Entendendo corretamente a fé e a razão

O que significa fé? Segundo o famoso texto bíblico de Hebreus 11:1, “a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que não se veem”. Na segunda epístola de Paulo aos coríntios também podemos ler que nós, cristãos, “andamos por fé e não pelo que vemos” (I Coríntios 5:7).

Ao ler textos como estes, muitos cristãos são levados a concluir que fé significa crer sem ter qualquer razão para isso, mas apenas alguma convicção interna espiritual, que está além da lógica e é inexplicável ao homem. Essa conclusão, contudo, não apenas é precipitada como antibíblica. Para entendermos isso, precisamos primeiro ter em mente que Deus é apresentado na Bíblia como o Altíssimo, aquele que está acima de todas as coisas, pois tudo criou. Sendo assim, Ele também criou a razão. Segundo o dicionário Aurélio, razão pode ter três significados:

  • Faculdade de avaliar, julgar, ponderar ideias universais; raciocínio, juízo;
  • Faculdade de estabelecer relações lógicas, de raciocinar; raciocínio, inteligência;
  • Bom senso, prudência.

Todos esses sentidos são complementares, mas o que mais interessa aos nossos propósitos é o segundo. “Razão é a capacidade de estabelecer relações lógicas”. Você pode não saber, mas nós fazemos isso o tempo todo. A vida cotidiana não existe sem o uso da razão. Por exemplo, quando eu estou saindo de casa para ir ao mercado e minha mãe diz: “Não adianta sair agora. Hoje é feriado”, estabeleço uma relação lógica em minha mente: “Os mercados costumam a fechar nos feriados. Hoje é feriado. Logo, o mercado deve estar fechado. Minha mãe está confirmando isso. Ela geralmente observa essas informações na televisão. Logo, ela deve estar certa”.

Esse é o mesmo tipo de relação estabelecida quando a faço uma compra de R$ 14,85, dou à operadora de Caixa R$ 20,00 e ela me pede 85 centavos para poder facilitar o troco. Imediatamente penso: “Se eu dou R$ 20,85 ela só precisa me devolver R$ 6,00, que podem ser facilmente em três notas de R$ 2,00. Mas se dou apenas R$ 20,00 ela vai ter que me devolver R$ 5,25, o que exigirá algumas moedas, que talvez ela não tenha, ou tenha poucas”.

Fazemos relações lógicas porque essas relações existem. Vivemos em um mundo que tem sentido e nós o buscamos a todo o momento. Não buscar o sentido significa não conhecer, não saber, não entender. Significa não estar de posse da verdade.

Verdade, por sua vez, é aquilo que está em conformidade com o real. O real é aquilo que existe, é aquilo que é.

A verdade é importante. Se estamos doentes, queremos saber se o que a bula do remédio diz é verdade. Se vamos nos casar, queremos saber se é verdade que nosso parceiro nos ama. Se nosso melhor amigo morreu em condições estranhas, queremos saber se é verdade que a morte foi natural ou se a verdade é que ele foi envenenado (a justiça também quer saber disso). Se a ciência diz que ovo faz mal, queremos saber se é verdade ou não.

As coisas não fecham sem que se estabeleça a verdade. Se eu somo dois mais dois e chego a cinco, isso vai gerar algum problema na hora de fechar meu balanço contábil ou na hora de manter de pé o edifício que projetei. Tomo um remédio de gripe pensando que é para hipertensão, eu tenho boas chances de morrer.

A verdade é um bem precioso e a razão é a capacidade de buscar essa verdade, fazendo às ligações lógicas necessárias. A verdade é o quadro completo de sentido. As ligações lógicas são as peças desse quadro. Raciocinar é montar este quebra-cabeça, é usar a razão para encaixar as peças da verdade umas às outras, de modo a formar o quadro completo e chegar à compreensão.

Talvez por isso Jesus diga: “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. A verdade liberta. A verdade livra. Mas livra de quê? Depende da situação. Ela pode te livrar de tomar remédio de gripe pensando que é remédio para a hipertensão. Ela pode te livrar de receber um calote porque você está fazendo a conta errada. Ela pode te livrar de se casar com uma pessoa que não te ama. Ela pode te livrar de não ver punida a pessoa que matou o seu melhor amigo.  A verdade livra. A verdade liberta.

Daí nós concluímos que a razão é importante, que foi criada por Deus e que nós a usamos a todo o momento para chegar à verdade. Isso nos leva a perguntar: será mesmo que fé realmente significa acreditar sem razão alguma? Estamos interpretando a Bíblia de maneira correta?

O verdadeiro sentido da palavra fé

Sobre esse assunto, o famoso astrônomo Galileu Galilei escreveu: “Não me sinto forçado a acreditar que o mesmo Deus que nos agraciou com senso, razão e intelecto pretendeu que renunciássemos a seu uso”.

O pensamento de Galileu faz sentido. Mas, então, o que os textos que lemos sobre fé querem dizer? Não é muito difícil. Ambos afirmam que fé é crer em alguma coisa sem ver diretamente esta coisa. Provavelmente a Bíblia não está falando só do sentido físico da visão aqui, mas de todos os sentidos físicos. Assim, a fé seria a crença em algo que não pode ser experimentado diretamente pelos sentidos físicos. Isso não é o mesmo que crer sem razão. Há várias verdades que não podemos experimentar por meio dos sentidos físicos, mas que são perfeitamente racionais. Vou citar dois exemplos.

  1. Verdades Matemáticas: 2 + 2 = 4. Não é necessário experimentar esta verdade através dos sentidos físicos. Eu não preciso, por exemplo, suas duas laranjas e depois ver você ganhando mais duas laranjas para poder concluir que dois mais dois são quatro. É um fato lógico. E é perfeitamente racional acreditar nisso sem ver.
  2. Verdades Dedutíveis: minha mãe nasceu da união entre o espermatozoide de um homem com o óvulo de uma mulher. Eu não vi isso acontecer, mas é racional acreditar nisso.

Então, quando a Bíblia diz que a fé é a certeza do que não se vê, ela não está dizendo que devemos crer sem razões, mas que a fé envolve crer em fatos que não podemos verificar diretamente com nossos sentidos físicos, embora eles possam ser racionais. Um exemplo interessante de como a Bíblia não requer de nós uma fé irracional está em João 20:24-29. Ali lemos sobre a história de Tomé, o discípulo que duvidou da ressurreição de Cristo. Tomé não viu Jesus ressuscitar e não estava com os demais discípulos quando o mesmo apareceu ressurreto a eles pela primeira vez. Assim, não acreditou quando os seus amigos o contaram. Mas embora ele não tenha visto, Tomé tinha muitas boas razões para crer.  Vejamos.

Primeiro, ele havia convivido com Jesus durante três anos e meio, vendo-o curar pessoas, fazer grandes milagres e até ressuscitar mortos. Segundo, por pelo menos três vezes ouviu dos lábios do próprio Jesus que ele iria ressuscitar. Terceiro, era claro que ninguém iria mentir sobre uma coisa daquelas. Todos estavam tristes com a morte de Jesus. Seria ridículo supor que dez homens que eram amigos íntimos de Jesus e mais algumas mulheres iriam querer brincar com aquilo. Quarto, era bastante improvável (ou até impossível) que todas aquelas pessoas tivessem tido a mesma alucinação de que Jesus ressuscitara. Alucinações são individuais. Ocorrem na mente de um indivíduo, pois não são reais. Logo, não faz sentido que todos a vejam. Quinto, Tomé contava com um forte apelo do Espírito Santo no sentido de crer na ressurreição através daquelas evidências.

Portanto, a descrença de Tomé foi irracional. Era mais racional e inteligente ele crer, mesmo sem ver, do que duvidar. Afinal, as razões para crer eram muitas. O apelo à razão perpassa toda a Bíblia, do Antigo ao Novo Testamento. Vemos, por exemplo, Deus falar ao povo através de Moisés que eles não deveriam crer no profeta que falasse e sua palavra não se cumprisse (Deuteronômio 18:19-22). Em Provérbios, o rei Salomão aconselha: “Não desampares a sabedoria, e ela te guardará; ama-a, e ela te protegerá. O princípio da sabedoria é: adquire a sabedoria; sim, com tudo o que possuis, adquire o entendimento” (Provérbios 4:6-7). O mesmo Salomão nos lembra que a pessoa ingênua dá crédito à toda a palavra, mas a pessoa sábia atenta para os seus passos (Provérbios 14:15). Jesus, ao alertar sobre as pessoas falsas, nos incentiva a reconhecê-las pelos frutos e não pelas palavras (Mateus 7:15-23). O evangelista Lucas louva o povo de Bereia porque checava às Escrituras todos os dias para ver se o que os seguidores de Cristo diziam era verdade (Atos 17:10-12). E o apóstolo Paulo nos orienta a examinar de tudo e reter o que é bom (I Tessalonicenses 4:21). Essas são apenas algumas passagens que nos instigam a pensar, raciocinar, investigar.

A fé se trata disso. O método de Deus nunca é fazer-lhe acreditar em algo que não vê sem antes lhe dar uma base racional para crer. Ainda que não tenhamos explicações para tudo, Deus nos oferece razões suficientes para acreditar em sua existência e em sua Palavra, o que nos oferece base para crer até no que ainda não podemos explicar. Tal visão de fé reconhece que a razão tem suas limitações, pois nosso conhecimento é limitado, mas que não deve ser descartada e sim incentivada. A escritora cristã adventista Ellen White resume a questão da seguinte maneira:

Deus nunca pede que creiamos sem que nos dê suficientes evidências sobre as quais possamos alicerçar nossa fé. Sua existência, seu caráter e a veracidade de sua Palavra se baseiam em testemunhos que falam à nossa razão; e esses testemunhos são numerosos. Apesar disso, Deus nunca removeu a possibilidade de dúvida. Nossa fé deve se basear em evidências, não em demonstrações. Os que desejam duvidar terão a oportunidade de fazê-lo, enquanto os que realmente desejam conhecer a verdade poderão encontrar muitas evidências onde apoiar sua fé (WHITE, Ellen G. “Caminho a Cristo”. Tautí: CPB, 2014, p. 105).

Por que é importante ter uma fé inteligente?

Há pelo menos três razões para se ter uma fé inteligente. A primeira é que fomos feitos à imagem e semelhança de Deus, tendo uma capacidade maravilhosa de raciocinar. Devemos, portanto, usar isso para honrar o nosso Deus e fazer jus à infinita inteligência divina. Quando desprezamos a inteligência, estamos desprezando um dos atributos intrínsecos de nosso Criador. Não devemos fazer isso.

A segunda razão para termos uma fé inteligente é que a Bíblia nos orienta a pregar o evangelho com sabedoria, bom senso e inteligência. Nas palavras de Pedro, em sua primeira epístola: “[…] santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir a razão da esperança que há em vós” (I Pedro 3:15).

Uma ilustração desse segundo ponto nos ajudará a entender uma questão muito importante: a da estratégia.  Imagine que alguém que não é cristão diz que acha todo esse negócio de Deus, Bíblia e cristianismo histórias da carochinha. São invenções dos homens, mitos, falsificações e etc. Então, ele te pergunta: “Por que você acredita?”. Se você disser que acredita porque sente que é verdade, ou porque tem uma experiência pessoal com Deus, ele vai entender isso como um: “Amigo, não há razão alguma para acreditar. Eu acredito porque acredito. É porque é. E você precisa crer também”. Ele te verá como um fanático e ignorante, e não dará crédito a você.

Não estou dizendo que a experiência pessoal com Deus não seja importante. Não só é importante como é imprescindível para o surgimento e o crescimento da fé. Mas o que você sente ou experimenta com Deus só pode ser sentido por você. O descrente precisa da própria experiência com Deus para crer. No entanto, ele só abrirá o coração para Deus se ele tiver uma razão para isso. E essa razão não pode ser a experiência de outra pessoa, a qual ele não pode sentir. É por isso que você precisa dar a ele uma explicação lógica, palpável, através da qual ele possa concluir que Deus, a Bíblia e o cristianismo não são histórias da carochinha.

Aqui entra a estratégia. Você não deve responder algo que vai levar o descrente a achar que você é um ignorante e suas crenças são bobagens. Você deve responder algo que vai levar o descrente a ver que você é uma pessoa inteligente e suas crenças são hipóteses possíveis e plausíveis, hipóteses que podem ser verdadeiras. Imagine você respondendo algo assim: “Eu acredito em Deus, na Bíblia e no cristianismo porque são hipóteses possíveis e eu existem boas razões lógicas para aceitá-las”. O efeito que isso causará na cabeça do descrente é que você sabe de algo que ele não sabe. Logo, pode ser que suas crenças não sejam histórias da carochinha. O que virá em seguida serão perguntas. Ele vai querer saber que razões são essas. Pronto. Você tem a atenção do seu amigo. Agora, só precisa estar preparado para oferecer as razões. O restante é trabalho do Espírito Santo.

Ter uma fé inteligente, portanto, é uma boa estratégia para conseguir a atenção, o respeito e a quebra de preconceitos de um descrente. Se ele irá se converter ou não, isso não é uma questão pertinente a nós. Todos tem livre arbítrio. Alguém pode ter todas as razões para crer, mas fechar seu coração para a verdade e para o toque do Espírito Santo. Mas independentemente do resultado, a Bíblia nos orienta a cultivar uma fé que sabe responder racionalmente.

Finalmente, a terceira razão para se ter uma fé inteligente é a nossa própria vida espiritual. Muitas vezes quando não sabemos responder às nossas próprias dúvidas à respeito de Deus e da Palavra, nossa fé é abalada. Diante das pressões da vida, de um ambiente de incredulidade como a faculdade ou o trabalho, essas dúvidas podem ser determinantes para nos empurrar para longe de Deus. Muitas pessoas tem perdido sua fé por conta disso. Assim, cultivar uma fé inteligente também pode ser uma boa ferramenta para não sucumbir diante de dúvidas e das pressões da vida cotidiana.

Por Davi Caldas

Fonte: Reação Adventista

Sobre Weleson Fernandes

Escritor & Evangelista da União Central Brasileira

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