Um argumento muito comum utilizado contra o mandamento do sábado é o de que não há uma passagem no Novo Testamento que o reafirme. Resolvi fazer uma análise aprofundada dessa argumentação. Vou separar por pontos.
Ponto 1: Cuidado com as falácias
O primeiro ponto a ser enfatizado é que estamos lidando com um caso de “argumento do silêncio”. Esse tipo de argumento pode ser considerado uma falácia em muitos casos. O que é uma falácia? Falácias são argumentos que possuem um raciocínio falso, por conseguinte, conclusões ilógicas. Quem estuda lógica formal, uma área da filosofia, sabe que existe um grande catálogo com as falácias mais conhecidas.
O argumento do silêncio torna-se uma falácia quando se propõe a provar cabalmente a falsidade ou veracidade de algo com base no silêncio. Vamos dar um exemplo bobo. Estou estudando a obra de um autor. Depois de ler os dez livros que, até onde sabemos, ele escreveu durante sua vida, percebo que ele não menciona em nenhum deles a existência de sorvetes. Concluo que ou os sorvetes não existiam em sua época ou não existiam em sua região.
Perceba que essa não é uma conclusão lógica. De fato, é possível que em sua época e/ou região não existisse sorvete. Mas não dá para se concluir isso cabalmente com base no seu silêncio. O silêncio pode ter ocorrido porque o autor não julgou necessário, relevante ou conveniente escrever sobre sorvete; porque não lembrou disso; porque nenhuma de suas histórias ou relatos tivesse alguma relação com sorvetes; porque não teve tempo de escrever sobre isso. Talvez até ele tenha escrito sobre sorvetes, mas esses escritos se perderam. Pode ter ocorrido muita coisa. Assim, neste caso, o argumento é falacioso.
Quando o argumento do silêncio não é uma falácia? Há duas regras. A primeira é que ele não deve se propor a provar nada cabalmente. Em determinadas circunstâncias, o silêncio em relação a algo pode ser um forte indício, mas não deve ser encarado como prova cabal. Afinal, sempre há uma probabilidade, ainda que pequena, de haver algum outro fato que explique o silêncio.
A segunda tem a ver justamente com as circunstâncias em que o silêncio pode ser um bom indício na sustentação de uma tese. Que circunstâncias são essas? São aquelas em que se espera que algo específico seja mencionado. Exemplo: eu sou morador de um prédio há anos e escrevo um livro sobre a história dele. Se esse prédio sofre um grande incêndio um dia, mas no meu livro não há nenhum relato sobre isso, provavelmente eu escrevi o livro antes do incêndio. Por quê? Porque espera-se que um evento importante como esse seja relatado.
Mas embora isso seja um bom indício, não pode ser encarado como prova cabal. Há uma possibilidade, ainda que pequena, de eu ter resolvido omitir o fato. Não sabemos as razões, mas podemos imaginar algumas. Talvez eu tenha escrito a história para alguém que não gostaria de saber do incêndio, ou que eu mesmo não gostaria que soubesse. Talvez eu quisesse apagar esse fato triste da memória, exaltando só coisas boas. Talvez eu quisesse proteger alguém envolvido no incêndio e, então, resolvi não relembrar o evento. Também eu posso ter começado a escrever a história antes do incêndio e quando terminei, depois do incêndio, resolvi deixar como estava, sem incluir o fato. O indício, portanto, carece de outros indícios e provas, não podendo ser usado sozinho como uma prova cabal.
O argumento do silêncio em relação ao sábado se constitui uma falácia quando pretende concluir que isso é uma prova cabal de que o sábado foi abolido. Isso não pode ser concluído logicamente pela própria natureza do argumento. No máximo, pode-se usar o argumento como um indício. Mas aqui abre-se algumas questões: o silêncio sobre o sábado no Novo Testamento realmente é um bom indício de que o sábado foi abolido? Há boas razões para crer que o sábado deveria ter sido reafirmado de maneira direta em alguma passagem? E, no caso de o sábado não ter sido abolido, será que não há boas razões para que o tema não tenha sido mencionado? Ora, uma vez que o argumento não é lógico, mas probabilístico, esse tipo de pergunta precisa ser respondida para que o mesmo logre algum êxito.
Ponto 2: A fraqueza do argumento do silêncio
Ainda sobre o argumento do silêncio, para deixar mais clara a sua fraqueza, vamos aplicar a sua lógica na Bíblia. Fazendo uma pesquisa simples, descobri que a palavra sábado (com o sentido de sétimo dia da semana) é mencionada em apenas 14 dos 39 livros do Antigo Testamento. Incluindo na conta o livro de Gênesis, que usa a expressão “sétimo dia”, temos apenas 15 livros. Isso significa que em 24 livros do Antigo Testamento não existe nenhuma menção ao sábado. Isso representa 61,54% do Antigo Testamento. Se formos aplicar o argumento do silêncio de maneira simplista, vamos concluir que nesses 24 livros não havia mandamento do sábado para guardar. Qualquer estudante de Bíblia sabe que tal conclusão seria ridícula.
A explicação mais óbvia para a maior parte dos livros do AT não mencionar o sábado é que seus autores não acharam necessário ou relevante para os propósitos que aqueles livros tinham; nenhum fato relacionado ao sábado foi de tão grande importância que justificou a lembrança por parte do autor e a sua descrição.
Podemos aplicar semelhante método no Novo Testamento. Dos 27 livros, apenas 6 mencionam o sábado e um menciona a expressão “sétimo dia” (Hebreus). Ou seja, de 27 livros, 20 livros não falam do sábado. Isso representa 74% do Novo Testamento.
O que podemos concluir de tudo isso? Apenas que na maioria dos livros da Bíblia o tema do sábado não foi considerado relevante ou necessário para os propósitos daquela obra em específico. Isso não diz absolutamente nada, à priori, sobre se o sábado estava em vigor ou não.
Parece claro aqui que os autores do Novo Testamento seguiram a tendência dos autores do Antigo Testamento de falar pouco sobre o sábado. Se os do AT fizeram isso com o sábado em vigência, é perfeitamente possível que os do NT também tenham feito isso com o sábado em vigência. E se é ridículo concluir que não havia sábado no contexto de 24 livros do AT, apenas com base no silêncio, também é igualmente ridículo concluir que não havia sábado no contexto de 20 livros do NT apenas com base no silêncio.
Ponto 3: Para além do silêncio
Podemos ir além do silêncio nessa discussão e analisar, do ponto de vista estatístico, as passagens que falam sobre o sábado na Bíblia. Assim, podemos ter uma ideia melhor do que motivou cada autor a mencionar o sábado. Vamos começar com o AT.
Excluindo Gênesis 2:1-3, que narra um evento anterior à lei mosaica, há 41 passagens que mencionam o sábado no AT. Aqui considerei cada capítulo como uma passagem (ou como duas, no caso de capítulos que narram dois eventos diferentes). Podemos dividir essas 41 passagens em pelos menos três grupos: (1) passagens que instruem e relembram sobre a guarda do sábado; (2) passagens que apenas mencionam o dia de sábado; (3) passagens que repreendem o povo pela quebra do mandamento. Vamos chamar esses grupos de: Instrução, Menção e Repreensão. Quantas passagens temos em cada grupo? Segue:
1) Instrução: 17
2) Menção: 11
3) Repreensão: 13
A linha entre textos de instrução e textos de repreensão às vezes é um pouco tênue. Por exemplo, o texto de Jeremias 17:21-27 não contém propriamente uma repreensão ao povo, mas só uma instrução. Entretanto, ela surge de um contexto em que o povo vinha se desviando constantemente da vontade de Deus e chega a mencionar a desobediência das gerações passadas como um exemplo negativo a não ser seguido. Assim, esse texto poderia ser incluído como repreensão também. Não obstante, mesmo com as possíveis variantes, a classificação não fica muito distante do que foi exposto acima.
Uma forma de classificar também é unindo os grupos de instrução e repreensão. Nos dois grupos de texto, a motivação dos autores é semelhante: havia uma necessidade de enfatizar/rememorar o mandamento do sábado, fosse para solidificar a sua guarda nos costumes do povo ou para repreender a sua transgressão. Vamos chamar esse grupo de passagens de “Ênfase”. Nessa classificação, portanto, temos 30 textos de Ênfase e 11 textos de Menção. Que conclusões nós podemos tirar desses dados? Ao menos duas.
Em primeiro lugar, conclui-se que era mais provável um autor mencionar o sábado com o intuito de repreender ou instruir em vez de simplesmente citá-lo como parte de um relato. Essas passagens de ênfase constituem 73% das menções ao mandamento.Uma análise sobre os livros em que elas aparecem deixa a questão mais interessante. A maior parte dos textos de instrução se encontra nos cinco primeiros livros da Bíblia, escritos por Moisés, chamados de Torá. Outros textos estão nos livros de Neemias, Jeremias e Isaías. O que isso significa? Vamos entender.
O intuito central da Torá é mesmo prescrever leis e enfatizá-las. Ela foi escrita num contexto em que a lei estava sendo formalizada para o povo, era recente, precisava ser relembrada com frequência para que fosse solidificada na cultura e nos costumes da nova nação que surgia. Os livros de Isaías e Jeremias foram escritos em contextos de repreensão do povo e suas instruções intuíam também consolidar como costume o que não estava firme por conta da constante desobediência. Neemias, por sua vez, escreve em um contexto de reforma religiosa em Israel, onde mais uma vez se mostra necessário enfatizar leis para consolidá-las.
Já os textos de repreensão se encontram, em sua maior parte, fora da Torá, nos escritos de Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oseias, Amós e Neemias. À exceção de Neemias, todos esses escreveram em contextos de generalizada desobediência do povo ao mandamento do sábado. Neemias, como já dito, se situa num contexto de reforma.
Portanto, fica claro que 73% das menções ao sábado no Antigo Testamento decorrem de uma ampla necessidade de enfatizar o mandamento do sábado ao povo, ou para fixá-lo na cultura religiosa da nação, ou para combater uma desobediência generalizada.
Em segundo lugar, uma vez que o sábado não é mencionado na maioria dos livros do AT e, nos livros em que é mencionado, quase sempre é por conta de uma necessidade forte de ênfase para o povo, conclui-se o seguinte: em um contexto no qual o sábado esteja fortemente consolidado na cultura e não haja uma desobediência generalizada ao mandamento, esperaríamos poucas menções ao dia santo, nenhuma delas de ênfase.
Podemos usar o mesmo método no Novo Testamento para fazer uma comparação. No Novo Testamento, há 29 passagens que mencionam o sábado. Podemos dividir essas passagens em pelo menos dois grupos: (1) passagens que apenas mencionam o sábado, da mesma forma como no AT; (2) passagens que focalizam discussões a respeito de como guardar o sábado, geralmente entre Jesus e os fariseus. Vamos chamar esses grupos de: Menção e Discussão. Quantas passagens nós temos de cada grupo? Segue:
1) Menção: 17
2) Discussão: 12
Nós podemos tirar muitos desdobramentos desses dados. Em primeiro lugar, perceba um aspecto importante: diferentemente do AT, o NT não traz nenhuma passagem de ênfase, isto é, onde o autor procura criar uma cultura de guarda do sábado ou combater uma desobediência generalizada do mandamento. Isso acontece por uma razão histórica conhecida: durante a maior parte do AT, os israelitas tiveram problemas graves com relação à idolatria, culto às imagens e a transgressão do sábado. Foram pecados bastante frequentes ao longo dos séculos antes de Cristo.
Contudo, após a reconstrução dos muros de Jerusalém e as concomitantes reformas religiosas de Esdras e Neemias, esses pecados deixaram de ser um problema generalizado do povo. Um zelo maior pela lei emergiu e se desenvolveu de maneira tão forte, num período de quatro séculos,queo povo judeu saiu do extremo da ampla desobediência para o extremo do legalismo mecânico. Pois é este o contexto cultural do primeiro século: Israel não era mais um povo que transgredia amplamente o sábado ou que carecia de uma adaptação cultural ao mandamento; era agora um povo fortemente habituado a santificar o sétimo dia.
Em segundo lugar, percebemos que a mais da metade das passagens que falam sobre o sábado no NT é do grupo Menção, o que não ocorre no AT. Uma das razões que parece explicar isso é a seguinte: a maior parte dessas passagens está vinculada aos cultos em sinagogas. O costume generalizado de ir às sinagogas aos sábados naturalmente gerou uma maior menção ao dia santo nas narrativas.Outra razão é justamente o fim de um contexto que gerava necessidade de ênfase. Isso logicamente aumenta a probabilidade de que os textos citando o sábado sejam apenas de menção.
Obviamente, um grupo novo de textos, baseado numa nova necessidade contextual, poderia surgir e ultrapassar o número de passagens de menção. Mas não foi isso que ocorreu. O grupo novo que surgiu foi o de Discussão, mas aparentemente o problema de como guardar o sábado não foi tão amplo quanto o da transgressão do mandamento no AT. Isso também pode ser explicado. Enquanto o problema da transgressão do sábado no AT envolvia o povo quase inteiro, o problema de como guardar o sábado no NT era mais restrito aos líderes do povo. Eram eles e não o povo todo que viviam batendo nessa tecla. Se os líderes fossem ajustados, todo o povo seria também. O problema, então, tinha uma proporção menor, o que pode explicar a razão de haver mais passagens de menção do que de discussão.
Em terceiro lugar, se a maioria dos livros não cita o sábado e na maioria das citações, o sábado é apenas uma menção no relato, não uma instrução ou repreensão, isso significa os autores não viam muita razão, nem se sentiam muito compelidos a versar sobre o mandamento. Um fator interessante de se ressaltar tem a ver com a ocorrência das passagens em cada livro. Das 29 passagens sobre o sábado registradas no NT, apenas duas se encontram em epístolas, mesmo as epístolas constituindo 77,78% do NT. Há vários fatores que explicam isso: (1) as passagens de menção geralmente aparecem em livros de estilo histórico e, portanto, dificilmente apareceriam em epístolas; (2) epístolas do NT eram escritas para instruir e repreender e, uma vez que não havia necessidade de instrução e repreensão sobre o sábado, essas passagens também não apareceriam nas epístolas; (3) as passagens de discussão diziam mais respeito a um problema dos líderes religiosos do que do povo, de modo que, não se esperaria ver tais passagens em cartas para igrejas, mas se esperaria ver tais passagens em livros históricos que discutissem a conduta de líderes religiosos (como é o caso dos evangelhos). Tudo isso só enfatiza o fato de que o sábado dificilmente era um assunto que necessitava ser mencionado.
Ponto 4: Listas de Mandamentos
Um argumento que pode surgir aqui é que o sábado deveria ter sido mencionado como exemplo em alguma lista de mandamentos no NT. Há várias listinhas de mandamentos no NT e, se o sábado continuava em vigor, esperar-se-ia encontrá-lo em uma delas. Mas será? Vamos ver onde estão essas listas? Bom, há as de Mt 19:18, Mc 10:19 e Lc 18:20, que narram a mesma história: a do jovem rico. Ali Jesus exemplifica que postura um jovem rico que veio perguntá-lo sobre vida eterna deveria manter. Cada um narra da sua maneira, mas a essência é a mesma.
Mt 19:18:19: “Respondeu Jesus: Não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não dirás falso testemunho, honra teu pai e tua mãe, e amarás o teu próximo como a ti mesmo”.
Mc 10:19: “Sabes os mandamentos: Não matarás, não adulterarás, não furtarás, não dirás falso testemunho, não defraudarás ninguém, honra a teu pai e tua mãe”.
Lc 18:20: “Sabes os mandamentos: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não dirás falso testemunho, honra a teu pai e a tua mãe”.
Há também uma passagem na Epístola aos Romanos, em que Paulo afirma:
“A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto o amor com que vos ameis uns aos outros; pois quem ama o próximo tem cumprido a lei.Pois isto: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não cobiçarás, e, se há qualquer outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.O amor não pratica o mal contra o próximo; de sorte que o cumprimento da lei é o amor (Rm 13:8-10).
Repare que há algo em comum nessas listas: elas não mencionam nenhum mandamento que verse sobre o relacionamento do homem com Deus, mas apenas do homem com as demais pessoas. Essa curiosa tendência é seguida em outras passagens também. Tiago, por exemplo, afirma em sua epístola: “Porquanto, aquele que disse: Não adulterarás também ordenou: Não matarás. Ora, se não adulteras, porém matas, vens a ser transgressor da lei” (Tg 2:11). Paulo, escrevendo aos Efésios, diz o seguinte: “Filhos, obedecei a vossos pais no Senhor, pois isto é justo.Honra a teu pai e a tua mãe (que é o primeiro mandamento com promessa),para que te vá bem, e sejas de longa vida sobre a terra” (Ef 6:1-3). São citações diretas dos dez mandamentos, mas sempre da parte que se refere ao tratamento entre humanos.
Em Mateus 5, no famoso Sermão do Monte, Jesus também dá preferência a mencionar mandamentos do decálogo que versam sobre as relações humanas. No verso 21 ele fala do “Não matarás”. No verso 27 ele fala do “Não adulterarás”. Depois ele passa a falar de mandamentos que não estão no decálogo, mas sem sair muito das relações entre os seres humanos. Ele fala de juramentos entre as pessoas (que não deveriam ser feitos com base em coisas sagradas) no verso 33, sobre a regra jurídica do “olho por olho, dente por dente” (que estava sendo utilizada à pretexto de vingança pessoal) no verso 38 e sobre o mandamento de amar o próximo como a si mesmo no verso 43.
O mesmo Jesus, ao discutir com fariseus à respeito da tradição ritualística do “lavar as mãos”, menciona como exemplo um mandamento do decálogo que era negligenciado pelos fariseus. Mais uma vez, um mandamento referente às relações interpessoais:
“Ele, porém, lhes respondeu: Por que transgredis vós também o mandamento de Deus, por causa da vossa tradição?Porque Deus ordenou: Honra a teu pai e a tua mãe; e: Quem maldisser a seu pai ou a sua mãe seja punido de morte.Mas vós dizeis: Se alguém disser a seu pai ou a sua mãe: É oferta ao Senhor aquilo que poderias aproveitar de mim;esse jamais honrará a seu pai ou a sua mãe. E, assim, invalidastes a palavra de Deus, por causa da vossa tradição” (Mt 15:3-6).
Paulo, ao discutir sobre como a circuncisão não era suficiente para definir o caráter de um homem de Deus, escolheu também alguns exemplos do decálogo para citar: “[…] tu, pois, que ensinas a outrem, não te ensinas a ti mesmo? Tu, que pregas que não se deve furtar, furtas?Dizes que não se deve cometer adultério e o cometes? Abominas os ídolos e lhes roubas os templos? (Rm 2:21-22). Perceba que Paulo faz referência a três mandamentos do decálogo, os dois primeiros referentes às relações humanas e apenas o último à relação com Deus.
Em Gálatas 5:14, Paulo volta a dizer que toda a lei se cumpre no preceito de amar ao próximo como a si mesmo. Dos versos 19 a 21 menciona uma série de pecados que farão seus praticantes não herdarem o reino dos céus. Ele menciona 15 pecados como exemplo, dos quais 13 se referem à pecados contra o próximo e o próprio corpo, e só 2 diretamente contra Deus (idolatria e feitiçaria). Em I coríntios 6:9-10 o apóstolo Paulo faz uma lista semelhante, com 10 pecados, sendo apenas um referente à relação direta com Deus (a idolatria).
Essas passagens deixam claro que quando os autores do NT precisavam citar algum mandamento do decálogo, ou um mandamento moral fora do decálogo, ou um pecado moral, eles quase sempre escolhiam um que expressava a relação do homem para com as demais pessoas. Essa predileção é tão flagrante que Paulo chega a afirmar que toda a lei se cumpre no preceito de amar o próximo. Obviamente, Paulo não estava excluindo os mandamentos em relação a Deus quando disse isso. Ele estava, sim, dando conselhos justamente sobre as relações interpessoais. E nesse sentido toda a lei se resumia, de fato, apenas nesse preceito.
A ênfase nas relações interpessoais por parte dos autores do NT parece ser explicada pelo fato de que, como já observado, o povo judeu estava culturalmente bem fincado nos quatro primeiros mandamentos do decálogo. Para ser mais taxativo, a observância dos mandamentos referentes a Deus eram, há pelo menos quatro séculos, enfatizados ao extremo, já que as tragédias que seu povo havia passado se deviam, principalmente, à transgressão desses mandamentos. Essa ênfase, no entanto, criou um espírito legalista em muitas pessoas e acabou por ofuscar o amor ao próximo. É dessa cultura que emerge o cristianismo. O grande problema no início da igreja, portanto, não era a transgressão dos quatro primeiros mandamentos, mas a dificuldade de se manter relações humanas saudáveis baseadas no amor ao próximo. Por essa razão, a nova ênfase recaiu sobre o amor ao próximo.
Desta forma, o silêncio em relação ao sábado nessas listas de mandamentos, ou mesmo menções isoladas, está em concordância com o que se espera do contexto. Todas essas listas enfatizam mandamentos que versam sobre relações interpessoais, pois essa era justamente a ênfase pretendida. Não há motivo para esperar que o sábado fosse citado como um exemplo nessas listas. E assim como o sábado de fato não foi citado nas listas em questão, também não foi citado de maneira direta e explícita o terceiro mandamento, a saber: “Não tomarás o nome do Senhor, teu Deus, em vão”.
Ponto 5: Do mandamento à cultura
Quando uma regra passa a ser ensinada e seguida por muito tempo, ela acaba perdendo o status de mera obrigação para se tornar uma cultura. E quando uma regra ganha status de cultura, ela será seguida de maneira natural, às vezes até de modo irrefletido. Quando estudamos o contexto do judaísmo no primeiro século, percebemos que a guarda do sábado havia alcançado esse status. Não se tratava mais apenas de um mandamento, mas de uma cultura. Era absolutamente normal, natural, rotineiro e óbvio para um judeu parar suas atividades ordinárias semanalmente e ir a uma sinagoga se dedicar apenas às coisas de Deus. O oposto seria algo incomum, esquisito e escandaloso. A sociedade, no geral, seguia o hábito.
Quando o cristianismo surge, não emerge como uma religião distinta, mas como uma das vertentes do judaísmo. Os primeiros cristãos eram judeus, que prestavam culto nas sinagogas judaicas e pregavam o evangelho nelas. As sinagogas judaicas, por sua vez, não eram freqüentadas só por judeus, mas por gentios simpatizantes ou conversos ao judaísmo. Essas pessoas seguiam a cultura judaica de pararem suas atividades ordinárias semanalmente e passarem o dia nas sinagogas. E quando muitos deles aceitaram a Jesus, continuaram prestando culto em sinagogas e pregando o evangelho nelas.
O leitor percebe? Tratava-se não mais de mero mandamento, mas de uma cultura. Se o dia de culto dos judeus é o sábado, eles param tudo para adorar no sábado e eu passei a parar tudo no sábado para adorar com eles, por que eu deixaria essa cultura se quem me apresentou Jesus também é judeu e também para tudo no sábado ficar na sinagoga? Não faria sentido. Não seria uma ideia sequer cogitada. Simplesmente nada quebrou, naquele momento inicial, a cultura vigente. O sábado era o dia principal de culto com toda a congregação. E continuou sendo até a animosidade entre judeus e cristãos começou a criar uma separação entre as duas religiões.
Para entender melhor essa questão da força da cultura, podemos lançar mão de uma comparação com um contexto atual. A maioria das igrejas hoje tem como dia principal de culto o domingo. Embora a tradição de se enxergar o domingo como dia santo tenha se perdido dentre a maioria da população, a cultura do domingo como dia de descanso permaneceu forte. Assim, no domingo, a maioria das empresas, negócios e comércios fecha em boa parte das sociedades. A maioria das pessoas folga no domingo. Imagine, nesse contexto, um homem que se torna um cristão fiel e ativo. Como ele trabalha todos os dias, folgando só no domingo, é natural que ele só consiga dedicar mais tempo às coisas de Deus no domingo.
Pois bem, sendo um cristão ativo e devoto, aos domingos ele acorda cedo e vai ao culto da manhã e na escola dominical. Volta para casa ao meio dia para almoçar e esse é o único dia que almoça com toda a família, já que todos estão em casa. Ele não sai para comprar nada porque a maioria dos comércios está fechada e ele também já fez previamente algumas compras no dia anterior, para não precisar gastar sua folga em mercados no domingo, ou ter de sair mais cedo da igreja para encontrar algum comércio aberto. Após o almoço, tira uma merecida soneca e, mais tarde, volta para a Igreja, para ensaiar no coral, ou organizar algo em algum departamento. Ao terminar, volta para casa, toma um banho rápido e retorna à Igreja para o culto da tarde/noite. Volta para casa às 21h, tendo comunhão com a família e amigos sobre a pregação. E assim são todos os seus domingos.
Esse homem pode até não olhar o domingo como “um dia de guarda”, mas pela cultura ele praticamente guarda esse dia. Eu fui um desses guardadores extra-oficiais. Nem sempre fui um adventista do sétimo dia. Na verdade, nasci em uma família cristã e freqüentei algumas igrejas evangélicas até os 18 anos de idade. Fui membro oficial de uma Igreja Presbiteriana durante três anos, por escolha própria. Nesses três anos, nunca ouvi um sermão sobre o domingo ser o dia do Senhor e só uma vez ouvi uma irmã dizendo que era importante honrar o domingo. O pastor mesmo nunca orientou ninguém quanto a isso, embora essa seja uma doutrina da Igreja Presbiteriana. A guarda oficial do domingo se perdeu no tempo, sendo reduzida a poucas pessoas. Ainda assim, a guarda extra-oficial continuou firme. A Igreja estava repleta de homens e mulheres que dedicavam praticamente o domingo inteiro à Igreja e à família, muitas vezes se abstendo de diversões próprias. O pastor, embora não falasse para guardar o domingo, reclamava de membros que vez ou outra não iam aos cultos para ir a um estádio de futebol.
A cultura consegue levar pessoas a praticamente guardarem uma regra mesmo quando a desconhecem. Ela consegue levar pessoas a manterem fielmente um hábito ou tradição por muito tempo mesmo sem ninguém enfatizar que aquilo deve ser feito. Um hábito não precisa ser lembrado. É costume. É natural. Todos fazem.
Ora, estou dando um exemplo de uma regra (a guarda do domingo) que sofreu erosão nas igrejas por conta do secularismo e do relaxamento dos princípios cristãos a partir do século XX. Se mesmo tendo sofrido essa erosão, sua cultura permaneceu, imagine qual é a força de uma cultura que está solidamente fincada em um mandamento. Pois esse era o contexto no primeiro século. A cultura de guardar o sábado estava fincada fortemente em um mandamento que os judeus seguiam e entendiam como válido. Assim, os que freqüentavam as sinagogas juntamente com os judeus possuíam uma cultura de guarda do sábado forte o suficiente para se manter naturalmente. E não havendo objeção a essa cultura por parte dos que pregavam a Cristo, a cultura permanecia de pé.
Aqui surge a inevitável pergunta: havia necessidade de enfatizar o sábado? Os judeus conversos a Cristo o guardavam. Os prosélitos o guardavam. Os cristãos continuavam indo às sinagogas e pregando por lá. Ninguém falava contra a cultura vigente. Não havia um problema generalizado de transgressão do quarto mandamento. E, finalmente, o grande foco dos discípulos não era falar de leis (o que já era bastante enfatizado nas sinagogas), mas de Jesus Cristo. Qual a necessidade, portanto, de enfatizar o sábado nas mensagens? Qual era a relevância do assunto? Se o sábado, de fato, permanecia válido, é justamente o silêncio sobre ele que esperamos. O assunto, dada as circunstâncias, era absolutamente irrelevante, justamente por ter se tornado uma cultura. Por outro lado, se o sábado havia sido anulado, o que esperaríamos seria justamente o oposto: um enorme reflexo de discussões diretas e explícitas sobre o tema na maioria dos livros do NT.
Não se trata, evidentemente, de um argumento do tipo lógico, mas probabilístico. Tendo o sábado sido fixado fortemente na cultura e sendo tão caro aos judeus, é provável que as discussões sobre o mandamento, no caso de ter sido mesmo abolido, superassem as discussões sobre a circuncisão. Mas nem sequer algo próximo desse reflexo no NT.À nível de comparação, há 15 passagens no NT que demonstram claramente haver uma forte discussão na Igreja do primeiro século à respeito da circuncisão. Doze dessas passagens foram escritas por Paulo e nelas o apóstolo se mostra explicitamente hostil à imposição da circuncisão e aos que defendiam isso.
Quando se trata do sábado, entretanto, o máximo que se tem são três passagens que poderiam estar se referindo à abolição do sábado. Ou seja, não são reflexos claros de uma discussão sobre o tema, mas apenas possíveis menções bastante tímidas, como se uma suposta abolição não tivesse praticamente nenhum impacto cultural e teológico para as pessoas da época.
Dois desses textos(Rm 14:5-6 e Gl 4:8-11) sequer mencionam a expressão“sábado” ou “sétimo dia”, mas apenas dias, o que poderia incluir o sábado ou não. Pelo contexto das cartas, não há indícios de que os temas tratados nessas passagens não era o sábado. O único dessestextos que menciona direta e explicitamente o sábado (Cl 2:16) também não consegue expressar claramente a existência de uma discussão forte sobre a abolição do mandamento, pois, no contexto da passagem, o apóstolo não trata da abolição ou não dos hábitos descritos por ele, mas se limita a condenar julgamentos de determinada seita ascética à respeito daqueles temas. Então, enquanto a questão da circuncisão conta com 15 textos que expressam claramente uma forte discussão sobre o tema de sua validade ou não, o sábado não conta com nenhum texto claro nesse sentido.
O silêncio, portanto, se torna uma evidência mais favorável à manutenção do sábado do que a sua extinção. Uma observação valiosa sobre o jornalismo pode nos ajudar aqui: o que vira notícia geralmente é a ruptura, o diferente, o singular. O que permanece sem nenhuma alteração, sem qualquer novidade, sem nenhuma ruptura da norma, não tem relevância e, portanto, não é notícia. A manutenção do sábado tal qual era antes não iria causar barulho algum, a não ser que houvesse grande necessidade de enfatizá-lo, o que não era o caso. Já a ruptura do mandamento, já firmemente fincado na cultura de judeus e prosélitos, causaria um estardalhaço gigantesco. Em suma: a hipótese da manutenção do sábado nas primeiras décadas de cristianismo nos faz esperar exatamente isso do Novo Testamento: um enorme silêncio sobre o tema.
Resumo e Conclusão
O argumento do silêncio usado pelos anti-sabatistas pretende indicar que, se o sábado realmente continuou válido, isso deveria ter sido mencionado no NT. Este artigo buscou mostrar que se o sábado permaneceu em vigência, não apenas não há razões para crer que isso deveria ter sido enfatizado, como, pelo contrário, há razões para esperar que nada fosse dito, dada a falta de necessidade. As alegadas razões são:
1) O AT só menciona o sábado 15 dos 39 livros. Isso não significa que o sábado estava abolido nos outros 24 livros. Significa apenas que a maioria dos autores não entendeu como necessário mencionar o mandamento. Da mesma maneira, o NT só menciona o sábado em 7 dos 27 livros, indicando que os autores não viram necessidade em tocar no assunto.A tendência geral da Bíblia Sagrada é mencionar o sábado na minoria dos seus livros. Portanto, a probabilidade de que um autor o enfatizasse no NT era baixa.
2) No AT a maior parte das passagens que fala sobre o sábado são textos de ênfase, isto é, que buscavam incutir o mandamento na cultura do povo ou repreender a nação pela transgressão do mesmo. Isso significa que o que geralmente levava um autor a falar do sábado era uma forte necessidade de instrução ou repreensão. Esse contexto inexiste no NT. O mandamento estava muito bem fincado na cultura e não havia qualquer problema generalizado de transgressão. Portanto, a probabilidade de que um autor do NT viesse a enfatizar o sábado por necessidade de solidificar a questão culturalmente ou repreender uma ampla desobediência do povo era nula.
3) As listas de mandamentos do decálogo presentes no NT (citadas como exemplos a serem seguidos) contém, em sua esmagadora maioria, preceitos que versam sobre as relações do homem com as outras pessoas. Isso se dava porque a ênfase dos autores, de fato, era o amor ao próximo. Portanto, seria muito pouco provável que algum desses autores mencionasse nessas listas o mandamento do sábado como exemplo.
4) Uma vez que o mandamento do sábado estava bem fincado na cultura, sua ruptura geraria fortes reflexos de discussão nos livros do NT, ao passo que, sua vigência não representaria uma novidade ou um fato relevante para ser descrito. Portanto, o silêncio em relação ao sábado torna bastante provável que o mandamento continuasse em vigor e bastante improvável que tivesse havido alguma ruptura e, por consequência, alguma enorme discussão sobre o caso.
A conclusão desse artigo é que o argumento anti-sabatista do silêncio não logra êxito em mostrar que a abolição do sábado é provável. O silêncio é um forte indício de que nada mudou no que tange o sábado, pelo menos nas primeiras décadas de cristianismo, antes de cristãos e judeus se separarem por completo.
Por Davi Caldas
Fonte: Reação Adventista