Há não muito tempo, uma jovem estudante numa grande universidade, foi encontrada morta sob uma árvore no prado da escola. A seu lado, estava uma garrafa e o Livro O Vento Levou. Dentro do livro havia uma nota que dizia: “Sinto ter tido de fazê-lo, mas não posso mais enfrentar a vida. Quando cheguei à Universidade tinha fé em Deus e era feliz. Mas a universidade roubou-me a fé, e não mais posso enfrentar a vida com suas perguntas não respondidas, suas perplexidades e incertezas. Quando me acharem, notifiquem a meus pais e digam-lhes que sinto ter-lhes causado ainda esta dor. Que me enterrem no cemitério, debaixo dos pinheiros, cuja graça e beleza tantas vezes admirei, mas nunca pude alcançar”.
O suicídio dessa jovem reflete o desespero de milhares de corações que enfrentam as perplexidades da vida sem a luz da fé. Entre essas perplexidades, nenhuma maior que a dura realidade do sofrimento e da morte, que lançam um véu de desolação sobre a existência humana. A realidade do sofrimento, apesar de tudo que se tem dito, constitui o mais sério problema com que a religião se defronta. Que o digam aqueles que experimentaram a angústia de perder um ente querido num acidente, ou vítima de uma enfermidade inelutável. E nada torna o sofrimento tão constrangedor como a ausência de esperança, a esperança de que os laços afetivos rompidos pela morte serão refeitos um dia pelo Doador da vida.
A religião cristã retém seu perene atrativo porque elucida, como nenhuma outra, a razão de ser do sofrimento. Para a realidade universal do sofrimento e da morte, a explicação bíblica é o escândalo do pecado. Não houvesse o pecado quebrado a harmonia do Universo, não haveria sofrimento. Em apoio desta afirmação, poderiam ser citados inúmeros textos bíblicos. Traduzindo seu ensino em linguagem moderna, poder-se-ia qualificar o pecado como a quebra unilateral das relações entre o homem e seu Criador. Movido pelo orgulho, ou pela dúvida, ou por ambos, o homem insurgiu-se contra as leis de seu ser. Nenhuma razão ou causa pode ser aduzida para essa rebelião. Se causa houvesse, o pecado estaria justificado. O pecado originou-se não em alguma deficiência da graça divina, mas na escolha deliberada do próprio homem. Ao dizê-lo, tocamos no mistério do livre arbítrio, da incompreensível capacidade do homem tomar iniciativa, agir como uma personalidade independente. É esta faculdade de pensar e decidir, que confere ao homem sua dignidade como um ser criado à “imagem de Deus”.
O fato de o homem dotado de livre arbítrio ter usado sua liberdade ruinosamente, desafia qualquer explicação. A Bíblia alivia a tensão deste mistério, sem de todo removê-la, atribuindo a origem do pecado a um ser dotado de faculdades mais elevadas do que o próprio homem, a saber, um anjo que se deixou cegar pelo deslumbramento de sua própria perfeição. A origem do pecado assume, deste modo, proporções titânicas, mas não infinitas. Um anjo, embora notável em sabedoria e poder, é uma criatura, e, portanto, finito. O livro do Gêneses descreve a queda do homem como o resultado de uma tentação satânica. Se o homem entreteve dúvidas e escolheu um curso de ação contrário à vontade divina, fê-lo não por iniciativa inteiramente sua, mas, por assim dizer, sob provocação. Nem por isto foi ele isento de responsabilidade, nem das conseqüências funestas do pecado. Era possível ao homem não ter pecado. Logo, se pecou voluntariamente, não pode reclamar isenção das conseqüências de uma decisão sua, porque na linguagem do apóstolo Paulo, não lhe sobreveio tentação “que não fosse humana”. (Coríntios 10:13). Em outras palavras, não havia compulsão irresistível na tentação.
Esta é em suma a origem do pecado, segundo as Escrituras. Compreender a gravidade do pecado é dar o passo mais importante na compreensão do problema do sofrimento. Longe de ser a violação de uma lei arbitrária, que podia ser abolida por um fiat divino, o pecado é uma quebra das condições sob as quais o homem poderia gozar a vida abundante que o criador lhe destinara. A vontade de Deus é essencialmente benéfica, e obedecer-Lhe, é colocar-se em posição de desfrutar vida, saúde, a plenitude, enfim, das bênçãos que uma Providência bondosa reservou para o homem. Logo, dizer que o pecado é a causa do sofrimento, é enunciar a simples verdade de que o pecador, rompendo com Deus, violou a condição básica de uma existência feliz.
Tendo dito isso, porém, apressamo-nos a acrescentar que a fé cristã não nos assegura uma explicação fácil de cada caso de sofrimento individual. Não podemos, como queriam os amigos de Jô, explicar todo sofrimento em termos de pecado cometido pela vítima. Esta formulação simplista exigiria que a intensidade dos padecimentos de Jô fosse equacionada com a enormidade de seu pecado. Jô protestava sua inocência, mas para seus amigos não havia outra explicação para seus padecimentos senão seus próprios pecados.
Verdade é que bastas vezes nosso sofrimento é resultado direto da violação das leis divinas que regem a existência. Deste ponto de vista é que o apóstolo Paulo escreveu certa vez: “Deus não Se deixa escarnecer. Tudo o que o homem semear isto também ceifará”. (Gálatas 6:16).Se quebrarmos as leis da saúde, ficaremos encilhados com as conseqüências sob a forma de uma enfermidade ou outra. O fumante inveterado não pode trazer queixa perante o tribunal divino, se o câncer do pulmão abreviar-lhe os dias, nem o bebedor assíduo, se os rins lhe falharem. Muitas das mazelas que atormentam o homem são, sem dúvida, o fruto de maus hábitos higiênicos ou, pior ainda, de transgressão deliberada das leis morais.Não pode o homem reclamar imunidade se se lançar de uma ponte, em desafio à lei da gravidade; tampouco se infringir displicentemente os preceitos morais gravados sobre a sua consciência. Nos exemplos acima, o sofrimento é o salário que o pecado paga, quer o transgressor queira aceitá-lo ou não.
Válida em grande número de exemplos, a explicação acima deixa a descoberto muitos casos de sofrimento. Não explica necessariamente o sofrimento que experimentamos quando a dor atinge um filho, um parente ou amigo. Laços de simpatia nos ligam de algum modo a todo ser humano. Nenhuma tragédia ocorre que não nos atinja em certa medida. É o sentimento de solidariedade humana. Como nosso Pai, que nos ama a todos, nem mesmo Deus contempla impassível o sofrimento. Nenhuma lágrima é derramada que não afete o coração divino. Jesus chorou junto da sepultura de Lázaro. Chorou também ao contemplar do alto do Olivete a cidade de Jerusalém imersa em sua indiferença para com seu destino eterno. Referindo-se ao sofrimento de Deus por Israel, declarou o profeta Isaías: “Em toda angústia deles foi Ele angustiado”.(Isaías 63:9). No mesmo diapasão se expressa Abbé Gratry: “Cristo sofreu desde o início em todos os que sofreram. Ele sofreu fome com todos os famintos. Foi imolado com todos que os que ofereceram sua vida. Ele é o cordeiro morto desde a fundação do mundo”.(La Morale et La Loi de I´Histoire, págs 165, 166). Nem mesmo no céu haverá perfeita alegria, enquanto não for enxuta “dos olhos toda a lágrima”, enquanto não raiar o dia em que não haverá mais “luto, nem pranto, nem dor”.(Apocalipse 21:4). Chorar por solidariedade com o sofrimento alheio é partilhar com o Céu a dor desencadeada pela tragédia do pecado. Mas a própria solidariedade universal no sofrimento é penhor de sua erradicação final por um Deus de amor.
Nos inescrutáveis desígnios de Deus, o sofrimento é transfigurado num instrumento de redenção. Desta verdade sublime, a cruz é perene lembrança. Aprouve a Deus transformar a cruz, que era um símbolo de dor e ignomínia, num símbolo de triunfo sobre o pecado e a morte. O escândalo da cruz, o escândalo de que o inocente pudesse sofrer sem causa aparente, foi, com a morte do Filho de Deus, para sempre abolido. Podemos hoje compreender, como não era possível antes do Gólgota, que o inocente, pelo seu sofrimento, pode contribuir para a redenção dos culpados.
Se, num sentido, só a eternidade há de revelar que nenhum inocente sofreu em vão, noutro sentido, a força desta verdade, mesmo hoje, é impressa sobre nossa consciência. No campo da pesquisa médica, muitos aceitaram o sofrimento e mesmo a morte, para que outros pudessem viver. Quando Osvaldo Cruz verificou em sua própria carne o efeito da picada do mosquito portador da febre amarela, deu admirável exemplo de sacrifício próprio para o bem da humanidade. De igual modo, muitos dos pioneiros da radiologia expuseram-se a doses fatais de raios X no intuito de trazer cura a seus semelhantes. Os anais da medicina estão repletos de exemplos de abnegação, esta abnegação que se sacrifica pelo bem de outros. Igualmente, nos livros do Céu estão registrados os nomes daqueles que padeceram como mártires no serviço de Cristo.
Não, nem todo sofrimento encontra sua explicação em faltas do próprio indivíduo. Há o que podemos chamar a solidariedade no sofrimento, e há o sofrimento que redime, como o de Cristo sobre a cruz.
Falemos ainda do sofrimento que disciplina. A vida é como uma escola. Mas diferente de muitas escolas modernas, é uma escola onde reina a disciplina. Deus atua como nosso Mestre. Com uma diferença, porém: enquanto outros mestres, por vezes, aplicam disciplina movidos pela ira ou impaciência, Deus nos disciplina com amor. Lemos esta tocante passagem na carta enviada à Igreja de Laodicéia: “Eu repreendo e disciplino a quantos amo. Sê, pois, zeloso e arrepende-te”.(Apocalipse 3:19). É ridículo, pois, interpretar todo sofrimento como castigo. Pode muito bem ser evidência de que Deus nos esteja disciplinando para proveito nosso, “a fim de sermos participantes de Sua santidade”.(Hebreus 12:10). Discorrendo sobre o papel da disciplina na vida cristã o autor da carta aos Hebreus afirma: “O Senhor corrige a quem ama, e açoita a todo filho a quem recebe…pois, que filho há a quem o pai não corrija?”(Hebreus 12:6-7). À luz desta passagem, o sofrimento pode ser visto como o buril com que nosso Pai celeste remove as arestas de nosso caráter e restaura Sua imagem em nossa alma. Bendito o sofrimento que é experimentado num espírito de submissão à ação disciplinadora de Deus !
Outra ilustração que as Escrituras usam para elucidar a razão do sofrimento é a da poda. Árvores frutíferas são podadas regularmente com o fim de produzirem à plena capacidade. Nas mãos de um perito, a poda visa não destruir, mas corrigir defeitos e aumentar a produtividade. Com singeleza, Cristo ilustra esta sublime verdade: “Eu sou a videira verdadeira, e Meu Pai é o agricultor. Todo ramo que, estando em Mim, não der fruto, Ele o corta; e todo o que dá fruto, limpa, para que produza mais fruto ainda”.(João 15:1-2). É justamente o ramo produtivo que é limpo de brotos inúteis que poderiam dissipar sua vitalidade. Corre todo discípulo o perigo de pensar que não há maiores alturas a galgar na senda da virtude, nem mais vícios a vencer. Satisfação com o presente, age na vida espiritual como o broto que rouba a seiva de um galho frutífero. O sofrimento é, em muitos casos, a maneira divina de estimular nosso crescimento espiritual. Ausência de crescimento prenuncia morte.
Há ocasiões em que o sofrimento é melhor interpretado como um convite de Deus para a Ele nos achegar. Professamos crer em Deus; pretendemos amá-Lo, mas imperceptivelmente nos estamos enamorando das glórias e vaidades deste mundo. Sem que o percebamos, talvez, nosso coração está dividido entre nosso apego ansioso ao presente e nosso a Deus. É o caso do moço rico que correu ao Mestre para perguntar: “Que farei para herdar a vida eterna? ”Sua sinceridade foi posta à prova, quando Jesus lhe disse: “Vai, vende tudo o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu; então vem e segue-Me”.O evangelista Marcos apresenta significativamente: “Ele, porém, contrariado com esta palavra, retirou-se triste, porque era dono de muitas propriedades”. (Marcos 10:21-22).
Um casal abastado orgulhava-se de sua filha única e de sua bela casa, mas pai e mãe eram egoístas, vivendo apenas para os prazeres desta vida, de todo indiferentes às misérias do mundo em derredor. Inesperadamente, a tragédia invadiu-lhes o lar, sendo a filha de seu coração levada pela morte. Desolados, os pais recusavam o conforto de amigos. Fizeram uma viagem à Suíça, e buscaram consolo na solidão de um chalé, na montanha. Sentados na varanda um dia, viram um pastor tentar guiar seu rebanho através de um riacho, mas as ovelhas teimosas recusavam obedecer. Finalmente, o pastor tomou um cordeiro no colo e o levou do outro lado da corrente. Sem demora, a ovelha-mãe seguiu-o e , logo, todo o rebanho. Súbito, o pai desolado exclamou: “Ó minha querida, o Pastor levou nossa cordeirinha para que nós O seguíssemos”. Sim, o sofrimento bem pode ser um convite de nosso Pai celeste para que O sigamos mais de perto.
Seria presunção nossa ir além das sugestões acima, para elucidar o porquê do sofrimento. O suficiente, porém, foi dito para nos convencer de que, nas circunstâncias atuais de um mundo em revolta contra a ordem moral do Universo, o sofrimento não só é inevitável, mas salutar. Enquanto perdurar a tragédia do pecado, o sofrimento continuará sendo uma experiência universal, lembrando ao homem que algo está profundamente errado com sua relação para com deus. Como a dor é sintoma de uma desordem na vida física, o sofrimento é sintoma de uma desordem na vida moral. Abolir o sofrimento sem extinguir o pecado seria tão funesto como abolir a dor física sem corrigir a enfermidade da qual ela é uma manifestação. Há quem busque nos barbitúricos um escape para o sofrimento moral que os atormenta. Com isto, tão-somente agravam a desordem em sua vida psíquica. Quão mais acertado seria procurar compreender a razão do sofrimento à luz dos ensinamentos de Cristo ! Para muitos o sofrimento foi a porta que os levou a uma comunhão mais perfeita com Deus.
É instrutivo lembrar que Jesus gastou mais tempo aliviando o sofrimento humano do que esclarecendo Seus ouvintes sobre a razão de ser do sofrimento. Há nisto certamente uma lição preciosa. Foge-nos à capacidade de esgotar mistério tão profundo. É, porém, nosso privilégio associarmo-nos com os Céus na tarefa ingente de aliviar o sofrimento ao nosso redor. Minorando a dor alheia descobriremos agradecidos que nossa cruz se torna menos pesada. Refletindo morbidamente sobre nossos males reais ou imaginários, vê-los-emosampliarem-se como num microscópio. Focalizando, ao contrário, nossa atenção sobre o sofrimento de nosso próximo, movidos pelo desejo de ajudá-lo, verificaremos surpresos nossa dor desvanecer-se.
Duas objeções precisam ser respondidas. A primeira é: Se todos sofrem, que vantagem tem o que serve a Deus sobre aquele que não O serve? A esta objeção respondemos que uma vez que o sofrimento não é necessariamente castigo por pecado individual, mas pode ter uma finalidade disciplinar, ou pode mesmo ser instrumento de redenção de terceiros, então o espetáculo do justo sofredor deixa de ser um tropeço. Há um provérbio chinês que reza: “Não se faz escultura em pau podre”.Se continuamos na oficina do sofrimento, é porque o grande artista vê em nós material precioso e digno da eternidade. O sofrimento pode bem ser evidência de que Deus ainda esteja esculpindo Seu caráter em nossa alma. Há, porém, outro aspecto desta questão. Quem serve a Deus, sofre com esperança; aquele que não O serve, sofre em desespero. A esperança faz toda a diferença neste mundo. Ela doura a nuvem do sofrimento com a luz da eternidade. Pela esperança, o indivíduo se ancora ao próprio trono do Universo.
A segunda objeção é a seguinte: Se Deus é um Deus de amor, como os cristãos afirmam, por que permite ainda o sofrimento numa escala tão colossal? Não poderia o Onipotente exercer Sua vontade benévola e extinguir o sofrimento da face da Terra? Em resposta, diríamos que isto é precisamente o que as Escrituras afirmam que Ele fará um dia, quando “lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram”. (Apocalipse 21:4). Não foi com Deus que o sofrimento se originou. Este, se originou com criaturas que se insurgiram contra a vontade divina e violaram as condições básicas de uma vida harmoniosa e feliz. O sofrimento cessará quando a Terra for reintegrada na harmonia universal, quando o homem voltar, como o filho pródigo, ao lar paterno. Persistentemente, o convite tem sido enviado ao filho rebelde: “Deixe o perverso o seu caminho…converta-se ao Senhor, que Se compadecerá dele, e volte-se para o nosso Deus, porque é rico em perdoar”(Isaías 55:7). Todas as coisas são possíveis a Deus, exceto obrigar o pecador a aceitar o perdão, a reconciliar-se com seu Criador. Neste conflito moral, Deus jamais privará o homem da liberdade de escolha. O reinado do pecado não poderá terminar por um decreto divino, sob pena de reduzir as criaturas humanas a meros autômatos. Mas uma coisa Deus fará: Limitará o tempo em que o drama do pecado se desenrolará no teatro deste mundo. Quando esta hora predeterminada no conselho divino soar, então, e só então, esta Terra será purificada de todo vestígio do pecado e do sofrimento. Até essa hora aprazada,o sofrimento continuará a lembrar o homem da dolorosa realidade do pecado, cujo fruto é invariavelmente amargo.
Um antigo rei saxônico marchou com seu exército para esmagar uma rebelião em distante província de seu reino. Derrotados os rebeldes e restaurada a ordem, o rei colocou uma enorme vela no portão de seu castelo. Acendendo a vela, mandou seu arauto anunciar que todos que se submetessem e fizessem o juramento de lealdade enquanto a vela ardia, seriam perdoados. O rei ofereceu-lhes clemência, mas o oferecimento limitava-se à duração da vela. De igual modo, a clemência divina é ainda oferecida ao pecador, mas não indefinidamente. Mais cedo ou mais tarde soará para cada qual a hora que fixará de modo irrevogável seu destino final.