A correta definição de graça

Certo irmão afirmou o seguinte em um comentário que li na internet: “Crer em livre arbítrio é negar a salvação pela graça. Porque se eu digo que é a partir de uma atitude minha que eu vou para o céu, logo estou sendo salvo por uma escolha minha. Se parte da uma vontade humana, logo é salvação por obras e não por graça”.

Há vários problemas nessa definição de graça. O primeiro é de ordem bíblico-histórica. Quando Paulo, por exemplo, opunha salvação pela graça à salvação pelas obras, o contexto subjacente era o de judeus que achavam que a salvação era garantida por meio da circuncisão, da observância das festas judaicas e do cumprimento de regras baseadas na tradição oral dos anciãos (muitas das quais se chocavam com uma interpretação mais viva e profunda da Lei). Em suma, essas pessoas acreditavam que a salvação estava atrelada a se tornar e agir como um judeu étnico.

Esse sentimento era reforçado pelo fato de a maioria dos judeus não ter aceito a Jesus como Messias. Se a salvação estava simplesmente na fé em Jesus, gentios incircuncisos poderiam ser salvos dessa forma, enquanto que uma maioria de judeus circuncidados e guardadores fieis de leis e tradições especificamente judaicas poderiam se perder. Isso soava inconcebível, pois era como se Deus estivesse quebrando sua aliança com Israel. É por isso que Paulo, em Romanos, vai argumentar que Deus não quebrou sua aliança, pois sua aliança sempre incluiu os gentios crentes que se achegavam a Yahweh, e sempre deixou claro que embora os descendentes de Israel sejam inúmeros, apenas o remanescente fiel é salvo e contado na aliança. Eram questões já reveladas na Bíblia Hebraica (o Antigo Testamento).

Com esse contexto em mente, fica claro que Paulo não concebe salvação pela graça como uma redenção à parte da decisão humana, mas como uma redenção à parte de ser e agir como um judeu étnico. A base dessa salvação pela graça, em vez de circuncisão e “obras de Lei” (um termo que envolvia tanto leis judaicas quanto tradições que “geravam justiça”, segundo seus praticantes), era a fé em Jesus como Messias. Esse é o contexto.

O segundo problema é de ordem lógica e semântica. Pela lógica, a partir dos dados bíblicos, podemos dizer que salvação pela graça implica a inexistência de obras meritórias para a redenção. Ninguém é salvo por se circuncidar, participar de festas judaicas e seguir tradições rabinicas. Nem mesmo é salvo por não matar, não roubar e não adulterar. Somos salvos pela fé em Jesus, sendo as obras apenas o resultado da salvação e da transformação que o Espírito opera em nós. Mas isso não implica que nossa mera decisão de aceitar a salvação provida por Cristo e a regeneração oferecida pelo Espírito Santo nos gere mérito. Nossa aceitação não muda o fato de que não merecemos. Continua sendo pela graça.

Um homem que deve muito dinheiro não passa a ter mérito diante do seu credor simplesmente porque aceita uma proposta misericordiosa e gratuita de perdão da dívida. Tanto aos olhos do credor que perdoa, quanto aos olhos do devedor que aceita, o perdão continua sendo um ato de graça imerecido. Confessar a dívida e aceitar o perdão não paga a dívida. O que paga a dívida é a boa vontade do credor em oferecer o perdão e arcar com o custo.

Assim, a participação humana no processo de salvação não é meritória. A própria fé não gera mérito algum diante de Deus. Ele estipula a fé como pré-requisito não porque ela paga a dívida, mas porque sem fé não há relacionamento com Deus. E o que Jesus faz por nós na cruz é restaurar nosso relacionamento com o Pai.

O problema semântico, como fica evidente, é entender que a mera aceitação da oferta de Cristo já é uma obra meritória. Para sustentar isso, é preciso definir mérito como abarcando até o que aceitamos receber sem merecer. Essa estranha definição, no entanto, não se encontra no vocabulário bíblico.

Finalmente, essa definição estranha de salvação pela graça ignora que mesmo a fé do ser humano em Cristo só pode ser ativada por iniciativa do chamado do Espírito Santo ao arrependimento, o que o arminianismo denomina graça preveniente. Sem essa graça, não teríamos condições de enxergar a Cristo e nossa necessidade dele. Nesse sentido, calvinistas e arminianos concordam em suas teológicas: só há salvação se Deus chamar. A diferença reside no fato de que os arminianos crêem que o Espírito faz o convite a todos. E todos podem aceitar (embora nem todos aceitem). Já os calvinistas creem que Deus não chama a todos, reservando desde a eternidade boa parte da humanidade à perdição.

Portanto, a acusação de que havendo livre arbítrio não há graça é descabida. Ela se baseia em anacronismo, distorção bíblica, má definição de termos e incoerência lógica. A definição correta de salvação pela graça não pode fluir de concepções posteriores ao texto biblico. Ela precisa fluir do texto, considerando-se seus contextos histórico-cultural, temático, idiomático, estilístico, teológico, lógico e moral. Sem isso, a definição será apenas uma imposição extrabiblica ao texto sagrado.

Por Davi Caldas

Fonte: Reação Adventista


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Sobre Weleson Fernandes

Evangelista da Igreja Adventista do sétimo dia, analista financeiro, formado em gestão financeira, pós graduado em controladoria de finanças, graduado em Teologia para Evangelistas pela Universidade Adventista de São Paulo. Autor de livros e de artigos, colunista no Blog Sétimo dia, Jovens Adventista. Tem participado como palestrante em seminários e em Conferências de evangelismo. Casado com Shirlene, é pai de três filhos.

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