A crítica feminista à maternidade

Vanessa Meira e Isaac Malheiros

Simone de Beauvoir não deixou dúvidas quanto a sua posição: “enquanto a família e o mito da família e o mito da maternidade e o instinto materno não tiverem sido destruídos, as mulheres ainda serão oprimidas”.[1] Provavelmente, ela compartilhava da opinião de seu amante, o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre, que “uma família é uma verdadeira pilha de merda”.[2]

Simone de Beauvoir acreditava que o desejo de ser mãe não é natural, mas é resultado de condicionamento.[3] Segundo ela, uma menina recebe da sociedade a “vocação de maternidade” apenas “para fazê-la lavar a louça”, “[o] instinto materno é construído em uma menina […]”, e as campanhas de aborto “são úteis para destruir a ideia da mulher como uma máquina de reprodução”.[4] A igualdade feminista significa “que mulheres – como homens – não precisam dar à luz”.[5] Beauvoir descreve uma criança no ventre da mãe como “um corpo parasita”, e a gravidez como “monstruosa inchação”.[6]

A feminista Elisabeth Badinter escreveu um influente livro sobre o “mito” do amor materno,[7] e sua tese principal é: o amor de mãe não é um instinto universal e natural; é um fenômeno socialmente criado.[8] Ela afirma que práticas como usar sling, cama compartilhada e amamentação prolongada são um desserviço à causa feminista pois colocam as mulheres como mães acima de tudo, pressionadas a abraçar sua biologia. Ela critica o feminismo “essencialista”[9] por elogiar a amamentação e o parto natural domiciliar.[10]

O antagonismo entre maternidade e feminismo é reconhecido, e o debate está em andamento: como conciliá-los?[11] Num diálogo com Simone de Beauvoir, a feminista Betty Friedan argumenta que a mulher que “escolher cuidar de seus próprios filhos em período integral” poderia receber um salário por isso. Beauvoir discorda, afirmando que as mulheres deveriam ser forçadas a não criar os próprios filhos:

“Não, não acreditamos que qualquer mulher deva ter essa escolha. Nenhuma mulher deve ser autorizada a ficar em casa para criar seus filhos. A sociedade deve ser totalmente diferente. As mulheres não devem ter essa escolha, precisamente porque, se houver, muitas mulheres vão fazer isso. É uma maneira de forçar as mulheres em uma determinada direção”.[12]

Rebecca Walker, filha da ativista feminista anti-maternidade Alice Walker (autora do famoso livro A cor púrpura[13]), conta que sua mãe tentou incutir na sua cabeça que a maternidade é a pior coisa que pode acontecer a uma mulher, que filhos escravizam a mulher. Rebbeca Walker, além de negar esse discurso, diz que ser mãe tem sido a experiência mais recompensadora da sua vida e que seu único arrependimento é ter descoberto a alegria da maternidade tão tarde.[14]

É um erro apegar-se às dificuldades naturais de ser mãe e afirmar que ver beleza na maternidade é uma dominação imposta pelo “patriarcado”. Em vez de atacar apenas os fatores que impõem ainda mais sofrimento sobre uma mãe, esse discurso ataca a própria maternidade, aproveitando-se de uma fase de esgotamento físico e mental das mulheres.

Essa postura pode ser resumida na frase muito repetida recentemente: “amo meu filho, mas odeio ser mãe”.[15] Apesar de admitir que a maternidade “é um bom valor na vida”, Betty Friedan afirma que há uma “falsa santidade ligada a ela [a maternidade]”, há uma segregação e “uma estrutura que, através da maternidade, condena as mulheres ao trabalho doméstico”.[16]

Algumas propostas feministas chegam ao ponto de sugerir o total rompimento do vínculo entre uma mãe e um filho. Na utopia feminista de Shulamith Firestone, o “chauvinismo familiar, privilégio de classe baseado no nascimento, desapareceria. O vínculo de sangue da mãe com a criança acabaria sendo rompido”.[17] Ela imaginava que “em breve teremos meios de criar vida independentemente do sexo”, e, “[c]om o desaparecimento da maternidade e o tabu obstrutivo do incesto, a sexualidade seria reintegrada, permitindo que o amor flua sem impedimentos”.[18]

Firestone, que sonhava com a possibilidade de algum tipo de reprodução humana artificial, escreveu que parir uma criança “é, na melhor das hipóteses, necessário e tolerável”, algo comparável a “cagar uma abóbora”.[19] Ela exige a “libertação das mulheres da tirania da reprodução por todos os meios disponíveis, e a difusão do papel de ter filhos e criar filhos para a sociedade como um todo”.[20] Criar filhos não seria mais um responsabilidades de pais e/ou familiares, mas um assunto do Estado ou da comunidade.

A feminista Alexandra Kollontai tinha uma esperança: “chegará um dia, mais cedo ou mais tarde, que a mulher trabalhadora não terá que ocupar-se do seu próprio lar”,[21] e “[j]á não existirá a mãe oprimida com um bebê nos braços”.[22] Para ela, as mulheres “devem acostumar-se a buscar e encontrar sustento em outro lugar, não na pessoa do homem, mas na pessoa do Estado”.[23]

Por outro lado, na contramão do esforço feminista de desnaturalizar o gênero, algumas vertentes do feminismo têm despertado um retorno à valorização da maternidade/maternagem,[24] que incluem a popularização de conceitos como o “Sagrado Feminino”, o parto humanizado, a amamentação prolongada, o babywearing, e de rituais como o Chá de Bênçãos (inspirado no num ritual indígena navajo[25]). Essas práticas, baseadas especialmente em conceitos do “feminismo matricêntrico”,[26] “ecofeminismo” e do “Sagrado Feminino”, buscam conectar a mulher com a natureza – inclusive com a sua natureza, e é exatamente por isso que surgem tensões com outras vertentes do feminismo.

O feminismo matricêntrico desconstrói a ideia (defendida especialmente pela Segunda Onda) de que a maternidade é um problema em si, pois o problema real seriam as relações de dominação atribuídas à maternidade pelo patriarcado, o significado social da maternidade. Ele defende a maior valorização do exercício da maternidade, a maternagem. E uma das contribuições teológicas positivas do feminismo matricêntrico é o destaque à necessidade de uma maior participação dos homens na criação dos filhos (paternagem).

Essa recente visão matricêntrica tem intercessões com a visões cristãs de maternidade e família, mas esse despertamento a favor da maternidade veio acompanhado de um fundo místico e espiritualista que precisa ser cuidadosamente avaliado. Finalmente, apesar dessa recente valorização feminista da maternidade, ainda existem muitas tensões entre as visões matricêntricas e as outras vertentes feministas que exaltam o estilo de vida childfree,ou o lema “amo meu filho, mas odeio ser mãe”, por que o matricentrismo (especialmente suas representantes místicas e ecofeministas) estaria pressionando as mulheres a abraçarem a sua biologia, e isso seria essencialismo.[27]

E a Bíblia?

A maternidade foi ideia de Deus, estabelecida junto com a instituição do casamento e da família, como parte do plano original de garantir a propagação da raça humana (Gn 1:28). Isso significa que, em termos ideias, a maternidade requer um lar adequado para os filhos.

Deus deu a ordem para crescer e se multiplicar tanto a Adão quanto a Eva, não somente porque são necessários dois para a procriação, mas também porque o melhor santuário para o frágil, vulnerável e totalmente dependente recém-nascido é o lar de um casal piedoso. A harmonia conjugal deve anteceder a chegada do filho e deve ser independente dele.[28]

Assim como Deus planejou a criação do homem e da mulher, e preparou todo o ambiente para recebê-los antes do “Façamos o homem” (Gn 1:26), o ideal é que a maternidade também seja “intencional e planejada, e não um incidente descuidado de consequência insignificante”.[29] Biblicamente, a maternidade não está em oposição à visão de uma mulher ativa, empreendedora e independente financeiramente. A “mulher virtuosa” descrita em Provérbios 31 também é uma mãe (v. 28; cf. v. 15, 21, 27).

A respeito da tese de Badinter sobre o mito do amor materno, ela parece confundir questões biológicas e culturais, instinto materno biológico, com expressões culturais de maternidade. O amor materno toma diferentes formas em diferentes épocas e diferentes culturas. Todas as evidências apontadas por Badinter podem ter outras interpretações, conduzindo a conclusões opostas.[30]

Se a tese de Badinter é a de que há mães imperfeitas, e de que há mulheres que não querem ser mães, isso não é nenhuma novidade, e nem significa que o amor materno foi uma invenção cultural. É fato que mães sofrem e choram, que puérperas passam por sofrimentos e angústias. Mas isso não significa que o amor materno seja um “mito”.

A cosmovisão bíblico-cristã não tem uma visão romântica da maternidade. Logo após a Queda, no Gênesis, uma das primeiras advertências está relacionada ao sofrimento para ter filhos (“Multiplicarei grandemente o seu sofrimento na gravidez; com sofrimento você dará à luz filhos” Gn 3:16 NVI). Na Bíblia há mães usando filhos como “moeda de troca”, como artifício para conquistar a afeição do marido (Gn 29:31-35; 30:1-24), e até devorando os próprios filhos em tempos de guerra (2Rs 6:24-33). Apesar de ter alta conta a maternidade, a Bíblia é realista, e não esconde as dificuldades, os dilemas e os sofrimentos de uma mãe. Assim, o que há para ser desmitisficado?

Deus usa o amor materno como parâmetro para demonstrar o seu próprio amor: “Acaso, pode uma mulher esquecer-se do filho que ainda mama, de sorte que não se compadeça do filho do seu ventre? Mas ainda que esta viesse a se esquecer dele, eu, todavia, não me esquecerei de ti” (Is 49:15). No julgamento das duas mães que disputavam o mesmo bebê (1Rs 3:16-28), Salomão apostou no amor materno para resolver o caso: “porque o amor materno se aguçou por seu filho” (v. 26).[31]

Os elogios cristãos à maternidade não significam fechar os olhos às suas dificuldades, mas é encarar um paradoxo natural da vida humana, como tantos outros, com esperança. Nem a Bíblia nem Ellen White negam que há sofrimentos e dissabores na maternidade. A visão cristã da maternidade é realista, e não esconde que há dois lados na moeda. Se a literatura feminista acerta ao apontar que a cultura ocidental exalta apenas o lado belo da maternidade, erra ao insistir em apontar apenas o lado difícil da maternidade.

[1]     BEAUVOIR, Simone de; FRIEDAN, Betty. Sex, Society andtheFemaleDilemma: a Dialogue Between Simone de Beauvoir and Betty Friedan. Saturday Review,(p. 12-21), 14 de junho de 1975. p. 20. Disponível em: <https://bit.ly/2NnOrSI&gt;. Acesso em 13 jan. 2020.

[2] “A familyis a real pile ofshit” (SARTRE, Jean-Paul. Witnesstomylife:thelettersof Jean-Paul Sartre to Simone de Beauvoir, 1926-1939. New York: Scribner’s, 1992. p. 44).

[3] Para Beauvoir, se uma menina já se apresenta como feminina na infância “não é porque misteriosos instintos a destinem imediatamente […] à maternidade: é porque a intervenção de outrem na vida da criança é quase original e desde seus primeiros anos sua vocação lhe é imperiosamente insuflada (BEAUVOIR, v. 2, 2009, p. 267).

[4] BEAUVOIR; FRIEDAN, 1975, p. 20.

[5] JAGGAR, 1977, p. 14.

[6] BEAUVOIR, v. 2, 2009, p. 292.

[7]BADINTER, Elisabeth. Mother Love:Mythand Reality. Motherhood in ModernHistory. New York: CollierMacmillan, 1981. Ver também DALLY, Ann. InventingMotherhood: The Consequencesofan Ideal. London: Burnett Books, 1982.

[8]     O chamado “instinto materno” é um conceito estudado cientificamente. E há evidências de que é resultado de fatores biológicos. Ver, por exemplo: <https://bit.ly/2FNTpE6&gt;;<https://nyti.ms/2Tg1IAG&gt;;<https://bit.ly/2NmWbo9&gt;.Também é explicado por fatores culturais, por exemplo:<https://bit.ly/30i9Ced&gt;.

[9]     O essencialismo de gênero é a crença de que existem diferenças profundas entre homens e mulheres que são essenciais para sua identidade e que não podem ser mudadas (MCCANN, Hannah et alO livro do Feminismo. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019. p. 338).

[10]    ERLANGER, Steven. In DefenseoftheImperfectMother. 04 jun. 2010. Disponível em: <https://nyti.ms/2QQfU1K&gt;. Acesso em: 13 jan. 2020.HEWITT, Rachel. The Conflictby Elisabeth Badinter – review. 29 ago. 2013. Disponível em: <https://bit.ly/2tUpNlR&gt;. Acesso em 02 jan. 2020.

[11]    Ver, por exemplo, os artigos publicados no New York Times, disponíveis em: <https://nyti.ms/35QUAgP&gt;. Acesso em 03 jan. 2020.

[12] BEAUVOIR; FRIEDAN, 1975, p. 18.

[13]WALKER, Alice. A cor púrpura. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.

[14]WALKER, Rebecca. Howmymother’sfanaticalviews tore us apart. 23 maio 2008. Disponível em: <https://dailym.ai/2tRX7tU&gt;. Acesso em: 01 jan. 2020. Uma versão em português está disponível em: <https://bit.ly/2tUqhIH&gt;. Acesso em 01 jan. 2020.

[15]    CAIXETA, Marina. “Amo meu filho, mas odeio ser mãe”, confira relatos de mulheres que têm aversão à maternidade. 07 jun. 2017. Disponível em: <https://glo.bo/2RqA6q7&gt;. Acesso em: 05 jan. 2020.

[16] BEAUVOIR; FRIEDAN, 1975, p. 20.

[17] FIRESTONE, 2003, p. 260.

[18] FIRESTONE, 2003, p. 260.

[19] FIRESTONE, 2003, p. 218.

[20] FIRESTONE, 2003, p. 223.

[21]KOLLONTAI, Alexandra. A família e o comunismo. São Paulo: Iskra, 2013. p. 31.

[22] KOLLONTAI, 2013, p. 47.

[23] KOLLONTAI, 2013, p. 18.

[24] Em geral, a maternidade é um tema considerado essencialistas, pois vincula as vivências reprodutivas das mulheres à natureza. Por isso, AdrienneRich fez uma distinção entre maternidade e maternagem (em inglês, motherhood e mothering), o que “permitiu que as feministas percebessem que a maternidade não é naturalmente, necessariamente ou inevitavelmente opressiva, o que é uma opinião defendida por algumas feministas da segunda onda. Pelo contrário, se libertada das amarras institucionais da maternidade, a maternagem poderia ser experimentada como um lugar de empoderamento e mudança social”. (O’REILLY, Andrea. MatricentricFeminism:Theory, Activism, andPractice. Bradford: Demeter Press, 2016. p. 20; cf. RICH, Adrienne. OfWoman Born:Motherhood as Experience andInstitution. New York: W.W. Norton, 1976).

[25] A origem do ritual do “Chá de bênçãos” é discutida, mas há fortes evidências de que são uma apropriação do ritual navajo. ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. Blessingway: navajo ritual. Disponível em: <https://bit.ly/35KB0mg&gt;. Acesso em 10 jan. 2019.

[26] Uma das principais autoras do feminismo matricêntrico afirmou: “Me preocupa profundamente que as feministas sejam capazes de entender a interseccionalidade da opressão de gênero quando se trata de raça, classe, sexualidade e localização geográfica, mas não quando se trata da maternidade” (O’REILLY, 2016, p. 198). Segundo ela, “as mães precisam de um feminismo próprio – que posicione as preocupações das mães como o ponto de partida para uma teoria e uma política de empoderamento” (O’REILLY, 2016, p. 199).

[27] ERLANGER, 2010; HEWITT, 2013.

[28]KIS, Miroslav. Estilo de vida e conduta cristã. In: DEDEREN, 2011,p. 766.

[29]KIS, 2011, p. 767.

[30] Ver, por exemplo, a crítica a seu livro em COULTER, Rebecca. Perspectives onMotherhood: A Review Essay. Atlantis, v. 10, n. 2, (p. 127-137), 1985. p. 130.Disponível em: <https://bit.ly/384SU4U&gt;. Acesso em: 13 jan. 2020.

[31] A NVI usa a expressão “compaixão materna”, a ARC traz “seu coração se lhe enterneceu por seu filho”, e a ACF, “as suas entranhas se lhe enterneceram por seu filho”. A expressão hebraica, usada nesse texto para descrever o amor de uma mulher por um recém-nascido, também é usada para descrever o amor de José por seu irmão Benjamim (Gn 43:30), e o amor de Deus pelo povo (1Rs 8:50).

 

Fonte: Reação Adventista


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Sobre Weleson Fernandes

Evangelista da Igreja Adventista do sétimo dia, analista financeiro, formado em gestão financeira, pós graduado em controladoria de finanças, graduado em Teologia para Evangelistas pela Universidade Adventista de São Paulo. Autor de livros e de artigos, colunista no Blog Sétimo dia, Jovens Adventista. Tem participado como palestrante em seminários e em Conferências de evangelismo. Casado com Shirlene, é pai de três filhos.

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