O Status de Israel na Nova Aliança

Em um passado não muito distante, o meu pensamento sobre Israel era o seguinte: Deus formou esse povo/nação* com a função de proteger o monoteísmo, os preceitos morais de Yahweh e as predições sobre o Messias até a sua vinda. Incluía-se no plano ser uma nação capaz de formar um contexto em que o Messias pudesse vir ao mundo como um ser humano. Uma vez que o Messias veio, a função de Israel foi cumprida. Então, Israel deixou de ser a nação de Yahweh e se tornou um país como outro qualquer. Eu continuo crendo em quase tudo isso, à exceção da última afirmação – sobre o status de Israel na nova aliança. O texto que se segue é sobre essa questão.

Uma crítica à teologia da substituição

De fato, Israel cumpriu, no geral, as funções que Yahweh lhe deu na posição de nação de Deus. Ou, pelo menos, as funções principais que levaram à sua criação. Conforme a promessa de Deus a Abraão (Gn 12:1-3), a descendência do patriarca abençoou todas as famílias da terra com a preservação e o espalhamento do monoteísmo, dos fundamentos morais judaico-cristãos, da Lei, do Decálogo, da história da criação e da redenção, das Escrituras Sagradas e, claro, da boa nova (evangelho) de que o Messias Yeshua operou a salvação do homem em uma cruz, oferecendo-a livremente a todo aquele que crê. Eis que isso é fácil de enxergar. E é o que defendo no meu livro “Supostamente Cruel: uma análise sobre o caráter de Deus no Antigo Testamento”.

No entanto, o cumprimento das funções de Israel como nação de Yahweh não implica que a aliança de Deus com esta nação chegou ao fim. A razão é simples: a aliança que o Eterno fez com Israel foi estabelecida nos moldes de um matrimônio, ou ainda, nos moldes de uma filiação natural: como uma relação indissolúvel. Isso era o que eu não enxergava nas Escrituras.

A chamada teologia da substituição (ou da rejeição, ou supersessionismo), originada ao início do segundo século, acostumou toda a Igreja a pensar que Israel foi rejeitado por Deus como nação por não aceitar o Messias Yeshua. Como resultado, a Igreja teria se tornado o novo Israel, o “Israel espiritual”. Eu não chegava a crer na rejeição do povo judeu como resultado de seus pecados e incredulidade em Jesus. Apenas pensava que suas funções, uma vez cumpridas, aboliam seu status/natureza de nação de Yahweh. No fim das contas, contudo, meu pensamento não passava de uma variante mais suave da teologia da substituição. Ora, existem pelo menos três graves problemas nessa teologia tão influente ao longo dos séculos. Vamos analisá-los.

O primeiro problema da teologia da substituição é bíblico: diversos textos da Bíblia Sagrada dizem exatamente o oposto dessa teologia: Israel não foi rejeitado. A começar pelo NT, Paulo diz na Epístola aos Romanos:

“Pergunto, pois: terá Deus, porventura, rejeitado o seu povo? De modo nenhum! Porque eu também sou israelita da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim. Deus não rejeitou o seu povo, a quem de antemão conheceu. […] Quanto ao evangelho, são eles [os israelitas] inimigos por vossa causa [os gentios]; quanto, porém, à eleição [funcional], amados por causa dos patriarcas; porque os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis” (Rm 11:1-2, 28-29 – grifos meus).

No mesmo capítulo, Paulo sustenta que sua nação não tropeçou para cair (Rm 11:11) e que em algum momento da história os judeus irão, em massa, a aceitar Yeshua como seu Messias e Senhor (Rm 11:25-32).

A visão de Paulo se alinha ao que Deus falou por meio de profetas da antiga aliança. Em Isaías, por exemplo, lemos:

“Mas Sião diz: ‘O Senhor me desamparou, o Senhor se esqueceu de mim’. Acaso, pode uma mulher esquecer-se do filho que ainda mama, de sorte que não se compadeça do filho do seu ventre? Mas ainda que esta viesse a se esquecer dele, eu, todavia, não me esquecerei de ti. Eis que nas palmas das minhas mãos te gravei; os teus muros estão continuamente perante mim” (Is 49:14-16).

O texto de Jeremias 31:31-37 é ainda mais contundente. Nele podemos ver que Yahweh promete a nova aliança primeiramente a Israel e Judá: “Eis aí vêm dias, diz o Senhor, em que firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá” (v. 31). Note: a aliança é feita com os israelitas e de Israel alcança o mundo todo, não o contrário. Não é uma aliança feita com o mundo e que alcança Israel. O pacto segue o modelo da aliança abraâmica (Gn 12:1-3), como não poderia ser diferente. Yahweh diz também que a antiga aliança com Israel foi quebrada apesar de Deus ser noivo da nação (vs. 32). Essa é a analogia usada. Não obstante, Ele renova a aliança com seu povo, o que significa exatamente uma nova proposta de casamento de Deus a Israel (vs. 33-34). Mais adiante, Yahweh afirma de maneira clara e profunda:

“Assim diz o Senhor, que dá o sol para a luz do dia e as leis fixas à lua e às estrelas para a luz da noite, que agita o mar e faz bramir as suas ondas; Senhor dos Exércitos é o seu nome. ‘Se falharem estas leis fixas diante de mim’, diz o Senhor, ‘deixará também a descendência de Israel de ser uma nação diante de mim para sempre’. Assim diz o Senhor: ‘Se puderem ser medidos os céus lá em cima e sondados os fundamentos da terra cá embaixo, também eu rejeitarei toda a descendência de Israel, por tudo quanto fizeram’, diz o Senhor” (Jr 31:35-37).

O Eterno faz analogias com as coisas mais imutáveis da criação para provar o seu amor e a sua fidelidade. O padrão se repete em outras partes das Escrituras. No livro todo de Oséias, por exemplo, Yahweh compara sua relação com Israel a um casamento e prova que mesmo a infidelidade conjugal (a única justificativa moral para o divórcio), não é suficiente para que Deus rejeite sua nação. Em um dos versos finais do livro, Yahweh diz: “Curarei a sua infidelidade, eu de mim mesmo os amarei, porque a minha ira se apartou deles” (Os 14:4).

Em Daniel 9, há outro texto que desmonta a teologia da substituição, se interpretado do modo certo. O anjo Gabriel, após oração do profeta Daniel, vem explicar a ele uma visão anterior sobre a purificação do santuário (Dn 8:9-14) e sua relação com as visões de Jeremias a respeito do cativeiro de Israel (Dn 9:1-2; Jr 25:11 e 29:10). Gabriel diz que setenta semanas haviam sido determinadas (cortadas de uma parte maior, no sentido original hebraico) sobre o povo de Israel “para fazer cessar a transgressão, para dar fim aos pecados, para expiar a iniquidade, para trazer a justiça eterna, para selar a visão e a profecia e para ungir o Santo dos Santos” (Dn 9:24). Logo depois, Gabriel explica sobre o período da vinda do Messias, sua morte e a aliança que ele fará com muitos, a qual implicará o fim dos sacrifícios e ofertas de manjares (vs. 25-27).

Apesar de o anjo também falar das destruições que Jerusalém tornaria a sofrer, não é dito em nenhum momento que Israel seria rejeitado. Ao contrário, toda a passagem fala sobre redenção. O Messias vem não para Israel ser esquecido, mas para receber dele a justificação, a expiação dos pecados e a redenção. Óbvio que nem todos aceitam, mas o texto diz que as setenta semanas estavam determinadas para isso, não para a rejeição da nação. Lembremos: a aliança é feita com Israel e de Israel alcança o mundo. Ou seja, Israel é parte integrante da aliança e a primeira nação a ser alcançada pelo Messias. Daí Paulo dizer que “o evangelho é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego” (Rm 1:16). Daí Jesus dizer, em seu ministério, que veio primeiro para as ovelhas perdidas de Israel (Mt 15:24; 10:5-6). Daí a ordem de Jesus para a pregação do evangelho ocorrer primeiro em Jerusalém, depois em Samaria e depois no restante do mundo (Lc 24:47; At 1:8).

Os gentios entram na aliança com Deus através da aliança de Deus com Israel. De fato, todos os primeiros crentes eram judeus. Todos os apóstolos eram judeus. O pacto é feito com os judeus. Assim, cada vez que um gentio se converte, o trato feito com os judeus é confirmado, não anulado. E o fato de haver judeus aceitando o Messias Yeshua, ainda que em minoria, é prova de que a aliança permanece, conforme argumenta o apóstolo Paulo (Rm 11:1-7). É quando o remanescente serve de representação e sustentação do todo. Enquanto houver um israelita abraçando a nova aliança, este será um representante de toda a nação diante de Yahweh. Através desse um que seja, Yahweh pode continuar dizendo: “Eu tenho uma aliança com um povo na terra”.

É comum que intérpretes cristãos entendam esses textos como se referindo não a Israel, mas a Igreja. Seriam textos simbólicos, nos quais o Israel mencionado é o espiritual (a Igreja), não o étnico. Ora, pode até ser que os textos se estendam à Igreja em alguns aspectos. É possível que as passagens tenham dupla aplicação. Contudo, o que não é possível são os textos se referirem somente à Igreja e não a Israel. Não faz qualquer sentido Deus se pronunciar aos israelitas étnicos dizendo que nunca se esquecerá deles, mas na verdade estar se referindo a outro grupo. Que tipo de consolo é esse? É como um marido dizer “eu te amo” para sua esposa, jurando fidelidade eterna, mas na verdade estar se referindo a outra mulher, não a ela.

Também não faz muito sentido supor que por Israel ter cometido falhas, Deus cumpriu sua promessa na Igreja. Se a promessa foi feita a Israel e com palavras tão fortes de fidelidade (claramente intentando demonstrar como a palavra de Deus não passa), é com Israel que a promessa precisa ser cumprida. Trocar Israel pela Igreja é apenas um modo de fazer o oposto que a passagem diz: esquecer a nação, quebrar a promessa. Não faz sentido algum. E não há, nessas passagens, como alguns argumentam, qualquer indício de promessa condicional. As comparações são com coisas que não mudam. Não existe um “se” separando o amor de Deus pelo chamado nacional de Israel. Não há margem para dizer que Deus cumpriu as promessas feitas a Israel apenas na Igreja.

A verdade é que a Igreja não substituiu Israel. A Igreja é uma extensão de Israel. É a união entre os israelitas naturais que abraçaram a aliança com o Messias e os gentios que também a aceitaram esse evangelho; ambos pela fé (Rm 3:29-30; Ef 2:11-22). Paulo usa a analogia da oliveira e os ramos enxertados. Nós, gentios, somos ramos enxertados na oliveira de Deus, que é o povo étnico de Israel (Rm 11:17-24). Por isso, o apóstolo diz: “[…] não te glories contra os ramos; porém, se te gloriares, sabe que não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz, a ti” (vs. 18). Tornamo-nos judeus, não de sangue, mas de religião, filhos de Abraão pela fé (Rm 4:9-25; Gl 3:7-9, 26-29), seguindo o mesmo Deus, as mesmas Escrituras, o mesmo Messias.

Se podemos falar em um “Israel espiritual” ou “verdadeiro Israel” (Rm 2:28-29, 9:6-8, 11:1-5), ele não é uma substituição do Israel físico, como comumente se postula. Ele é a parte do Israel físico que abraçou a aliança e trouxe os gentios para também comporem essa comunidade espiritual. A Igreja, portanto, não é uma entidade nova, mas apenas uma congregação de israelitas e gentios fiéis – o que existe desde a antiga aliança, mas não de maneira tão extensa e com o nome Igreja (Dt 29:10-15; Js 8:33-35; I Rs 8:41-43; II Cr 30:25; Is 56:1-8).

O segundo problema da teoria da substituição é sua incoerência do ponto de vista da lógica. A Igreja não poderia substituir Israel, pois estamos falando de entidades com naturezas distintas. Uma nação não pode ser comparada a uma comunidade espiritual, quer seja de uma cidade ou global. Posso comprar Israel com EUA, Itália, França, Brasil, Alemanha. São nações. Posso comparar a Igreja com a comunidade espiritual islâmica, ou budista, ou hinduísta. São congregações religiosas. Misturar não tem sentido.

Aquilo que faz mais sentido nesse contexto é a continuidade do Israel étnico com sua natureza/status de sempre (povo de Yahweh), independente de ser descrente ou não, de ter alguma função hoje ou não. E, concomitantemente à continuidade de Israel, também a existência da Igreja, que são os judeus e gentios que compartilham a fé em Cristo. Em suma, duas entidades de natureza distintas: o povo espiritual de Deus e a nação étnica que Deus formou e abençoou para sempre.

O terceiro problema que podemos apontar na teologia da substituição tem a ver com a variante em que eu acreditava. Ou seja, era um erro que eu cometia. O erro consiste em julgar que função e natureza/status são a mesma coisa. Não são. Israel fora criado por Deus com a natureza/status de nação de Yahweh. E também precisava cumprir funções intimamente ligadas a essa natureza/status. Conquanto se relacionem, são coisas bem distintas uma da outra. Imagine que preparo meus filhos naturais, desde pequeno, para uma missão: assumirem cargos na Igreja em que congrego pelo período determinado de um ano. Eles crescem e aceitam a missão. Passado um ano, deixam as funções, como combinado. Ora, pelo fato de deixarem as funções, tendo-as cumprido, deixam também de serem meus filhos? De forma alguma.

Ainda podemos aproveitar a analogia. Imagine que sou pai e também professor de escola bíblica na Igreja que frequento. Preparo tanto meus filhos naturais quanto meus alunos, desde pequenos, para assumirem funções na Igreja por um ano. Todos crescem, mas alguns filhos meus não assumem as funções designadas, bem como alguns alunos; outros, porém, atendem ao chamado. Isso muda a natureza/status dos meus filhos que não assumiram? Não. Eles continuam sendo meus filhos naturais. Só não desempenham a missão que lhes determinei. E os alunos que aceitaram os cargos? Se tornam, por isso, meus filhos naturais? Não. Mas cumprem a missão que dei.

Em suma, ainda que todas as funções de Israel como nação de Deus já tenham sido cumpridas (o que não ouso afirmar com certeza) e o povo hebreu já não seja o único que serve a Yahweh na terra (o que é um fato), isso não muda a natureza e o status dessa nação diante de Deus. E ainda que Israel tenha rejeitado, em massa, seu próprio Messias, a nação ainda permanece a mesma que Deus formou a partir de Abraão e com a qual fez tanto a antiga quanto a nova aliança.

 Por que uma aliança perpétua?

Assumir que Israel ainda possui a mesma natureza e status de sempre na nova aliança levanta algumas perguntas importantes: se Israel já cumpriu sua principal missão (que é, no fim das contas, a razão para Deus ter criado essa nação), por que permanece com o status/natureza original? Ou melhor: por que Deus criou uma aliança com Israel nos moldes de filiação e casamento? Por que não apenas um “contrato” temporário, com término especificado, tal como o sistema de sacrifícios da Torá, cumpridos no próprio Jesus Cristo? Há várias razões possíveis.

Em primeiro lugar, porque Deus age sempre levando em conta o ideal e o real. É uma forma de Ele nos dizer que as coisas poderiam ter sido diferentes; que poderiam ter sido melhores caso suas palavras fossem seguidas; que Ele ofereceu a escolha. Quando o ideal não é escolhido, resta o real. Deus já sabe antes de ocorrer, mas deixa os indícios de como poderia ter sido melhor. No caso de Israel, era ideal de Deus que a nação não rejeitasse o Messias, mas se tornasse um país de evangelistas e missionários, um centro mundial de irradiação do evangelho, um exemplo evangelista entre as nações. Poderia ter sido. Jesus lamentou, por exemplo, a postura incrédula e dura da cidade de Jerusalém, capital de Israel (Mt 23:37-39; Lc 13:34-35).

Em segundo lugar, a manutenção do status de Israel é uma maneira de nos lembrar de nossas origens; das raízes de nossa fé; das doutrinas bíblicas; do Antigo Testamento como parte integrante das Escrituras Sagradas; do Deus de Israel como o mesmo Deus do Novo Testamento; de Jesus Cristo e seus apóstolos como os judeus que foram; da judaicidade da Bíblia e, por conseguinte, da nossa própria religião. Isso é algo que não se pode mudar. É herança. É história. Ninguém pode reescrever o passado.

Em terceiro lugar, como já dito, a nova aliança é feita com Israel e se irradia para o restante mundo. Não se pode arrancar Israel da aliança sem que a própria aliança seja quebrada. Da mesma forma, não se poderia tirar os gentios dela, pois é promessa de Deus a Abraão que as demais famílias do mundo seriam abençoadas. Por Yahweh ser Elohim de palavra, sua aliança não pode ser quebrada.

Em quarto lugar, a nova aliança não é nova no sentido de não ter nenhuma relação com a antiga ou de ter sido projetada exclusivamente porque a antiga foi quebrada. É importante entender isso. Vejamos o primeiro ponto: a relação com a aliança anterior. A nova aliança é nova no sentido de ter sido renovada. Ela não foi criada ex nihilo (do nada). Trata-se de um pacto envolvendo o mesmo Deus, o mesmo povo, o mesmo modelo abraâmico (Israel recebe a benção e abençoa o mundo), as mesmas Escrituras e a mesma exaltação da Torá/Lei (só que agora com a promessa divina de colocá-la no interior dos homens). A analogia que Deus utiliza é a do noivado/casamento. Yahweh desposou Israel. Israel traiu Deus. Deus então renova os votos matrimoniais, pede Israel em casamento de novo.

Trazendo isso para nossa realidade cotidiana: uma mulher trai o esposo. A aliança foi quebrada. Se ele a perdoa e os dois decidem voltar, foi feita nova aliança. Mas não no sentido de não ter relação com a primeira, de ter surgido do nada, ter outra natureza. Ao contrário, é a mesma aliança, mas restaurada, renovada, refeita, reafirmada. Ela pode conter alguns elementos distintos, mas em essência é a continuidade da aliança anterior, contendo o mesmo casal, a mesma natureza relacional, as mesmas responsabilidades e promessas de fidelidade. Em certo sentido, existe uma só aliança, mas com duas fases distintas. Dá conta disso o fato de que a palavra grega usada no NT para “nova” em relação à aliança é kainós, que tem o sentido de algo renovado, melhorado, de maior excelência. É diferente da palavra neós, que se refere mais precisamente ao novo em sua origem temporal. Assim, a nova aliança é a aliança anterior reforçada, como fica bem claro na profecia de Jeremias 31:31-34.

Agora vejamos o segundo ponto: a nova aliança não foi projetada exclusivamente porque a primeira foi quebrada. Mesmo que Israel não tivesse quebrado a aliança com Deus, tanto Israel quanto o mundo ainda precisariam da redenção provida pelo Messias e a habitação do Espírito Santo no interior de cada crente. O texto de Jeremias não quer dizer que a quebra da primeira aliança tornou necessária a promulgação da nova. A quebra apenas põe em relevo algo que já era certo antes disso: a aliança precisaria ser renovada.

Talvez, se Israel não tivesse traído a Deus, as palavras de Yahweh ao profeta Jeremias fossem assim: “Eis aí vem dias em que fortalecerei a minha aliança Israel, porquanto vos escolhi para serdes abençoados e serdes benção ao mundo todo. E a minha aliança fortalecida é essa: porei a minha Torá em vossos corações e em vossas mentes a inscreverei”. Este seria o ideal. Mas lembre-se: Deus trabalha entre o ideal e o real. A aliança seria renovada de qualquer jeito (independente de haver quebra ou não) com a mesma nação, nos mesmos moldes abraâmicos, apenas concretizando a promessa de redenção no Messias e santificação pela habitação do Espírito Santo. Assim, não existe lógica em pensar que Israel deveria ser retirado da aliança.

Em quinto lugar, aprouve a Deus que a nação que nos abençoou fosse abençoada por nós posteriormente, ajudando a mesma em seu retorno ao Messias. Esse é o ensino de Romanos 11:11-32. E tal retorno só faz sentido se Deus não rejeitou, nem substitui sua nação. O filho pródigo volta para casa não como servo, mas como filho; o filho que nunca deixou de ser (Lc 15:11-32). Devemos ajudar judeus a serem reenxertados na Oliveira (Rm 11:23-24), não destruir a oliveira e criar uma árvore nova.

Muitos cristãos talvez tenham dificuldade de enxergar Israel como ainda sendo a nação de Deus, pois isso soa como se Israel fosse mais amado, como se os judeus fossem os queridinhos. Mas conforme demonstrei em meu livro “Supostamente Cruel: uma análise do caráter de Deus no Antigo Testamento”, Yahweh sempre amou israelitas e gentios de igual forma. Ele estendeu sua aliança a todos (Is 56:1-8; Êx 20:8-11; Dt 10:17 e 16:19; II Cr 19:7; Jó 13:8-10, 32:21 e 34:19; Ml 2:9), insistiu que o estrangeiro fosse bem tratado (Êx 23:9; Lv 19:33-34; Dt 10:19, 24:14 e 31:12; Js 8:35, Sl 146:9, etc.), enviou sua palavra a outros povos (Rt 1:15-18; Js 2:9-13; II Reis 5:15-17; Jn 3:1-10; Dn 4:34-37, 6:25-27) e prometeu a propagação do evangelho aos gentios de modo ostensivo no mundo (Is 19:23-25, 49:6, 56:6-8, 66:18-19; Am 9:7; Zc 8:20-23, etc.).

Defendi em minha obra, e continuo defendendo, que onde existiram pessoas que seriam alcançadas ao ouvir a Palavra de Deus, Yahweh arrumou um jeito de a Palavra chegar até lá e salvar a essa pessoa. Isso porque o desejo de Deus sempre foi salvar a todos (ideal), não condenar (Ez 18:21-32; At 17:30; I Tm 2:1-4; II Pd 3:8-9). Assim, o fato de Israel ter sido escolhido como nação de Yahweh para abençoar o mundo e manter esse status/natureza, não faz dos gentios menos amados.

Yahweh Elohim, já na antiga aliança, convidava o gentio a fazer parte de seu pacto. E agora, na aliança renovada, Ele usa para os gentios a mesma analogia que usava para os judeus: somos sua noiva. Ele ordena que o evangelho seja ostensivamente pregado aos gentios (Mt 28:19; Mc 16:15-18; Lc 24:45-47) e faz de dois povos (judeus e gentios) um só, a despeito de preconceitos culturais (Ef 2:11-22). Desta forma, sendo um com os judeus, tornamo-nos também a noiva de Yahweh. Isso é a Igreja: não uma entidade que substitui Israel, mas a união da congregação judaica que ama o Messias Yeshua com a congregação gentílica que é chamada para fazer parte dessa aliança e desse povo.

É importante ressaltar que há aqui uma distinção que deve ser levada em conta em cada contexto. Yahweh usa a analogia da noiva tanto para se referir aos crentes em Cristo Jesus (Igreja = judeus + gentios) quanto para se referir à nação de Israel (crentes + não crentes do Israel étnico). É a mesma analogia para contextos distintos. Quando falando de Israel, a analogia se refere apenas à eleição funcional (que podemos comparar com uma filiação natural). Não tem a ver com salvação. Um judeu não está salvo por ter sangue israelita e ter sido circuncidado. Quando falando da Igreja, a analogia se refere à vida espiritual. Aí sim tem a ver com quem aceitou a Cristo (o que podemos chamar de filiação espiritual).

O fato de a mesma analogia (a da noiva) ser usada em dois contextos distintos serve para demonstrar que assim como Israel não deixa de ser nação de Yahweh (ainda que individualmente, muitos não ajam como tal), a Igreja não deixa de ser o corpo de Cristo na terra, a sua comunidade escolhida (ainda que individualmente muitos desse corpo sejam joio, não trigo – Mt 13:24-30).

Tal como Israel (nação), a Igreja (congregação espiritual) também traiu a Cristo Jesus ao longo dos séculos. As cartas às sete igrejas da Ásia em Apocalipse demonstram isso claramente (Ap 1-3). Mas é na sua própria fidelidade às promessas que faz e também no remanescente fiel (ainda que o número seja pequeno) que Deus se baseia para manter a aliança, renovando-a constantemente. Se Israel tivesse sido rejeitado como nação de Yahweh por seus pecados, segue-se que a Igreja também deveria ter sido. Porém Deus não rejeitou nem sua nação, nem sua comunidade espiritual. Ambas permanecem para representar a Torá e a graça de Deus, os mandamentos e Cristo, o Antigo e o Novo Testamento (ou, para os judeus messiânicos, a Tanach e a Brit Hadasha) e, em suma, a fidelidade de Deus em sua aliança com o ser humano.

As passagens supostamente favoráveis à teologia da substituição

Há pelo menos quatro passagens principais usadas por substitucionistas para sustentar que Israel foi rejeitado e substituído. A primeira está em Mateus 21:33-46. Trata-se da parábola dos trabalhadores da vinha. Jesus conta que um homem arrendou uma vinha para alguns lavradores e toda vez que enviava servos para receber a sua parte dos frutos, os lavradores os matavam. Por fim, o dono da vinha enviou seu filho e este também foi morto. Jesus pergunta aos líderes que o ouviam: “Quando, pois, vier o senhor da vinha, que fará àqueles lavradores?” (v. 40). Eles respondem: “Fará perecer horrivelmente a estes malvados e arrendará a vinha a outros lavradores que lhe remetam os frutos nos seus devidos tempos” (v. 41). Mais adiante, Jesus explica a moral da história: “Portanto, vos digo que o reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que lhe produza os respectivos frutos” (v. 43).

Substitucionistas sustentam que o verso 43 demonstra que Israel seria substituído pela Igreja. Essa interpretação, porém, ignora o contexto. Jesus não se refere a Israel em sua parábola, mas sim aos sacerdotes e anciãos que questionavam sua autoridade. Três fatos deixam isso claro: (1) durante todo o capítulo 21, Jesus está em embate direto com os líderes, não com a nação (vs. 15-17, 23-24). Inclusive, a passagem mostra que os líderes estavam com medo de dizer que João Batista e Jesus não eram de Deus porque o povo não pensava dessa forma (vs. 25-26, 46); (2) Jesus propõe outra parábola antes para os mesmos líderes, claramente se referindo a eles, e conclui que meretrizes e publicanos arrependidos os precediam no Reino de Deus (vs. 31-32); (3) o próprio evangelista Mateus termina o relato dizendo: “Os principais sacerdotes e os fariseus, ouvindo estas parábolas [as duas], entenderam que era a respeito deles que Jesus falava” (v. 45).

Além dessas evidências, devemos lembrar que a expressão “Reino de Deus” aqui não se refere a uma nação terrena de Yahweh, mas ao reino espiritual de Deus, o qual se inicia aqui na terra, pelo ministério de Jesus Cristo, e se concretiza no paraíso celeste e na nova Jerusalém (Mt 12:28, 19:24, 21:31; Mc 1:14-15, 9:47, 12:34, 14:25; Lc 21:31; Jo 3:3-5; At 14:22; I Co 6:10; Gl 5:21). Ou seja, Jesus está falando sobre salvação. E não a salvação de Israel, mas daqueles líderes descrentes. O uso da expressão “outro povo” faz um contraste com todo o conjunto de líderes incrédulos. Jesus estende sua crítica a todos os líderes que faziam Israel errar. São esses que perdem o reino. E não o reino físico, mas a salvação. Já o “outro povo” são os líderes corretos que tomariam seus lugares, incluindo gentios. O status de Israel não é tema aqui e não está em jogo, mas sim a autoridade dos líderes incrédulos de Israel.

Fato que não pode deixar de ser observado é como doutrinas errôneas são muitas vezes defendidas por meio da má interpretação de parábolas. É o caso da doutrina do inferno como lugar de tormento eterno (Lc 16), da imortalidade da alma (Ap 6:9-11) e da abolição da distinção entre alimentos puros e impuros (At 10). Em todos esses casos, o caráter simbólico da narrativa é ignorado nos pontos convenientes, o contexto é deixado de lado e temas cujo autor da não indicou estarem sendo abordados são interpretados como existentes e centrais na história. Por essa razão, aliás, não faz parte da boa prática interpretativa sustentar doutrinas com base em parábolas.

A segunda passagem usada por substitucionistas também está em Mateus 21. Entre os versos 18 e 22, Jesus amaldiçoa uma figueira que não tinha frutos. Muitos adeptos do substitucionismo usam a passagem para dizer que a figueira representa Israel. Porém, o texto não diz isso. O ensino que Jesus passa aos discípulos após amaldiçoar a figueira tem a ver com fé (vs. 21-22). A mesma história é relatada em Marcos e o texto não fala nada sobre Israel (Mc 11:12-14, 20-26). É mais uma parábola em que se busca estender a interpretação para um tema que não é tratado. Ademais, ainda que a figueira seja um símbolo de algo no relato, pelo contexto só poderia ser dos líderes incrédulos de Israel, não do status de Israel como nação de Yahweh.

O terceiro texto que substitucionistas usam bastante está em Mateus 27:24-25. Pôncio Pilatos, vendo que o povo insistia na crucificação de Jesus Cristo, se declarou inocente do sangue dele diante do povo. O povo respondeu: “Caia sobre nós o seu sangue e sobre nossos filhos!” (v. 25). Tem sido dito pelos substitucionistas que isso sela a rejeição de Israel por Deus como sua nação. Mas essa interpretação não leva em conta pelo menos quatro pontos: (1) Jesus pede ao Pai na cruz: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23:34); (2) os judeus que pedem a crucificação de Jesus o fazem por incitação direta dos líderes (Mt 27:20; Mc 15:10-11; Jo 19:6); (3) Yahweh diz, no decálogo, que visita a iniquidade dos pais nos filhos apenas até a terceira e a quarta geração (Ex 20:5); (4) após esse triste evento, ainda milhares de judeus se convertem ao Messias Yeshua durante a vida dos apóstolos (At 2:37-47; 4:4; 5:12-16; 6:1 e 7; 9:31; 13:43-45; 18:4, 8 e 18-28; 19:8-10; 21:17-20).

Desses pontos podemos concluir algumas coisas interessantes. Não foi a nação inteira que proferiu esta maldição contra si mesma. Provavelmente era um grupo pequeno de algumas dezenas ou centenas de judeus (até porque o local onde Jesus foi julgado não comportaria milhares de pessoas). Ou seja, nada que pudesse representar Israel como um todo. Esse grupo foi levado pelos líderes a condenar Jesus. O Messias se compadece desse grupo justamente por perceber que eles não tinham muita noção do que estavam fazendo. Foram convencidos pelos rabinos corruptos. Por isso, pede ao Pai para que isso não fosse levado em conta pelo Pai. Ou seja, mesmo aquelas pessoas poderiam ter chances depois de conhecer melhor o evangelho e darem uma resposta positiva.

Ainda que a maldição realmente caísse sobre aquele grupo e seus filhos, não faz sentido crer que isso afetaria toda a nação e todas as gerações de judeus. Até porque a própria Bíblia diz que os filhos não são punidos pelos pecados dos pais (Ez 18:19-20), embora possam sofrer as consequências das más escolhas (parece ser a isso que Êx 20:5 se refere). Finalmente, se por um lado, um grupo de algumas centenas de pessoas rejeitou Jesus, por outro lado um grupo muito maior de milhares de judeus aceitou o Messias durante todo o primeiro século. Por que razão isso não contaria? Não faz sentido.

O quarto texto usado por substitucionistas é o de I Pedro 2:9. O apóstolo chama, nesta passagem, os gentios crentes de “raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus”, usando linguagem semelhante a que Yahweh usa em Dt 7:6 e 14:2 para se referir a Israel. Alega-se que isso é uma prova de que a Igreja ficou no lugar de Israel. Mas, como afirma o teólogo judeu adventista Jacques Doukahn, a aplicação feita por Pedro “não significa que os gentios têm substituído o outro Israel, ou, porventura, resultado na rejeição deste último. Pedro está simplesmente dizendo que, tais gentios, agora fazem parte do povo escolhido. Pertencendo à casa de Israel, eles são agora ‘geração escolhida’, igual e dentro, não em lugar de, Israel” (DOUKAHN, 2018, p. 24-25).

É fácil entender: Israel étnico é o povo de Deus no sentido étnico. Dentro de Israel há os israelitas étnicos que são crentes. Estes são o povo de Yahweh no sentido espiritual. As palavras ditas aos primeiros se aplicam ao segundo porque o segundo está dentro do primeiro. Os gentios crentes, por sua vez, são agregados aos israelitas crentes, formando um só povo espiritual (chamado de Igreja na nova aliança). Assim, o que se aplica ao povo espiritual de Israel se aplica, por extensão, aos gentios crentes. A obra, portanto, é de adição, inclusão, não de rejeição, substituição.

O quinto texto é o de Atos 2:17-21, onde Pedro diz que a promessa do derramamento do Espírito Santo (Jl 2:28-32) entre os apóstolos, na manifestação do dom de línguas, no Pentecostes. Os que creem na teologia da substituição sustentam que essa promessa era para Israel, mas foi cumprida na Igreja. Sim, a promessa era para Israel. E foi cumprida em Israel, na cidade de Jerusalém, numa festa judaica, sobre a vida de doze homens que eram israelitas judeus. Não há aqui nenhum sinal de substituição.

Devemos lembrar ainda que é comum, no pensamento hebraico, eventos semelhantes serem descritos, em profecia, como um só no tempo. Isso quer dizer que uma profecia pode se cumprir por partes, ao longo de mais de um tempo e evento. Eles estão ligados por natureza, não por temporalidade. E um acaba sendo prenúncio do outro. Este é o caso da profecia de Joel sobre o derramamento do Espírito. O que aconteceu entre os apóstolos no Pentecostes, continuou ocorrendo durante a história e acontecerá de modo intenso no tempo do fim, “antes que venha o grande e terrível Dia do Senhor” (v. 31).

Cito um último texto (embora possa haver outros). Está em João 1:11-12. Ali diz que Cristo “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome”. Substitucionistas enxergam nesse texto uma prova de que Israel foi rejeitado porque rejeitou a Cristo e assim não foram feitos filhos de Deus. Porém o contexto da passagem (vs. 9-10) indica que “os seus” que não recebem Jesus são as pessoas do mundo no geral, não especificamente os judeus. Ademais, o mesmo texto diz que outros os receberam. Sabemos que assim como muitos judeus o rejeitaram, muitos o receberam também. O evangelho chega aos gentios por conta disso, aliás. Por fim, não há no texto menção a uma rejeição de Jesus a Israel, mas do mundo a Jesus. O texto não diz nada além disso.

 A teologia da substituição e a Igreja Adventista

No último tópico desse texto, cabe perguntar: como a Igreja Adventista do Sétimo Dia enxerga essa questão? Ela crê na teologia da substituição? Ou entende que Israel ainda mantém seu status/natureza de nação de Yahweh na nova aliança? Oficialmente, nem um, nem outro. Não há uma doutrina fechada. O status de Israel na nova aliança não faz parte de nenhuma das crenças fundamentais. Em outras palavras, a teologia adventista é aberta para discussões teológicas a respeito. Assim, cada teólogo e leigo possuem a sua própria opinião. E há gente sustentando os dois lados. Eu mesmo, como já dito, cria na teologia da substituição, embora sem saber.

Infelizmente, em razão de séculos de influência da teologia da substituição no âmbito do cristianismo, muitos teólogos adventistas conceituados ainda a sustentam. Por exemplo, Raoul Dederen, que escreveu o capítulo “A Igreja”, no Tratado de Teologia Adventista, afirma:

“Quando veio o Messias enviado de Deus, seu próprio povo não o recebeu (Jo 1:11). Israel, na qualidade de povo da aliança divina, foi rejeitado. Dessa vez, o Senhor não lhes deu nenhuma garantia de reintegração. Ao contrário, Cristo disse como sentença à nação judaica: ‘O reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que lhe produza os respectivos frutos’ (Mt 21:43). Os privilégios, promessas e bênçãos da relação pactual foram transferidos para a igreja cristã na condição de Israel espiritual e instrumento de Deus escolhido sobre a Terra” (p. 605).

Por outro lado, também há teólogos adventistas de renome que não endossam a teologia da substituição. Um deles é o Dr. Roy Gane, considerado o maior especialista do mundo no livro de Levítico e grande autoridade no livro de Daniel. Outro deles, com certeza o mais famoso teólogo da IASD contrário à teologia da substituição, é o já citado judeu adventista Dr. Jacques Benjamin Doukhan. Especialista em estudos envolvendo os contextos judaicos das Escrituras, Doukhan escreveu um livro intitulado “O Mistério de Israel”. Nessa obra curta, o teólogo expõe os erros de interpretação da teologia da substituição e da teologia dispensacionalista a respeito de Israel. Também escreve um capítulo sobre a teoria das “duas testemunhas”, a qual ele defende. Sobre esta, afirma:

“Nesta visão, ambos os povos, a igreja e Israel, foram necessários como povo de Deus, mas não no mesmo sentido que Deus firmou duas alianças diferentes e paralelas (i.e., dispensacionalismo). E também não no sentido de que Deus firmou duas alianças sucessivas: a segunda (a ‘nova’) substituindo a primeira (a ‘antiga’ [i.e. teoria da rejeição-substituição]). Portanto o plano inicial de Deus fora, realmente, ter apenas ‘um povo’ para testemunhar dEle.

 Mas um acidente histórico aconteceu, ‘o mistério da iniquidade’ (2 Ts 2:7), como Paulo o descreveu, que impediu os Judeus de aceitarem a Jesus de um modo dramático. Sendo assim, gerou a necessidade de duas entidades separadas, Israel e a igreja, cada uma reivindicando o direito de ser o povo de Deus. Mas, de fato, cada uma testemunha da verdade que fora ausente na outra. Israel tinha a lei, mas sem Jesus, e a igreja tinha Jesus, mas incrivelmente deitou por terra a lei, assim cumprindo suas missões, por necessidade, separadamente na cena da história da salvação” (DOUKAHN, 2018, p. 75).

A respeito dos adventistas que ainda sustentam a teologia da substituição, Doukhan não poupa críticas:

“Da perspectiva Adventista do Sétimo Dia, a teoria da rejeicionista-substitucionista é ainda mais problemática porque, a Teologia Adventista do Sétimo Dia, claramente identifica a rejeição da lei pela igreja como o sinal da apostasia. Assim, para Ellen G. White, o abandono da lei pelos cristãos é um pecado da mesma gravidade que a rejeição de Jesus pelos judeus: ‘Quando os judeus rejeitaram a Cristo, rejeitaram a base de sua fé. E, por outro lado, o mundo cristão de hoje, que tem a pretensão de ter fé em Cristo, mas rejeita a lei de Deus, comete um erro semelhante ao dos iludidos judeus’. Além disso, o paralelo de Ellen White entre ‘os judeus’ e ‘o mundo cristão’ sugere que desde que ele não pudesse ser aplicado a todo o mundo cristão (pois muitos cristãos guardaram a lei), do mesmo modo ele não implica todos os judeus. Devemos, contudo, entender sua diferença para com as duas entidades em um senso limitado e genérico.

Os adventistas que ainda adotam a visão substitucionista deveriam se perguntar: se a igreja substituiu Israel, então qual igreja? Se respondermos, ‘a igreja constituída dos primeiros cristãos no tempo de Paulo,’ devemos compreender então que naquela época a igreja ainda não existia como uma entidade separada. O cristianismo era ainda um fenômeno judaico tomando lugar nos confins espirituais de Israel. Ou se nos referirmos a um ‘remanescente’ invisível, devemos então reconhecer que este não é um substituto, desde que sempre houve um remanescente. Este ‘novo’ remanescente invisível é no máximo uma continuação do antigo. Mas, qualquer que seja a resposta que possamos dar a essa questão, ainda estaremos com problemas por causa da longa extensão do tempo entre aqueles primeiros cristãos e a Igreja Adventista” (IBDEM, p. 84).

Em outro trecho, afirma:

“Não é suficiente proclamar que temos a doutrina verdadeira da reconciliação por que temos a Torá e o Messias. Devemos também fazer a reconciliação e torná-la viva em nossa vida e em nossa identidade histórica. O rigor e a beleza da Torá, o trabalho da ética em nossa vida diária, não é incompatível com a graça e a verdade de Jesus Cristo. Justiça (não legalismo) e amor (não sentimentalismo) são ambos necessários. O Antigo Testamento é tão vital quanto o Novo Testamento. Hebreu é tão importante quanto grego. O estudo sério das escrituras é tão fundamental quanto a missão. A criação física e concreta e a sensação de alegria na vida são tão cruciais quanto a santificação espiritual e escatologia. Devemos descobrir que o grande Deus é tão importante quanto o amoroso Pai e o querido Jesus. O dever de relembrar a revelação passada é tão fundamental quanto esperar pela salvação futura.

 O adventismo do sétimo dia ainda não tem se empenhado totalmente nesta reconciliação e difícil tensão teológica, que é a essência de sua identidade. Tendemos a ignorar ou enfatizar um em demérito do outro. Geralmente, é o lado judaico – a Torá – que fica negligenciado, em plena consciência, em prol do outro lado: os ‘cristãos’. Até mesmo os adventistas comuns sentem-se mais confortáveis sendo identificados como ‘cristãos’ (i.e. eles vivem em uma sociedade cristã e vêm de famílias tradicionalmente cristãs). Ainda mais importante, eles não gostam de ser rotulados como judeus ou serem suspeitos de judaizar. É como se eles tivessem esquecido a história, a história que eles foram chamados a mudar. Tal medo – essa repulsa antissemítica – levou os cristãos de suas raízes naturais para a apostasia” (IBDEM, p. 90).

 A posição de Doukhan, que eu também defendo, é que a teologia da rejeição de Israel e sua substituição pela Igreja abriu as portas para que a Igreja rejeitasse, por exemplo, o sábado e se desfizesse da importância da Torá, julgando tais elementos como judaicos demais e o judaísmo como uma religião distinta do cristianismo.  De outro lado, fechou mais ainda os judeus para a mensagem do evangelho. Isso sem contar que nessa teologia está a noção cristã errônea (prevalente durante séculos) de que todo o povo judeu foi responsável pela rejeição e morte de Yeshua. Assim, o substitucionismo criou uma fissura no povo espiritual de Deus e, por consequência, na religião.

Considerações Finais

A teologia da substituição não possui bom fundamento bíblico e lógico. Ela trabalha com uma descaracterização dos textos que claramente falam da perpetuidade da aliança com Israel. Além disso, enxerga rejeição do povo e substituição pela Igreja em textos que tratam de outro tema ou que, na verdade, ensinam uma unidade entre judeus étnicos crentes e gentios convertidos, formando um só povo. A extensão das bênçãos de Israel para o mundo (promessa de Deus a Abraão) é vista como uma substituição de Israel. O ensino bíblico, contudo, não é esse.

Para além do mero problema teórico, o substitucionismo criou uma fissura na religião bíblica ao separar Israel e Igreja. Essa fissura permitiu que coisas estranhas adentrassem o rol de crenças cristãs, tais como veneração aos santos mortos, supervalorização do bispo de Roma, tormento eterno, purgatório, imortalidade da alma (essa, aparentemente, já era crida por alguns fariseus e judeus helenistas à época de Jesus, contradizendo o conceito holístico e mortalista registrado no Antigo Testamento), virgindade perpétua, impecabilidade e ascensão de Maria aos céus, etc. Foi essa cisão entre os dois povos, jamais desejada por Cristo, que tornou possível o surgimento de tais heresias.

Por essa razão, a posição continuísta em relação à aliança é importante e deve ser mais enfatizada pela Igreja Adventista do Sétimo Dia. É uma forma bíblica e lógica de unir o que jamais deveria ter sido separado – Israel e Igreja, Torá e Messias, Antigo e Novo Testamento, Lei e Graça, Fé e Obras, judeus e gentios. É uma forma bíblica e lógica de retornar aos primórdios da Igreja, às raízes judaicas do cristianismo, ao pano de fundo judaico das Escrituras. Como diz Doukhan, já no fim do seu livro:

“É um fato notável que a Igreja Adventista do Sétimo Dia é o único movimento religioso que ultimamente tem trazido o Messias e a Torá juntos. Pela primeira vez na história, após dois mil anos de separação, a Torá e o Messias ‘andam de mãos dadas’. De fato, essa associação constitui a pedra angular da identidade teológica da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Interessantemente, transmite o mesmo tipo de tensão envolvendo a mensagem dos três anjos sobre julgamento e criação. É uma tensão que por fim unirá as duas verdades: a lei de Deus e a fé no Messias; reconciliando assim a fidelidade e memória do passado com a antecipação do futuro: ‘Aqui está a perseverança dos santos, os que guardam os mandamentos de Deus e a fé em Jesus’ (Ap 14:12)” (DOUKHAN, 2018, p. 87).

 _____________________

* Obs.: nesse artigo, quando em referência a Israel, utilizo os termos nação e povo como sendo sinônimos. Os termos, no entanto, podem possuir sentidos distintos em outras literaturas. Pode-se, por exemplo, utilizar o termo nação em um sentido mais ligado a Estado, pátria, entidade governamental e povo com terras e governo formais. Aqui, não me atenho a esses detalhes. Por nação, quero dizer um povo que forma ou já formou um país. A eventual ausência de terras e liderança política não é considerada aqui. Assim, mesmo sem suas terras e governantes, espalhados pelo mundo todo, Israel ainda é uma nação dentro do sentido utilizado nesse texto. A distinção é importante, pois é possível adotar a opinião de que Israel, como nação (no sentido de povo com terras e governo formais), foi abandonado ou suspenso por séculos, o que não implica que Israel como povo (no sentido de descendência física/étnica) tenha sido rejeitado. Essa visão não contraria nenhum ponto desse artigo. Apenas se utiliza dos termos com sentido mais detalhado e, portanto, distinto.

_____________________

Referências:

CALDAS, Davi. “Supostamente Cruel: uma análise sobre o caráter de Deus no Antigo Testamento”. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2017 (2º Ed).

Diversos Autores. “Tratado de Teologia Adventista”, in: DEDEREN, Raoul. “A Igreja”.

DOUKHAN, Jacques B. “O Mistério de Israel”, tradução livre, 2018.

Por Davi Caldas

Fonte: Reação Adventista

Sobre Weleson Fernandes

Escritor & Evangelista da União Central Brasileira

Verifique também

Breve Análise da Unidade Protestante

                Aproveitando o mês de outubro, quando se …

Voltando para casa

Deus criou um dia para si (Sábado), a fim de ser lembrado como Criador e …

Resgatar laços com judeus e a fé judaica: fogo estranho?

Recentemente postei um texto intitulado “Voltando para casa”. No artigo eu cito uma série de …

Deixe uma resposta

×

Sejam Bem Vindos!

Sejam bem Vindo ao Portal Weleson Fernandes !  Deixe um recado, assim que possível irei retornar

×