Uma profecia da Bíblia muito interessante para a compreensão da obra redentora de Jesus Cristo, da escatologia bíblica e da unidade entre Antigo e Novo Testamento está em Malaquias 4. Vamos analisar. Os primeiros três versos descrevem o dia do juízo final. Este dia é de condenação para os perversos, mas de salvação para os justos:
“Pois eis que vem o dia e arde como fornalha; todos os soberbos e todos os que cometem perversidade serão como o restolho; o dia que vem os abrasará, diz o Senhor dos Exércitos, de sorte que não lhes deixará nem raiz nem ramo. Mas para vós outros que temeis o meu nome nascerá o sol da justiça, trazendo salvação nas suas asas; saireis e saltareis como bezerros soltos da estrebaria. Pisareis os perversos, porque se farão cinzas debaixo das plantas de vossos pés, naquele dia que prepararei, diz o Senhor dos Exércitos”.
A ideia aqui é de aniquilação total. Não vai sobrar nada dos ímpios. Seu destino não é queimar eternamente, mas queimar enquanto há o que queimar, até que não haja mais raiz ou ramo. Eles se tornam cinzas. O “para sempre” aplicado à punição dos gentios se refere a esse caráter de punição ininterrupta (sem escape, pausa ou descanso) até que se termine. Aqui o pecador impenitente é exterminado juntamente com o pecado e, então, o universo inteiro se livra da mácula da transgressão à vontade de Deus.
O texto fica ainda mais interessante no verso 4. Lemos:
“Lembrai-vos da Lei de Moisés, meu servo, a qual lhe prescrevi em Horebe para todo o Israel, a saber, estatutos e juízos”.
O leitor percebe? É um texto escatológico. Fala do fim dos tempos. Mas a ordem de Deus é para o leitor se lembrar da Lei de Moisés. Os ouvintes originais são os israelitas, que receberam primeiro a Lei. Mas, sendo o texto escatológico, ele alcança toda a Igreja, que, diga-se de passagem, é o resultado do enxerto dos gentios no meio dos israelitas étnicos crentes no Messias Yeshua, formando um só povo. Como atesta Paulo: “[…] se te gloriares [contra os ramos naturais da oliveira, os judeus], sabe que não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz, a ti” (Rm 11:18). Em suma, o homem estará afastado da Torá (Lei) no fim dos tempos, necessitando retornar a ela.
Confirma esse entendimento a insistência de João, em Apocalipse, de afirmar que o remanescente da Igreja Cristã, os santos que perseveram, são “aqueles que guardam os mandamentos de Deus e a fé em Jesus” (Ap 12:17 e 14:12). São esses que o dragão resolve perseguir no fim dos tempos. É João também que vai dizer, em suas epístolas, que não adianta dizer que seguimos a Jesus se não guardamos os seus mandamentos (I Jo 3:22-24 e 5:1-5 e II Jo 1:5-6). Esse ensino, apóstolo João aprendeu do próprio Jesus, que ligava a obediência ao amor verdadeiro por ele (Jo 14:15 e 21, 15:10).
O Apocalipse relata também, para nossa estupefação, que João viu a Arca da Aliança no Santuário Celeste (Ap 11:19). Ora, sabemos que na Arca da Aliança terrestre, que era figura da celeste (Hb 8:1-5, 9:11-12 e 23-24) continha as tábuas dos dez mandamentos, o decálogo (I Rs 8:9). Temos aqui uma alusão à relevância que os temas da Torá e do santuário de Deus ganhariam no tempo do fim. Está bem de acordo com a profecia de Malaquias, não é mesmo? Os dois últimos versos são ainda mais interessantes. Lemos:
“Eis que eu vos enviarei o profeta Elias, antes que venha o grande e terrível Dia do Senhor; ele converterá o coração dos pais aos filhos e o coração dos filhos a seus pais, para que eu não venha e fira a terra com maldição”.
Há dois pontos muito curiosos nesses versos. O primeiro é que Jesus aplica a profecia da vinda de Elias a João Batista (Mt 11:13-14). O profeta Elias relatado em Malaquias é um símbolo para João Batista. Ocorre que os quatro primeiros versos da profecia tem relação com o fim tempo do fim, um período próximo ao juízo final. E os dois últimos versos também parecem enquadrar Elias nesse contexto de um profeta que vem um pouco antes do grande e terrível dia do Senhor. Não foi o caso de João Batista. De lá para cá, passaram-se dois mil anos e o juízo final não veio.
O segundo ponto curioso é que o verso 6 diz que o profeta Elias vem para reconciliar pais e filhos, a fim de que Deus não fira a terra com maldição. Mas se o juízo final é justamente Deus ferindo a terra com maldição, e esse juízo vai ocorrer, como Elias pode reconciliar pais e filhos?
Um mergulho no pensamento hebraico responde as duas questões. No modo de pensar hebraico, eventos longamente separados em relação ao tempo podem ser relatados de forma simultânea, como se fossem um só, quando sua natureza e conteúdo coincidem em pontos cruciais. E isso é bastante comum em profecias. Jacques Doukhan exemplifica:
“Podemos observar esta perspectiva nas festas judaicas que ligam eventos passados e futuros. Os eventos passados da Criação e do Êxodo estão associados ao Sábado (Êx 20:11; Dt 5:15). Do mesmo modo, o evento futuro da salvação de Deus identifica-se com o ano sabático ou do jubileu. (2 Cr 36:21; Is 61:1, 2; Lv 25:9). O mesmo princípio aparece nas profecias bíblicas, que, por exemplo, invocam a grande batalha de Jezreel (2 Rs 10:11) para falar sobre a batalha escatológica futura (Os 1:4, 11). O evento de Sodoma no passado serve como um veículo para descrever o destino similar de uma cidade futura (Lm 4:6; Ap 11:8). Uma boa ilustração deste conceito aparece no Novo testamento, na qual Jesus une sua profecia relacionada à breve destruição do Templo e de Jerusalém (Mt 24:1, 2) com os eventos ainda distantes do fim e da destruição do mundo (vv. 3-31)” (p. 65).
Além dos exemplos oferecidos por Doukhan, também podemos citar a profecia de Joel 2:28-32. A profecia fala sobre o derramamento do Espírito Santo e também sobre sinais que ocorreriam no tempo do fim. Pedro entende que essa profecia se cumpre em Atos 2, quando os discípulos recebem o poder do Espírito. Ele está certo. Mas esse é o primeiro evento da profecia. Um segundo evento também ocorrerá, em moldes semelhantes, mais próximo do grande e terrível dia do Senhor. Podemos chamar esse tipo de relato profético de “profecias de dupla aplicação”.
Entendendo o conceito de profecias de dupla aplicação, conseguimos compreender o que a profecia de Malaquias 4 quer dizer. Os dois eventos relatados na profecia (como se fossem um só) são as duas vindas do Messias Yeshua. Os eventos possuem a mesma natureza de juízo. Mas na primeira vinda do Messias, a maldição com a qual Deus feriria a terra é lançada sobre o próprio Messias. Sobre isso profetizam também os textos de Isaías 53:4-12 e Daniel 9:24-27. O Messias toma o nosso lugar, sendo morto e selando a aliança através da sua morte. O apóstolo Paulo explica esse conceito em Gl 3:13-14 e Rm 5:8-11. Que aliança é essa? É a aliança renovada, onde nos é dado o Espírito, passamos a ter coração novo e a Torá é implantada em nosso interior (Jr 31:31-34; Ez 36:26-28; Lc 22:20; Hb 10:12-17).
O Messias ressuscita e ascende aos céus. Mas deixa a promessa de que irá voltar. Só que nessa segunda vinda, a maldição de Deus não cairá mais sobre ele, e sim sobre todos os que não se arrependeram de seus pecados e não aceitaram a redenção em Yeshua. É nessa segunda vinda que a terra é ferida com maldição e os ímpios são julgados. Assim, no relato, primeira vinda está para a segunda vinda, o juízo final está para o juízo carregado pelo Messias.
E o Elias prometido? Na primeira vinda, Elias era João Batista, clamando às pessoas por arrependimento e, como todo profeta bíblico, incentivando um retorno à essência da Torá. Mesmo os mestres precisavam voltar a essa essência. É Jesus quem diz que se os rabinos incrédulos que o perseguiam cressem realmente em Moisés, creriam em Jesus, pois Moisés testifica do Messias (Jo 5:45-47). Assim, o retorno à essência da Torá não só objetivava um refinamento da moral e da espiritualidade (Mt 5:17-48), mas também o conhecimento do Messias. De fato, Jesus e o próprio João Batista aplicavam ao ministério do “Elias” a profecia também de Malaquias/Isaías de que ele prepararia o caminho para a vinda do Senhor (Ml 3:1; Is 40:3; Mt 11:10; Jo 1:23).
Da mesma forma, antes do Messias retornar, há necessidade de um Elias levando as pessoas à essência da Torá e preparando o caminho para a sua volta. Como é esse Elias? A Bíblia dá suas pistas. Jesus fala que o fim só virá depois que o evangelho do reino for pregado em todo o mundo (Mt 24:14). Em Apocalipse 10 a ideia é repetida. João, em uma visão, é ordenado a comer um livrinho que é doce na boca, mas fica amargo quando desce ao estômago (Jo 10:8-10). Esse livrinho é uma alusão ao livro de Daniel, repleto de profecias escatológicas, que Deus afirmou que ficaria selado até o tempo do fim, quando o conhecimento sobre profecias se multiplicaria (Dn 12:4-10).
Ora, esse despertar para as profecias de Daniel ocorreu por volta do século 18 e 19, em diversas nações, o que levou muitos ao pensamento doce de que Jesus voltaria por aquela época. A decepção de Jesus não ter voltado é o amargor no estômago. A resposta de Deus para esse desapontamento é simples: “É necessário que ainda profetizes a respeito de muitos povos, nações, línguas e reis” (Ap 10:11). O texto está em conformidade com as palavras de Jesus em Mateus 24:14. O evangelho precisa ser pregado no mundo todo. É em Apocalipse 14 que a última peça do quebra-cabeça se encaixa. Lemos:
“Vi outro anjo voando pelo meio do céu, tendo um evangelho eterno para pregar aos que se assentam sobre a terra, e a cada nação, e tribo, e língua, e povo” (Ap 14:6).
Não se trata de um anjo literal. O evangelho foi dado a nós, humanos e pecadores, para pregar. Então, o anjo representa o homem. E se o anjo do relato prega ao mundo inteiro, ele representa não um homem só, mas um movimento, um conjunto de pessoas. Não precisa ser muito esperto para entender que o movimento é formado por aqueles que guardam os mandamentos e a fé em Jesus (Ap 12:17 e 14:12). Este movimento é o Elias da segunda vinda. Ele tem abrangência mundial e se destaca por levar aos cristãos um evangelho que não se desvincula dos mandamentos de Deus, mas, como diz a profecia de Malaquias, diz ao mundo: “Lembrai-vos da Lei de Moisés” (Ml 4:4).
O texto de Apocalipse 14 nos traz mais detalhes interessantes sobre esse Elias da segunda vinda, o anjo do evangelho eterno. A sua mensagem para todos os povos, “em grande voz”, é a seguinte:
“Temei a Deus e dai-lhe glória, pois é chegada a hora do seu juízo; e adorai aquele que fez o céu, e a terra, e o mar, e as fontes das águas” (Ap 14:7).
A passagem testifica que o evangelho eterno, pregado ao mundo inteiro no tempo do fim, possui também uma exortação a que as pessoas se lembrem de Deus como Criador. Aqui devemos juntar algumas peças do quebra-cabeça: (1) no tempo do fim, Deus preserva um remanescente que crê em Jesus e também guarda os mandamentos de Deus (Ap 12:17 e 14:12); (2) os temas do santuário e dos dez mandamentos são ressaltados (Ap 11:19); (3) a tônica da mensagem de “Elias” (tanto na primeira quanto na segunda vinda) é o retorno aos mandamentos da Torá (Ml 4:4). Ora, um dos mandamentos do decálogo (que está na Torá) é o sábado. O Êxodo explica que a razão primária para guardar o sábado é “porque, em seis dias, fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou” (Ex 20:11). Notou que o texto de Êxodo 20:11 é quase o mesmo de Apocalipse 14:7? Vamos analisar.
Variações dessa descrição de Deus como Criador em Êxodo 20:11 são encontradas em diversas passagens da Bíblia (Ez 20:12-14; II Cr 2:11-12; Jn 1:8-10; Sl 115:15, 121:2, 124:8, 134:3, 146:5-6; At 4:24-27, 14:15, 17:23-24; Ap 10:5-7). Isso é uma evidência muito clara de que Deus deseja ser lembrado como Criador. Ora, a razão para a instituição do sábado (para além de prover descanso espiritual ao homem) é lembrar de Deus como Criador na teoria e na prática. Aliás, existe em Gênesis uma íntima relação entre a criação, o nome do Criador (YHWH – “Yahweh”) e o sábado. Falei um pouco dessa relação no texto “Yahweh, o Deus Criador”. Assim, quando o sábado é esquecido, essa relação também é.
Curiosamente, ao escrever o decálogo, Deus usou a expressão “lembra-te” em relação ao mandamento do sábado (Ex 20:8). E seu apelo para um retorno à Torá, através de Elias, na primeira e na segunda vinda, começa com a expressão “lembrai-vos” (Ml 4:4). As palavras indicam que a Lei e o sábado seriam esquecidos. O texto de Daniel 7:25 testifica disso, ao narrar as atitudes de um poder político-religioso que se oporia às santas doutrinas de Deus: “Cuidará em mudar os tempos e a Lei [de Deus]”. O mesmo poder, segundo Daniel 8:12, deita por terra a verdade. Ou seja, por influência desse poder, a maior parte das pessoas deixa a Torá e o sábado de lado. Por isso a última mensagem traz um apelo ao mundo para que voltem a adorar a Deus como Criador, o que inclui lembrar-se da Torá e do sábado. O Deus Criador é o Yahweh, de Gênesis, que criou o mundo e santificou o sábado em honra a sua posição de Criador.
Os dois últimos versos de Malaquias 4 ainda possuem outro ponto muito interessante. É dito que Elias converte o coração dos pais aos filhos e dos filhos aos pais. É improvável que a reconciliação de pais e filhos aqui seja literal. Embora haja muitos pais e filhos em conflito no mundo, o problema não é tão extenso a ponto de se tornar o principal do mundo. A linguagem é simbólica. Pais são uma boa representação de autoridade e origem. Filhos representam bem subordinação e descendência. Portanto, a expressão muito provavelmente é uma alusão à reconciliação das pessoas com a fé (e a prática) original e fundamental das Escrituras – simbolicamente, os filhos tornam a obedecer aos pais e reconhecê-los como autoridade; os pais aceitam os filhos de volta. É um símbolo para conversão, santificação e retorno à pureza das doutrinas. Isso se encaixa bem com o aviso de Deus ao povo, nas duas vindas: “Lembrai-vos da Lei de Moisés”. Ora, a Torá é a origem de toda a Bíblia Sagrada. Tudo começa pela Torá. Retornarmos a ela é retornarmos aos nossos pais.
Um esquema nos ajuda a visualizar melhor como a profecia de Malaquias 4 entrelaça as descrições da primeira e da segunda vinda do Messias:
Ainda podemos tirar mais algumas informações interessantes dessa profecia. O nome de Elias é usado como símbolo especial para profetas e serviço profético. Em Apocalipse 11, ele representa toda a parte das Escrituras conhecida como Profetas, assim como Moisés representa toda a Lei. Assim, Moisés e Elias juntos representam sempre as Escrituras Sagradas como um todo. A identificação de João Batista e o anjo de Apocalipse 14 como o Elias da primeira e da segunda vinda (respectivamente), ambos com uma mensagem relacionada à Lei de Moisés, indica que os dois cumprem funções proféticas específicas e envoltas de forte apelo às Escrituras Sagradas.
A Igreja Adventista do Sétimo Dia crê ser esse movimento profético que prega o evangelho ao mundo juntamente com a mensagem de retorno à Lei do Senhor e à adoração a Deus como Criador. Longe de se julgar perfeito (o que certamente não é) e pensar de maneira exclusivista (como se a salvação pertencesse aos adventistas), o movimento adventista entende ser um mensageiro que leva aos demais cristãos uma visão positiva da Lei e uma escatologia com ênfase no retorno de Jesus Cristo, tal como as profecias de Malaquias 4 e Apocalipse 14 preveem. Trata-se de um movimento imperfeito, porém necessário, tal como o foram os movimentos de homens como Wesley, Calvino, Lutero e o próprio João Batista. Em nenhum deles estava a salvação, mas sim uma mensagem importante de Deus para a época em que viveram. Esse é o papel da IASD. Essa é a função do “Elias”.
Por Davi Caldas
Fonte: Reação Adventista