santidade, renegando a influência do Espírito Santo.

Exortações, repreensões, estímulos, punições e bênçãos não fazem o menor sentido se o homem for um autômato, uma marionete sem personalidade, que apenas faz o que está predeterminado. Se tudo é traçado por Deus, todos os apelos divinos não passam de uma estranha brincadeira, um teatro solitário de Deus, onde Ele mesmo cria os pecados, a resistência, os apóstatas e os vencedores. Da mesma forma, se Deus predetermina a salvação e a santificação, mas ainda há alguma personalidade em nós, a situação não é melhor. Se podemos escolher tudo, menos a salvação/santificação, os apelos divinos continuam a não fazer o menor sentido, já que ninguém pode atender a esses apelos, mas apenas seguir o script divino. Isso destitui a oração intercessora, as exortações cristãs e o evangelismo de sentido. A doutrina reformada da predestinação, portanto, não possui coerência bíblica.

6.8. Considerações finais

Fica claro que a doutrina reformada da predestinação não se sustenta nem do ponto de vista lógico, nem moral, nem bíblico. Há diversas falhas nela até mesmo nas definições de alguns termos e conceitos que formam as suas bases. Apesar disso, há alguns textos bíblicos que aparentam ensinar a ideia de que Deus predestina uns para a vida e outros para a morte eterna. Uma dessas passagens está em Romanos 9, um dos textos mais utilizados por calvinistas. No próximo artigo, nos ocuparemos de analisar essa e outras passagens, averiguando qual o real sentido delas.

Por Davi Caldas

Fonte: Reação Adventista

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Escritor & Evangelista da União Central Brasileira

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