Fechamos o segundo artigo da série levantando algumas questões como: somente o conteúdo bíblico deve ser considerado fonte infalível de doutrina para a Igreja? Ou há uma tradição perfeita, advinda de um magistério santo da Igreja, que possui a mesma infalibilidade doutrinária da Bíblia? A Igreja deve ser infalível necessariamente? A tradição pode falhar? Se sim, ela falhou de fato? Para responder essas perguntas, vamos começar analisando dois princípios opostos de interpretação das Escrituras e da história do cristianismo: o tripé “Bíblia-Tradição-Magistério” e a “Sola Scriptura”. Do primeiro depende o sistema católico romano. Do segundo depende o movimento protestante.
A pretensão inicial era prover a resposta para todas as questões elencadas acima nesse artigo. Mas, uma vez que o artigo ficou muito grande, achei por bem dividi-lo em duas partes. Assim, trataremos aqui apenas da análise dos dois princípios opostos, deixando para o quarto artigo da série avaliação sobre a necessidade da Igreja ser infalível.
3. O Tripé e a Sola Scriptura
Para o catolicismo romano, a Palavra de Deus não está contida apenas no Cânon Sagrado (a Bíblia). Ela também está na tradição da Igreja e no ensino de seu magistério. Neste esquema interpretativo, a Igreja (a ICAR, no caso) possui autoridade suprema e infalível dadas por Cristo, de modo que sua tradição e seu magistério são sempre tão inerrantes quanto à Bíblia. Assim, para o catolicismo romano, as doutrinas da ICAR não devem se basear apenas na Bíblia, mas em todo o tripé santo da Igreja, não havendo desacordo entre Bíblia, tradição e magistério.
O movimento protestante discorda desse princípio, crendo no que Lutero chamou de “Sola Scriptura”. Segundo este conceito, apenas o conteúdo da Bíblia Sagrada pode ser considerado fonte infalível para as doutrinas da Igreja, e qualquer doutrina e ensino devem ser julgados com base no Cânon Sagrado (é só nele).
Explicados os dois princípios, podemos começar a avalia-los. Pelas minhas experiências em debates (participando ou observando), creio que a argumentação em prol do tripé pode ser resumida da seguinte forma:
(1) A tradição oral da Igreja precede a escrita do Novo Testamento. Logo, a Palavra de Deus está contida também na tradição oral, sendo tão importante e inerrante quanto o Cânon escrito.
(2) A Igreja primitiva é autora dos livros do Novo Testamento. Logo, ela possui, no mínimo, a mesma autoridade da Bíblia, já que o autor da obra é autoridade sobre a própria obra.
(3) A Igreja escolheu os livros que formam o Cânon Sagrado. Logo, mais uma vez, ela possui a mesma autoridade da Bíblia, pois a formou mediante sua autoridade.
Do ponto de vista dessa argumentação, a Sola Scriptura não faz nenhum sentido, pois a Escritura não existia antes da tradição oral da Igreja, nem antes da Igreja, e não existiria sem a autoridade da Igreja e seus ensinos orais. Resumindo em uma expressão católica comum: “Não foi a Bíblia que formou a Igreja, mas a Igreja que formou a Bíblia”.
A argumentação tem lógica? Em um sentido superficial, sim. Mas existem falhas conceituais na formulação dos argumentos. Vamos analisar cada ponto. Começando pelo primeiro.
3.1. A precedência da tradição oral
A tradição oral precede a escrita do Novo Testamento? Sim. Mas isso anula o princípio da Sola Scriptura? Se analisarmos o princípio à fundo, veremos que não.
Quando um protestante diz que a única fonte inerrante de doutrina é a Bíblia, há dois sentidos subjacentes a essa fala. O primeiro é que o veículo “escrita” é superior ao veículo “oral”. Nesse primeiro sentido, não se está falando do conteúdo da mensagem, mas da forma como foi registrada: pela escrita. É importante destacar que isso não significa que verdades escritas sejam superiores a verdades orais. Ora, se um mesmo fato verdadeiro é narrado oralmente e de forma escrita, sem alteração entre uma narrativa e outra, temos uma só verdade. Se eu digo oralmente que Jesus morreu na cruz ou mostro escrito que Jesus morreu na cruz, a mesma verdade está sendo dita.
A grande diferença aqui não reside numa suposta distinção entre verdades, mas em qual veículo a verdade tem maior chance de ser protegida, conservada. Em outras palavras, não há diferença entre uma verdade oral e uma verdade escrita (as duas são verdades), mas há diferença entre o veículo oral e o escrito no que tange à capacidade de conservação da verdade.
Podemos ilustrar: um grupo de velhos me narra uma série de casos supostamente ocorridos há 200 anos e que foram passados oralmente de geração em geração. Talvez seja verdade. E se for verdade, vale tanto quanto se a mesma fosse escrita. Mas pergunto: o veículo utilizado para me narrar esses supostos fatos (o veículo oral) me dá a maior garantia possível da veracidade do relato? Me traz a maior garantia possível de que a verdade foi conservada? O veículo foi de fato eficaz para essa conservação ao longo de dois séculos? Haveria algum veículo melhor para garantir não só a proteção da verdade, mas gerar maior confiança no ouvinte? Este é o ponto.
O veículo escrito é tido pelos protestantes como mais seguro. E a razão é óbvia. A oralidade está muito mais exposta à distorções, omissões e adulterações. Pela oralidade cada pessoa passa a diante uma narrativa de forma diferente e quanto mais longe o relato chega no tempo e no espaço, mais difícil se torna o controle da disseminação correta e a checagem da mensagem original pelos ouvintes.
No registro oral, morrendo as testemunhas originais ou estando muito distantes no espaço, os ouvintes são obrigados a pressupor a honestidade e infalibilidade de quem está relatando a tradição. Ou seja, para que a tradição seja tida como verdade, é preciso aceitar, sem muita evidência, que a mensagem não foi adulterada, nem por má intenção, nem por confusão inocente, nem por pressupostos pessoais dos emissores. É preciso aceitar que a tradição é mesmo original e os fatos ocorreram, mesmo não tendo acesso aos que os vivenciaram diretamente.
A tradição oral também conta com o problema da limitação da memória. Quanto maior e mais detalhado é um relato (ou conjunto de relato), mais fácil é de ele perder muitas partes. Ainda mais quando se trata de uma tradição que sempre se renova, compondo-se de mais relatos, comentários e interpretações. Abarcar tudo isso na memória coletiva, sem que nada se perca ou se distorça, é uma tarefa para a qual o veículo oral não está apto.
O reconhecimento de que o veículo escrito é mais eficaz e confiável que o veículo oral não é nada novo. Desde a época da escrita cuneiforme em tabletes de argila, por exemplo, o homem faz recibos de pagamento e registra listas genealógicas. Muitos reis ao longo dos séculos eternizaram seus grandes feitos em tabletes, paredes e papiros. E muitos “apagaram” derrotas da memória coletiva ao destruírem documentos escritos/desenhados.
É óbvio que na maior parte da história da escrita, o número de analfabetos foi muito superior ao de letrados. Isso fez com que a oralidade tenha prevalecido como ferramenta principal das massas no dia-a-dia por muito tempo. Mas a constatação não anula o fato de que o veículo escrito é superior para conservar verdades importantes e detalhadas por muito tempo e em amplas distâncias. Por essa razão registros orais muito relevantes sempre tenderam a ser passados para o veículo escrito, a fim da mensagem não se perder.
Isso não quer dizer que a tradição oral não tem sua importância. No entanto, sua capacidade de conservação (e, consequentemente, sua confiabilidade) está limitada a alguns fatores que se perdem com o tempo, como: (1) curta extensão espacial; (2) proximidade espacial do fato narrado; (3) proximidade temporal do fato narrado; (4) sobrevivência das primeiras testemunhas; (5) conformidade da tradição oral com as Escrituras hebraicas; (6) evidências fortes de confiabilidade não apenas em relação às testemunhas, mas aos demais emissores da tradição.
Alguns textos bíblicos revelam a consideração desses valores para a aceitação de relatos orais. Um texto interessante do apóstolo Paulo, por exemplo, afirma:
“Antes de tudo, vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. E apareceu a Cefas e, depois, aos doze. Depois, foi visto por mais de quinhentos irmãos de uma só vez, dos quais a maioria sobrevive até agora; porém alguns já dormem. Depois, foi visto por Tiago, mais tarde, por todos os apóstolos e, afinal, depois de todos, foi visto também por mim, como por um nascido fora de tempo” (I Co 15:3-8 – ênfase minha).
O mesmo Paulo, ao apresentar sua defesa ao governante Agripa, diz que o relato feito por ele dos eventos do evangelho não são novidade, sendo de conhecimento de Agripa e de todos, pois ocorreram em público (At 26:26). E complementa apelando às Escrituras hebraicas: “Acreditas, ó rei Agripa, nos profetas? Bem sei que acreditas” (At 26:27).
O apóstolo Pedro argumenta sob a mesma base, dizendo que ele e os demais discípulos foram testemunhas oculares do que pregavam e, na sequência, apela à autoridade dos profetas e da Escritura hebraica (II Pd 1:16-21).
Percebe? Eventos públicos, centenas de testemunhas vivas, relato oral restrito a um espaço não muito amplo, um período não muito extenso de tempo, testemunhas oculares vivas, emissores da tradição fazendo milagres (e mantendo evidências de um bom caráter moral), testemunhas e emissores sofrendo e morrendo pelo que diziam ser verdade, não obtendo qualquer benefício terreno, confirmação da tradição oral pelas Escrituras do Antigo Testamento, etc. A eficácia e a confiabilidade do relato oral eram sustentadas por esse conjunto de elementos. Na medida em que os anos passam, a mensagem se espalha por lugares distantes, testemunhas morrem, velhos emissores são expostos às suas próprias concepções, novos emissores surgem e milagres se reduzem (ou cessam), o veículo oral se torna ineficaz e duvidoso.
Essa utilidade provisória, temporal e limitada da tradição oral como fonte de doutrina e fatos é tão evidente que vemos indícios disso na Bíblia. Escrevendo aos coríntios, Paulo faz um discurso nos capítulos 3 e 4 contra facções que se formavam naquela igreja em torno de pregadores. Uns tomavam partido de Paulo, outros de Apolo ou Cefas. Paulo explica que todos têm sua importância e, ao mesmo tempo, todos estão subordinados a Cristo, devendo ser por ele julgados. Deixando essa lição, o apóstolo explica:
“Estas coisas, irmãos, apliquei-as figuradamente a mim mesmo e a Apolo, por vossa causa, para que por nosso exemplo aprendais isto: não ultrapasseis o que está escrito; a fim de que ninguém se ensoberbeça a favor de um em detrimento de outro” (I Co 4:6 – ênfase minha).
Aqui Paulo elege a Escritura como base contra as disputas por superioridade que estavam ocorrendo na congregação de Corinto. Ninguém deveria ultrapassar o que estava escrito, pois ali estava a base imutável que permaneceria viva mesmo distante dos apóstolos e mesmo depois da morte deles.
João, na mesma linha de raciocínio, explica que, embora Jesus tenha feito muitos sinais, ele registrou por escrito alguns básicos para que o material servisse de fonte imutável para a fé das pessoas (Jo 20:30-31). O mesmo João recebe ordem de Jesus para que escrevesse o que vira nas revelações em Patmos (Ap 1:19). Lucas inicia seus dois livros dizendo a Teófilo, o destinatário dos escritos, que fez uma pesquisa minuciosa, unindo os diversos relatos em um lugar só. O evangelista deixa claro que sua intenção é “dar-te por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem, para que tenhas plena certeza das verdades em que foste instruído” (Lc 1:3-4).
O mesmo Lucas elogia os crentes de Bereia porque aceitavam a pregação do evangelho com avidez “examinando as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim” (At 11:11). Na concepção de Lucas, a nobreza dos bereianos residia em aceitar o evangelho com avidez. E aceitar com avidez incluía o exame das Escrituras para saberem se o relato oral era verdadeiro. Esse conceito, de não crer em qualquer palavra, mas sim confrontá-las com as Escrituras é ensinado em todo o Cânon. Trata-se do bom ceticismo judaico-cristão. A visão de Pedro sobre a importância do veículo escrito é igual. Em sua segunda epístola, reconhece os escritos de Paulo como parte da Escritura (II Pd 3:14-16), o que evidencia que as cartas apostólicas não eram entendidas só como mensagens para a igreja local, mas como fontes imutáveis de fatos e doutrinas, sendo copiadas, espalhadas e aceitas nas igrejas com o aval dos apóstolos.
Em suma, a tradição oral estava subordinada às Escrituras hebraicas e a uma série de circunstâncias e fatores delimitadores. Na medida em que o veículo oral ia perdendo a capacidade de conservar as verdades novas da Nova Aliança pela expansão do evangelho no espaço e a passagem do tempo, escritos apostólicos iam surgindo com status de Escritura Sagrada, subordinando totalmente a oralidade. O veículo escrito é a herança deixada pelos apóstolos e se torna, segundo a Sola Scriptura, a norma basilar da Igreja por sua eficiência em preservar a verdade.
O fato de a oralidade preceder o Canon escrito, portanto, não implica que o Canon escrito não tem maior autoridade. O veículo oral possuiu sua importância e confiabilidade enquanto foi eficaz para conservar a verdade. No momento em que essa eficácia começou a ficar comprometida, o veículo escrito tomou o seu lugar, reunindo tudo o que era o mais importante para ser registrado e iniciando sua circulação ainda na vida dos seus autores. Desta forma, a autoridade do veículo oral está confinada a um período de tempo e um espaço (e uma cultura) específicos, não se estendendo aos demais contextos. Isso significa que qualquer tradição oral que não é transformada em escrita tão logo a oralidade se torna um método ineficiente, deixa de ser confiável, devendo ser descartada. A curto prazo, a oralidade pode ser eficaz. A médio e longo prazo, a escrita se torna a norma.
A Sola Scriptura, no primeiro sentido aqui analisado se sustenta por isso: a Escritura conteve toda a mensagem básica do evangelho antes da oralidade perder sua eficácia, garantindo a conservação das verdades relatadas e tornando-se o conjunto de documentos mais próximos dos fatos basilares do evangelho, escritos e circulados ainda na vida dos apóstolos. Tudo isso imprime à Escritura uma autoridade que o veículo oral não tem como reaver após perder sua eficiência.
Dito isto, podemos considerar que, de certa forma, não faz mesmo sentido falar em Sola Scriptura nos primeiros cinco ou dez anos de Igreja, com um evangelho restrito há poucos lugares, sua preeminência em Jerusalém (o local dos eventos narrados), os apóstolos vivos, milagres ocorrendo e centenas de testemunhas. A verdade estava contida nas Escrituras hebraicas e no testemunho oral dos discípulos e primeiros crentes. Esse testemunho, podemos dizer, tinha mais status de atualidade do que de tradição, já que tudo era recente, público e de fácil acesso. Então, num primeiro momento, o veículo oral como fonte de doutrina e fatos básicos tinha importância. Mesmo assim, sua autoridade estava limitada à Bíblia hebraica (o Antigo Testamento). Toda a pregação apostólica era baseada na correspondência entre o conteúdo da Bíblia hebraica e o que eles diziam, o que, de certa forma, confere a essa oralidade um suporte escrito. A escrita não deixava de ser a fonte legitimadora da oralidade apostólica inicial.
De qualquer forma, nós não vivemos no período apostólico. O veículo oral como fonte de doutrina, que pode ter sido eficaz nos primeiros dez anos de Igreja (mesmo assim subordinado ao veículo escrito em que estava o Antigo Testamento), perdeu sua validade nos anos seguintes. A escrita do Novo Testamento enterra a fase oral da Nova Aliança, assim como enterrou a fase oral da Antiga Aliança na época de Moisés. Ela se torna a norma doutrinária e o que de oral ficou de fora do processo já não tem como entrar no rol inerrante de doutrinas e fatos anos depois.
Considerando a providência divina, é óbvio que Deus conduziu o processo, tornando possível que tudo o que era necessário registrar fosse registrado e gerando assim uma base única, fixa e imutável sobre a qual toda a Igreja deveria se firmar doutrinariamente para sempre. A anterioridade da tradição oral sobre a Escritura não é, portanto, evidência de que a primeira tem maior autoridade que a segunda ou que anula o princípio da Sola Scriptura. Supor isso é equivalente a dizer que o Antigo Testamento tem mais autoridade que o Novo Testamento e até o anula, apenas pelo fato de ser anterior. A oralidade teve seu tempo de vigência, eficácia e importância. Findo este tempo, a Sola Scriptura entrou em vigor como único método aceitável.
Mas eu disse que há dois sentidos subjacentes ao termo Sola Scriptura. O segundo sentido é metonímico. Metonímia é aquela figura de linguagem em que relacionamos um termo a outro próximo. Assim, eu digo que gosto muito de ler C. S. Lewis, quando o que quero dizer literalmente é que gosto muito de ler os livros de C. S. Lewis. Aqui o autor é citado no lugar da obra, por relação.
O sentido metonímico de Sola Scriptura é aquele que está apontando não para o veículo da mensagem (a escrita), mas a própria mensagem, o conteúdo, os fatos. Nesse sentido, não se pode dizer que a oralidade precede a escrita. Se estamos falando do conteúdo, estamos falando dos fatos narrados. Quem produziu os fatos não foi a narrativa oral ou escrita, que são veículos. Veículos não produzem os fatos, apenas os reproduzem. Os fatos são produzidos pelo curso da realidade. Não foi a oralidade que produziu a morte de Cristo, ou o plano de redenção, ou a ressurreição. Foi o curso da realidade, a qual é formada pela a ação de milhões de agentes livres sob um mundo organizado e conduzido por Deus.
Nesse segundo sentido, a Sola Scriptura passa a significar “Somente os fatos hoje veiculados na Escritura”. Faz diferença? Muita. Porque os fatos hoje veiculados na Escritura um dia foram veiculados oralmente, enquanto este método era eficaz. Então, isso quer dizer que o princípio não mudou. A Igreja cria nesses fatos no início e continua crendo. A diferença é que a narrativa deles foi passada para o veículo escrito. Aqui o princípio da Sola Scriptura entenderá que os fatos e doutrinas básicos foram todos escritos ainda na vida dos apóstolos e, portanto, tornam-se a base eterna da Igreja. A Bíblia é suficiente porque aprouve a Deus compor em documentos apostólicos tudo o que era necessário, não criando margem para que gerações posteriores acrescentassem mais algo novo. Assim, tudo deve ter como base a Bíblia.
Os dois sentidos são complementares. A distinção deles serve apenas para demonstrar que tanto em um como em outro, a precedência da tradição oral sobre a Escritura não anula o princípio da Sola Scriptura.
3.2. A autoria do NT
A segunda linha de argumentação católica afirma que a Igreja tem autoridade igual ou maior que as Escrituras porque os livros do NT são de sua autoria. A grande falha desse argumento ressalta o que foi dito no ponto anterior: o fato de a Igreja preceder a escrita do Novo Testamento não significa que ela produziu os fatos do NT. Os fatos foram construídos pelo curso da realidade e os autores do NT apenas fizeram o registro.
Para entender melhor: se um autor de ficção científica inventa uma história e a registra em um livro, ele possui total autoridade sobre os fatos do livro e sua interpretação, pois ele produziu os próprios fatos e personagens relatados. A história é dele. Agora, um jornalista que apenas narra fielmente um acontecimento real, não tem autoridade nenhuma sobre os fatos, pois não os produziu. As pessoas envolvidas e a história contada são produtos do curso da realidade. O jornalista e seu jornal são apenas ferramentas para informar o que o curso da realidade produziu.
As implicações disso são gigantes. Se os autores do NT não são produtores dos fatos, mas apenas divulgadores, então não são os fatos que estão subordinados a eles, mas eles que estão subordinados aos fatos. Então, sim, o NT é autoridade sobre a Igreja, pois carrega os fatos diante dos quais a Igreja já era subordinada na fase oral (que por sua vez estava subordinada aos escritos do AT e à fortes evidências de que o testemunho direto dos apóstolos era verídico).
Evocar a precedência e a autoria da Igreja em relação ao NT como prova de autoridade da primeira sobre o segundo é ignorar que a escrita não mudou o conteúdo dos fatos e que, portanto, o conteúdo escrito deve ser o único a guiar (a partir da falência da oralidade nesta função) todas as doutrinas da Igreja. Nesse sentido, não se deve ultrapassar o que está escrito. E nesse sentido, deve-se checar nas Escrituras para ver se ensinos orais estão de acordo com ela. Ou seja, a oralidade permanece, mas não mais como fonte de doutrina, já que suas afirmações devem ser confrontadas com os escritos do AT e do NT.
Deve-se ressaltar ainda que, tendo os apóstolos sido inspirados pelo Espírito Santo na escrita do NT, isso os coloca ainda mais na posição de submissos aos escritos, já que eles enfatizaram aquilo que Deus sabe ser importante para toda a Igreja. Ora, se os apóstolos eram submissos e guiados pelo que registraram, inspirados por Deus, então toda a Igreja também deve sê-lo. E o que não foi inspirado a ser escrito ainda na vida dos apóstolos deve ser considerado como não relevante para registro, devendo ser descartado. Esse é o método divino para evitar que ensinos não apostólicos posteriores sejam divulgados como se tivessem origem apostólica e divina.
3.3. O fechamento do Cânon
O último argumento católico romano em favor da Igreja (a ICAR, no caso), da tradição e do magistério como autoridades iguais ou superiores à Bíblia está na alegação de que a ICAR fechou o cânon. Em outras palavras, ela decidiu que livros fariam parte da coleção sagrada que hoje chamamos de Bíblia.
A dificuldade nesse argumento é que tal narrativa é simplista. Ela evoca uma imagem irreal na mente do leitor/ouvinte de que, certo dia, um grupo de altos teólogos da ICAR se reuniu em Concílio e definiram o que era sagrado e o que não era para toda a Igreja, que não tinha a menor ideia sobre o tema. Óbvio que não é isso que o romanista diz, mas é a impressão psicológica que fica. Para sermos mais realistas, portanto, devemos fazer uma narrativa mais coerente com os fatos. Vamos fazer isso, então.
Não houve uma reunião de grandes teólogos da ICAR para escolherem os livros do Canon Sagrado. Houve sim alguns concílios em Hipona (393) e Cartago (397 e 419) que, em grande parte, se limitaram a formalizar e sistematizar o que já era praticamente unanimidade há séculos e definir a situação de alguns poucos livros que geravam algum debate. Isso deve ser enfatizado. A começar pelo AT, no primeiro século, a principal corrente do judaísmo, a farisaica, já aceitava como Escritura Sagrada a maior e mais importante parte dos livros que hoje compõem a Bíblia hebraica. Jesus, seus discípulos e os cristãos posteriores se guiavam mais ou menos por essa coleção aceita pelos fariseus, o que incluía a Torá, os profetas e o Salmos. As diversas citações desses escritos no NT nos dão uma ideia do que era unânime na principal corrente do judaísmo e, consequentemente, no cristianismo. Os poucos livros duvidosos que geravam debates, geralmente não eram descartados por quem não entendia como Escritura Sagrada, mas simplesmente ganhavam um status de menor importância e possíveis falhas.
De maneira semelhante, foi ainda no primeiro século que a maior e a mais importante parte dos livros do NT foi aceita pelos cristãos como Escritura Sagrada. Os evangelhos e as cartas de Paulo se incluem nessa lista. Quando Cânon foi fechado, por exemplo, dos 27 livros que compõem o NT, apenas sete geraram um debate mais forte. Isso quer dizer que mais de 70% do NT já era quase unanimemente aceito pela Igreja (líderes e leigos) desde as primeiras décadas de cristianismo, ainda na vida dos apóstolos. Aliás, é bem provável que todos os escritos que compõem o NT hoje fossem aceitos no primeiro século e que a dúvida só se criou anos após a morte deles.
Então, podemos falar em três fases do processo de fechamento do Cânon. A primeira, que ocorreu de modo muito natural e informal, compreende o período no qual a Igreja aceitou e fez circular os escritos apostólicos ainda na vida deles, podendo contar com seu aval, supervisão e aprovação. Essa aceitação primária e unânime é a base para o espalhamento dos escritos e a sua sobrevivência como fonte sagrada de doutrina após a morte deles. A segunda fase compreende o período pós-apostólico de uso desses escritos, juntamente com alguns outros registros cristãos novos já não tão unânimes. Por fim, a terceira fase compreende a formalização do Cânon, cuja maior parte do trabalho se baseia em aceitar o que toda a Igreja já aceitava desde o primeiro século.
Essa exposição mais detalhada do processo de fechamento do Canon pode levar a dois tipos de reflexões opostas. O primeiro: a tradição oral é realmente tão importante quanto o Cânon, pois os teólogos sabiam da aceitação da maioria dos livros sagrados desde o primeiro século por causa da tradição oral. E é nisso em que se baseiam os teólogos dos concílios de Hipona e Cartago, por exemplo, para fechar o Cânon. Mas o segundo tipo de reflexão levará em conta alguns outros aspectos importantes, fugindo de uma visão superficial. Exponho a reflexão.
Em primeiro lugar, a aceitação dos livros do NT como sagrados desde o primeiro século não é um fato que sobrevive apenas, nem principalmente, pela tradição oral. Há uma tradição material em jogo. Os escritos foram espalhados vastamente pelas igrejas desde quando foram produzidos. Não era possível haver engano. A tradição oral e a memória coletiva da Igreja eram submissas a essa tradição material, que tinha lastro antigo e todo mundo sabia.
Em segundo lugar, os próprios escritos pós-apostólicos, embora não fizessem parte das Escrituras Sagradas, registravam a aceitação dos escritos apostólicos ao fazerem citações e comentários sobre os mesmos, sempre os utilizando como fonte de autoridade. Aqui fica claro que até a tradição extrabíblica só se sustenta intacta com o passar do tempo se for registrada por escrito. Tais escritos não servem como fonte primária de doutrina, já que isso compete à Escritura Sagrada, mas servem de registro sobre o que se cria na época em que foram escritos. E isso imortaliza o conhecimento do que era aceito como Escritura Sagrada em cada época.
Em terceiro lugar, é preciso enfatizar que mesmo essa tradição material deveria estar subordinada às próprias Escrituras consideradas sagradas. Aqui cabe falar de critérios que podem ter sido usados de modo consciente ou inconsciente por toda a Igreja no processo, mas que foram utilizados sem dúvida. Repare: os livros considerados sagrados tinham elementos em comum. Todos foram escritos por discípulos diretos de Jesus, sendo copiados e circulados durante a vida deles, ou por seus companheiros diretos dos discípulos, debaixo de seu aval e supervisão. Todos também tinham como base o Antigo Testamento, mantendo assim forte laço e unidade com a Bíblia hebraica. Este segundo fator é, aliás, um dos critérios fundamentais que cada livro novo da Bíblia precisou ter ao ser escrito, a fim de ser aceito pelo povo israelita (líderes e leigos) como sagrado. A Palavra de Deus não pode se contradizer. Então, cada escritor só passava na peneira da sacralidade se concordasse com os escritos anteriores já aceitos. E assim por diante.
O único que não precisou passar por esse critério foi Moisés, o qual deu o pontapé inicial no processo de registro escrito da Palavra de Deus. Contudo, Moisés foi o maior dos profetas. Sua ligação com o verdadeiro Deus e a veracidade de suas palavras foram evidenciadas por diversos milagres de enorme amplitude e impacto, além do fato de sua religião proposta ser muito mais lógica, coerente e também moral que todas as outras religiões da época. A partir de Moisés, com fortes evidências para a aceitação de seus escritos, inicia-se a tradição da Escritura Sagrada, que servirá de base para todo o restante do desenrolar da Palavra de Deus ao longo dos séculos. A religião israelita e, por conseguinte, a religião cristã se tornam religiões “do livro”. E é exatamente essa tradição material repleta de evidências sólidas de veracidade, incluindo a coerência interna, que garantirá a preservação da verdade divina ao longo do tempo e a sua confiabilidade.
Como já dito, esses critérios foram seguidos pela Igreja do primeiro século, consciente ou não do fato. Isso gerou um alto grau de concordância em relação ao que era sagrado. Por isso, obras escritas após a morte dos apóstolos ou sem a supervisão dos mesmos, ainda que por quem chegou a andar com eles, já não possuem o mesmo grau de confiabilidade.
Aqui algo deve ser enfatizado: uma vez que a Bíblia deve ser um documento básico para a fé, mesmo que surjam escritos inspirados posteriores, eles já não devem entrar no rol dos livros que representam a Palavra de Deus. Para que o próprio veículo escrito cumpra eficientemente a sua função, a coleção de escritos sagrados deve primar pela concisão, não estando aberta a uma atualização perpétua. Tal abertura poderia criar ampla redundância, reduzir a importância dos primeiros livros, abrir margem para constantes escolhas erradas na seleção, gerar contradições e, por consequência, desfigurar a Palavra de Deus. Assim, o fechamento da coleção e seu uso como regra máxima e imutável de doutrina é essencial para o processo de preservação da verdade.
3.4. Conclusões
Dito isso, parece claro que o veículo escrito tem importância primordial para o movimento judaico-cristão, e que os fatos narrados no que hoje chamamos de Bíblia, são basilares. A precedência da tradição oral e da Igreja em relação à escrita do NT não anulam ou reduzem o conceito de Sola Scriptura, pois a tradição oral possuiu eficácia, relevância e vigência limitadas no tempo-espaço e, mesmo assim, sempre atrelada à Escritura hebraica e à evidências fortes de que o testemunho oral era verdadeiro. A tradição oral posterior já não possui a mesma situação de confiabilidade, perdendo seu lugar e dando à escrita total prevalência.
Assim, é a tradição material que irá guiar à Igreja aos seus principais acertos, como a formalização dos 27 livros do NT como sagrados. Por outro lado, é a elevação do tripé como modelo de autoridade maior que a Sola Scriptura, e os conceitos de Igreja e Papa infalíveis em matéria de doutrina, que irão, pouco a pouco, guiar à Igreja à erros que não poderá reconhecer. Estes se cristalizam como tradição inerrante e o tempo lhes dá cada vez mais status de verdade. Qualquer que pretenda apontá-los será tido como soberbo, pretensioso e herege.
Aqui está o x da questão: se a Igreja e sua tradição são mesmo infalíveis, todo o que aponta erros doutrinários é mesmo um pretensioso e herege. Mas se a Igreja e a tradição são passíveis de erros, devendo ser escrutinadas pela Escritura constantemente para não caírem, então é enorme falta de humildade do magistério da Igreja, em especial do cargo papal, não permitir este escrutínio. E a todos que são passíveis de erros, é condição essencial para não errar ou reparar (e rapidamente) eventuais falhas, reconhecer a possibilidade de estar errado.
Este terceiro artigo termina, portanto, levantando uma grande questão: é necessário uma Igreja infalível? Essa pergunta acaba abrindo sub perguntas como: para a confecção de uma Bíblia infalível não é preciso uma Igreja infalível? Para a correta interpretação da Bíblia a Igreja não deve ser autoridade inerrante? Se não há infalibilidade doutrinária e interpretativa, isso não gera um relativismo da verdade, uma terrível confusão onde cada um crê no que quer? Esses serão os temas abordados no próximo texto da série.
Por Davi Caldas
Fonte: Reação Adventista