Cristianismo: Letra e Música 

O que tem mais impacto sobre uma pessoa? A música ou a letra da música?

Essa é uma pergunta de difícil resposta e não raro vemos gente defendendo a supremacia da música sobre a letra ou vice-versa. Vamos àqueles que acreditam que a letra é predominante na recepção musical.

A letra, é claro, não é algo desimportante. As letras das canções de protesto de Chico Buarque e Geraldo Vandré miravam as injustiças e desmandos da ditadura , sendo que seus autores e intérpretes eram, no mínimo, frequentemente intimados a dar explicações sobre uma frase ou outra de uma música.

Tom Jobim foi inacreditavelmente vaiado no III Festival Internacional da Canção (1968), quando sua música “Sabiá”, de harmonia sofisticada e letra lírica, venceu a simples e direta “Pra não dizer que não falei das flores”, dos versos Caminhando e cantando e seguindo a canção…

A letra, para a plateia que estava na final do festival, parecia o elemento principal da estética musical. Apesar de não ser uma disputa da “canção mais politizada”, os apupadores desqualificavam a melodia, o arranjo e a poesia de “Sabiá”, mesmo que esta trouxesse, nas suas entrelinhas, o lamento de um sujeito forçado ao exílio. O contexto social “requeria” uma música que explicitasse os anseios políticos da plateia. No entanto, o júri não deu ouvidos à voz rouca dos festivais e premiou a canção de Jobim e Chico, considerada estruturalmente mais apurada.

Na música cristã, o debate é semelhante. Alguns defendem que a escolha do estilo musical é de ordem primordial para a adoração, sendo que os temas da cristandade devem ser tratados por meio de uma música alegre ou reverente ou alegremente reverente. Para esses, a letra religiosa merece estilos musicais que inspirem religiosidade ou que estejam tradicionalmente relacionados à alegria tranquila ou à solenidade sem artifícios.

Outros creem que a letra, ao tratar de temas cristãos, “sacraliza” de antemão qualquer estilo musical, pois a força literária prevalece sobre o impacto estritamente musical. O gênero musical estaria à serviço de um bem maior, a evangelização contextualizada, capaz de atingir diferentes nichos culturais. Além disso, chega-se a afirmar que a música não teria moralidade inerente.

Começando: nem todo estilo musical pode servir adequadamente às intenções do compositor. No caso da música secular, Carlos Lyra, ao ligar-se aos movimentos de resistência política universitária nos anos 60, renunciou à bossa nova, pois acreditava que esse estilo, referencialmente rebuscado, com influências jazzísticas e letras que versavam sobre “o amor, o sorriso e a flor”, não servia como música de confronto e de protesto. A rusticidade do baião e do samba, além de associados a uma suposta raiz nacional (hoje discutível) e ao homem do povo, serviria melhor aos propósitos políticos dos movimentos da época.

Na música sacra, não é incorreto supor que nem todo estilo musical seja próprio para o louvor e a adoração. Se a bossa nova seria um elemento refinado e doce demais para as durezas da confrontação política, não seria o caso de perguntar se o pagode ou o heavy metal, por conta de suas referências, são realmente adequados para expressar os temas cristãos? Bastaria enunciar uma letra religiosa para cristianizar esses estilos?

Nossa recepção a uma canção é afetada pelas referências que ela traz. Quanto a isso, não é possível ficar imune. O teórico da música Leonard Meyer e o semioticista Umberto Eco afirmam que a música denota sentidos e referenciais inscritos culturalmente. Numa época de saturação de signos audiovisuais como a nossa, é difícil negar a referencialidade presente numa obra musical. Talvez o cantor ou o compositor cristãos não queiram que alguém se obrigue a fazer associações estilísticas ao ouvir determinada canção, mas eles também não podem evitar que alguém venha a fazê-las.

Edward Said dizia que é preciso uma mente madura para entender que o compositor erudito Richard Wagner foi um gênio musical e também um crápula. Confesso que dificilmente consigo separar o homem antissemita do gênio da ópera; então vai ver que eu não sou maduro mesmo.

No âmbito da música sacra, para muita gente é difícil deletar a referencialidade moral de boa parte do pop/rock quando esse estilo é adotado por professos cristãos. Por isso, dão preferência a estilos mais tradicionais de música sacra, o que talvez possa ser explicado pela evidência de que a música é entendida como uma questão de gosto. Assim, é possível que as pessoas se fixem em seus gostos culturais e relacionem esses gostos a uma noção de reverência e santidade que desenvolveram em sua vida cristã.

A evangelização contextualizada, aquela que procura “ser grega para os gregos e romana para os romanos” a fim de alcançar alguns dentre todos, não é facilmente criticável. Há resultados válidos, mas também vale alertar para o perigo do pragmatismo inquestionável, o evangelismo vale-tudo. Será uma analogia esdrúxula certamente, mas vejamos assim: se o boxe, mesmo em sua reconhecida violência, ainda conservava regras e pudores, as lutas de vale-tudo radicalizam a proposta de um combate e abrem espaço para quase todo tipo de golpe que seria considerado desonroso no boxe.

Por sua vez, o vale-tudo evangelístico abre espaço para toda forma musical pop e usa efeitos, performances, letras e estilos que, nem sempre injustamente, são considerados desonrosos para a mensagem cristã.

Finalizando: a escala musical ocidental não tem uma moral inerente. Mas como a música sempre está dentro de um contexto sonoro, social e sempre é produzida pelo homem, um ser moral, então é evidente que uma música cantada pode contradizer ou afirmar valores cristãos.

Não se discute aqui a qualidade da produção musical ou a intenção evangelística de um estilo gospel contemporâneo. Mas não posso concordar com a vã separação que se tenta fazer entre música e letra de uma canção. Ora, uma canção é exatamente a conjunção de letra e música. Os teóricos musicais já perceberam que nem sempre é válido analisar uma letra à parte de sua melodia, de seu arranjo e, por vezes, até da interpretação vocal.

Essa pretensa separação entre estilo musical e letra que compositores gospel andam a fazer, como se a letra fosse mais importante que a forma musical, revela não apenas um modo desavisado de pensar a música, mas também um modo pouco teológico de pensar o cristianismo.


Fonte: Nota na Pauta

Autor: Joêzer Mendonça

 


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Sobre Weleson Fernandes

Evangelista da Igreja Adventista do sétimo dia, analista financeiro, formado em gestão financeira, pós graduado em controladoria de finanças, graduado em Teologia para Evangelistas pela Universidade Adventista de São Paulo. Autor de livros e de artigos, colunista no Blog Sétimo dia, Jovens Adventista. Tem participado como palestrante em seminários e em Conferências de evangelismo. Casado com Shirlene, é pai de três filhos.

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