Esse texto refuta a segunda parte da série proposta pela página “Adventista Subversivo”, a qual defende que a prática homossexual não é considerada um pecado pela Bíblia. O autor da refutação é o teólogo Isaac Malheiros. Para ler o texto refutado, clique aqui.
1. O relato de Sodoma e Gomorra enfatiza a prática sexual
O tema de Gênesis 18 não é ser homossexual ou não, é ter relações homossexuais, o que é diferente. É preciso diferenciar a prática homossexual do desejo ou orientação homossexual. O relato apenas indica o que os homens de Sodoma queriam fazer.
O Adventista Subversivo tenta deslocar o problema do “praticar algo” para o “ser alguma coisa”. O texto não fala sobre ser homossexual (isso pode ser inferido), mas claramente descreve a intenção de praticar sexo com pessoas do mesmo sexo. Esse é o foco primário do relato e de alguns outros textos bíblicos que comentam o relato [1].
Destaco que essa passagem não deveria ser o ponto de partida para qualquer argumentação a respeito da homossexualidade. Existem textos mais claros e mais diretos. Concordo com o(a) autor(a): a leitura popular da Bíblia produz algumas distorções, e é importante destacá-las. O texto não diz, por exemplo, que Ló era o único cidadão que não era homossexual em Sodoma. O texto diz que vieram “os homens de Sodoma, tanto os moços como os velhos” (Gn 19:4). A expressão “todo o povo de todos os lados” (Gn 19:4) tem o objetivo de evidenciar que não havia nem dez justos em Sodoma, como no desafio proposto a Deus por Abraão (Gn 18:32).
2. Na história, “conhecer” é ter relações sexuais
A exigência dos homens de Sodoma foi: “Onde estão os homens que vieram à sua casa esta noite? Traga-os para nós aqui fora para que tenhamos relações [יָדַע, yada] com eles” (Gn 19:5).
O verbo yada significa literalmente “conhecer”, e é abundantemente usado na Bíblia para indicar relações sexuais (por ex., 1Rs 1:4). O pedido dos homens de Sodoma é idêntico ao dos homens de Gibeá na história do levita de Juízes 19: “Traga para fora o homem que entrou na sua casa para que tenhamos relações (yada) com ele!” (Jz 19:22).
A resposta de Ló (Gn 19:8) evidencia qual era o sentido de “conhecer” (cf. Gn 4:1; Nm 31:17; Jz 19:22): “Olhem, tenho duas filhas que ainda são virgens [literalmente, ‘que não conheceram homem’, usando yada]” (Gn 19:8).
Assim, “conhecer” aqui significa claramente “ter relações sexuais”, como em Gn 4:1. E o fato de Ló oferecer suas filhas virgens como substitutas evidencia qual era a intenção dos homens de Sodoma: praticar sexo com os visitantes.
3. O problema não foi apenas a inospitalidade, mas imoralidade sexual
Alguns textos importantes ficaram fora da análise do Adventista Subversivo. Especialmente 2Pe 2:6-8 e Jd 1:7.
O Novo Testamento confirma que o problema de Sodoma foi pecado sexual também, e não apenas xenofobia, inospitalidade e injustiça social:
“De modo semelhante a estes, Sodoma e Gomorra e as cidades em redor se entregaram à imoralidade [ἐκπορνεύω, ekporneuo] e a relações sexuais antinaturais [lit. ‘ir após outra carne’]. Estando sob o castigo do fogo eterno, elas servem de exemplo” (Jd 1:7).
O verbo ekporneuo significa “entregar-se à imoralidade”, “entregar-se à fornicação”, “ser indulgente com a imoralidade grosseira”. Na raiz desse verbo está o substantivo πορνεία (porneia), que significa imoralidade sexual, fornicação, e de onde vem o prefixo da palavra pornografia.
A expressão “ir após outra carne” (ἀπελθοῦσαι ὀπίσω σαρκὸς ἑτέρας, apelthousai opisō sarkos heteras) está explicando o “entregar-se à imoralidade”. O termo “outra carne” pode significar atos sexuais antinaturais entre seres humanos e mesmo entre homens e animais. Os canaanitas (Sodoma e Gomorra incluídos) praticavam os dois tipos de pecados (Lv 18:22-29).
Pedro também aponta a imoralidade sexual como motivo para a destruição de Sodoma:
“Também condenou as cidades de Sodoma e Gomorra, reduzindo-as a cinzas, tornando-as exemplo do que acontecerá aos ímpios; mas livrou Ló, homem justo, que se afligia com o procedimento libertino [ἀσέλγεια, asélgeia] dos que não tinham princípios morais (pois, vivendo entre eles, todos os dias aquele justo se atormentava em sua alma justa por causa das maldades que via e ouvia )” (2Pe 2:6-8).
A palavra grega ἀσέλγεια significa luxúria desenfreada, lascívia, devassidão, sensualidade, licenciosidade (cf. Mc 7:21-22; Rm 13:13; 2Pe 2:2, 7, 18; Jd 1:4). Claramente a Bíblia vincula a destruição de Sodoma ao aspecto sexual da história.
Pode-se até discutir qual é o sentido mais exato dessas expressões, mas será muito difícil negar que uma das causas da destruição de Sodoma foi a perversão sexual. E, como o único tipo de relação sexual presente no relato de Gênesis é o de homens com homens, há uma forte justificativa para usar esse texto contra a homossexualidade.
No entanto, alguém poderia argumentar que o problema foi o estupro, o sexo não consentido, forçado. Mas textualmente esse argumento é inconsistente, pois o relato afirma que os homens de Sodoma queriam “conhecer” (yada) os homens visitantes, e em hebraico existem expressões e palavras específicas para o estupro (como “forçar”, “humilhar”, “deitar à força com”, etc), e elas não são usadas com relação a Sodoma.
Como o Adventista Subversivo concluiu que “o maior pecado do povo de Sodoma foi que eles realmente odiavam gente de fora (ênfase acrescentada)”? Certamente a Bíblia descreve esse como um dos pecados, mas não diz que foi o único ou o maior. Com certeza a hospitalidade é algo muito importante na Bíblia, no AT e no NT (cf. Mt 25:34-40; Rm 12:13; 1Tm 5:10; Hb 13:2), e a falta dela foi um dos motivos para a destruição de Sodoma e Gomorra.
4. Sodoma foi destruída também por causa das práticas sexuais repugnantes
Ao citar Ezequiel 16, o Adventista Subversivo o faz de maneira incompleta, seletiva: cita apenas o verso 49 e omite o verso 50, um verso extremamente importante, pois diz que Sodoma foi arrogante e cometeu abominação (ou prática repugnante).
No texto hebraico há uma diferença significativa entre abominação (to’ebah) e abominações (to’ebot) que não ficou tão clara nas versões em português [2]. Ao falar especificamente de Sodoma e Gomorra, Deus afirma que: “Eram altivas e cometeram práticas repugnantes [תּוֹעֵבָה, to’ebah, no original está no singular absoluto] diante de mim. Por isso eu me desfiz delas conforme você viu” (Ez 16:50).
Sodoma cometeu práticas repugnantes, ou abominação, e essa palavra, to’ebah (no singular), é exatamente a mesma usada para descrever a prática homossexual em Lv 18:22 e 20:13. Todas as vezes que Ezequiel usa to’ebah no singular, ele está se referindo a um pecado sexual (Ez 22:11 e 33:26) [3].
E aqui, to’ebah é um pecado adicional à injustiça social do v. 49, um pecado extra, diferente da opressão ao pobre. A “abominação” (singular) do v. 50 não se refere à injustiça social do v. 49; ou seja, to’ebah (singular) não inclui o v. 49, mas as “abominações” (plural) do v. 51 inclui.
A palavra to’ebot (plural) no v. 51 resume todos os pecados anteriormente relatados em 49-50. Isso é confirmado pelo uso semelhante que Ezequiel faz de to’ebah e to’ebot em Ez 18:10-13.
Ocorre o mesmo em Lv 18. A prática homossexual é to’ebah (singular) em 18:22, e todas as práticas sexuais proibidas são descritas coletivamente como to’ebot (plural). Essa é uma forte evidência gramatical e intertextual de que Ez 16:49-50 pode estar falando da prática homossexual em Sodoma como um dos pecados sexuais pelos quais Deus a destruiu.
O contexto mais amplo de todo o capítulo 16 de Ezequiel também deixa claro que ele está falando de pecados sexuais, especialmente ao falar da lascivia de Jerusalém no v. 43: “[…] Acaso você não acrescentou lascívia [זִמָּה, zimmah] a todas as suas outras práticas repugnantes [תּוֹעֲבוֹת, to’ebot, plural]?” (Ez 16:43b)
A palavra é zimmah, um de seus significados é “crime lascivo” [4], e geralmente se refere ao pecado sexual premeditado (Lv 18:17; 20:14; Jz 20:6; Ez 16:27, 58; 22:9; 23:27, 29, 35, 44, 48; 24:13).
Finalmente, o argumento pode ser resumido assim:
a) Ezequiel afirma que Sodoma foi destruída também por causa de to’ebah;
b) Em Ezequiel, to’ebah é pecado sexual;
c) Então, Ezequiel quer dizer que Sodoma foi destruída também por seus pecados sexuais, o que é confirmado no NT.
A esse silogismo, acrescente-se que a única atividade sexual em Sodoma registrada no relato do Gênesis é a tentativa de prática homossexual: homens queriam ter relações sexuais (yada) com outros homens.
Assim, Ezequiel 16 deixa claro que Sodoma foi destruída por causa de to’ebah, práticas sexuais repugnantes, além da inospitalidade e da injustiça social.
5. Os livros apócrifos confirmam: não foi apenas falta de hospitalidade
Ao citar livros apócrifos, o Adventista Subversivo novamente não traz a evidência completa. Assim como a Bíblia, os livros apócrifos e pseudoepígrafos também afirmam que o pecado de Sodoma e Gomorra também foi de imoralidade sexual: Jubileus 16:5-6 e 20.5-6; Testamento de Benjamin 9:1 e Testamento de Levi 14:6:
“E nesse mês o Senhor executou julgamento em Sodoma e Gomorra […] eles se profanavam mutuamente, cometendo fornicação e impureza em sua carne sobre a terra” (Jubileus 16:5-6).
“E ele [Abraão] contou a eles sobre o julgamento dos Gigantes, e sobre o julgamento dos sodomitas, como eles haviam sido julgados devido a maldade, e haviam morrido devido a fornicação, e impureza, e corrupção mútua pela fornicação. E guardem-se de toda fornicação e impureza, e de toda poluição do pecado, para que não tornem nosso nome em maldição, e suas próprias vidas um assobio, e seus filhos a serem destruídos pela espada, e vocês se tornem malditos como Sodoma, e seu remanescente como os filhos de Gomorra” (Jubileus 20:5-6).
“Deduzo a partir das Palavras de Enoque o justo que vos dareis a práticas não boas. Fornicareis ao estilo de Sodoma e perecereis exceto por uns poucos” (Testamento de Benjamim 9:1).
“Ensinareis os mandamentos do Senhor por avareza, profanareis a mulheres casadas, manchareis às virgens de Jerusalém. e vos unireis a prostitutas e adúlteras. Tomareis como mulheres as filhas dos gentios, purificando-as com uma purificação ilegal, e vossa união será como as de Sodoma e Gomorra, por causa da impiedade” (Testamento de Levi 14:6).
Conclusão
A destruição de Sodoma não se trata de um debate “ou homossexualidade ou inospitalidade”, mas foi um caso de perversão sexual (prática homossexual incluída) e inospitalidade.
Afirmar que a prática do sexo homossexual foi um dos motivos da destruição de Sodoma ainda pode ser visto como uma mera inferência, mesmo assim seria uma inferência com alto grau de certeza, plenamente justificada. Na Bíblia, o sexo homossexual não está explicitamente incluído entre os pecados de Sodoma, mas está incluído nas categorias de pecados de Sodoma (prática repugnante, imoralidade, ir após outra carne, etc.).
Referências:
1. Outros textos falam sobre ser alguma coisa: os homens de Sodoma eram maus e grandes pecadores (Gn 13:13); ímpios, libertinos e sem princípios morais (2Pe 2:6-7), imorais (Jd 1:7).
2. Na versão NVI, usada aqui, a expressão é “práticas repugnantes”, sem diferenciar singular e plural.
3. “Um homem comete adultério [to’ebah] com a mulher do seu próximo, outro contamina vergonhosamente a sua nora, e outro desonra a sua irmã, filha de seu próprio pai” (Ez 22:11); “Vocês confiam na espada, cometem práticas repugnantes [to’ebah], e cada um de vocês contamina a mulher do seu próximo. E deveriam possuir a terra?” (Ez 33:26). Em Leviticos, tanto to’ebah (singular) quanto to’ebot (plural) referem-se a pecados sexuais.
4. Segundo alguns léxicos hebraicos, outros significados relacionados às práticas sexuais são: licenciosidade, adultério, prostituição, falta de castidade e incesto.
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Posts da Série “A Bíblia e a Homossexualidade”
Apresentação
Parte 1: A Criação
Parte 2: Sodoma e Gomorra
Parte 3: Os Cananeus e a prostituição cultural
Parte 4: Jesus e a Homossexualidade
Parte 5: Idolatria e ritos orgíacos (Rm 1:26-27)
Parte 6: Prostituição Masculina e Devassidão (1 Co 6:9 e 1 Tm 1:10)
Parte 7: Ciência, genética, psicologia e conclusão
Fonte: Reação Adventista