A palavra crítica origina-se do verbo grego “krino” que significa julgar. A crítica textual tem como primeiro objetivo conhecer a exatidão de um texto.
Muitos dignos cristãos, bem intencionados, mas mal esclarecidos têm protestado energicamente contra qualquer aplicação da crítica textual à Bíblia. Para eles é simplesmente absurda a idéia de aplicar a crítica em relação à Bíblia. Perguntam eles: Como submeter a Palavra de Deus, obra do Espírito Santo, aos critérios humanos? Esta simples frase resolveria todos os problemas: O texto original (ou melhor o autógrafo) da Bíblia é totalmente isento de erros, mas não as cópias feitas por copistas susceptíveis às falhas humanas.
Até à invenção da imprensa, no século XV, os manuscritos eram produzidos por copistas, que freqüentemente cometiam erros de transcrição. Quando sabemos que os manuscritos eram recopiados uns dos outros, sem ser possível a conferência com o texto original é fácil concluir, que os erros tendiam a multiplicar-se nas cópias posteriores.
A finalidade essencial da crítica textual é restabelecer em toda a sua pureza o texto como saiu das mãos do autor, escoimando-o de erros dos copistas, tais como adições indevidas, notas marginais que foram inseridas no texto ou correções tendenciosas visando atenuar, ou torcer o sentido de uma frase, modificar o estilo, transformar o pensamento de um escritor.
Os que atacam a crítica textual demonstram o seu despreparo nesta ciência.
Para que o trabalho da crítica textual seja efetivo é necessário em primeiro lugar possuir razoável conhecimento das línguas bíblicas; seguindo-se um inventário tão completo quanto possível dos manuscritos, como a sua classificação em famílias; a judiciosa aplicação dos métodos da crítica textual, até chegar às causas primordiais dos erros na transmissão do texto bíblico.
Dr. Benedito P. Bittencourt, já várias vezes citado, inquestionavelmente, uma das maiores autoridades em crítica textual no Brasil, assim escreveu no capítulo “A Tarefa da Crítica Textual”.
“Entende-se por crítica textual toda pesquisa científica em busca da verdadeira forma de um documento escrito no original, ou, pelo menos, no texto mais próximo do original. No que diz respeito aos autores dos últimos quatro séculos, depois da genial invenção de Gutenberg, podemos estar certos de possuirmos suas obras exatamente como foram escritas, salvo raras exceções, particularmente quanto a erros tipográficos de menor importância. Já não se pode dizer o mesmo a respeito das obras que circularam em manuscrito, antes da invenção da imprensa. Não é de admirar que os escritos copiados múltiplas vezes, umas cuidadosamente, mas outras sem maiores cuidados, e isto durante séculos, sofressem múltiplas e variadas alterações. Isto constitui, nos diferentes documentos conhecidos da mesma obra, o que se chama de variantes ou textos divergentes. E a crítica textual, particularmente a do Novo Testamento, tem por objetivo a escolha do texto, entre todos os encontrados nos vários manuscritos, que possua a maior soma de probabilidades de ser o original ou a forma primitiva do autógrafo, já que não possuímos nenhum dos autógrafos do Novo Testamento, mas apenas cópias e algumas delas distantes mais de dois séculos do original.
Esta busca científica dos originais ou dos textos que lhes sejam mais próximos é de extrema dificuldade, cheia de problemas de vasta complexidade.
A regra geral nos leva a concluir que, quanto mais distante dos autógrafos, tanto quanto ao tempo como quanto ao número de cópias, maior a corrupção do texto, maior a soma de erros. No entanto, esta regra não é absoluta.
Há obras, e o Novo Testamento é deste tipo, onde a matéria em si leva o copista a correções intencionais, e a corrupção, neste caso, não estaria em função da distância que separa a cópia de seu original, nem quanto ao número de cópias, nem mesmo quanto ao tempo, mas em função direta e inequívoca a matéria a ser copiada. Entretanto, o maior número de cópias torna os labores do crítico mais suaves, pois o pequeno número de manuscritos conduz à probabilidade de perda, nalguns lugares, da verdade original, que só pode ser alcançada mediante conjetura, processo deveras precário.
O Novo Testamento leva, quanto ao tempo que separa os mais antigos manuscritos de seus originais, grande vantagem sobre os clássicos. Possui o Novo Testamento cópias completas dentro do quarto século. Há partes, como as do Papiro Chester Beatty, por exemplo, que se situam na primeira metade do século terceiro e até mesmo no último quartel do segundo, como o caso do Papiro de Bodmer. Há mesmo um fragmento bem perto de seu autógrafo: é o fragmento de papiro P52, situado na primeira metade do século segundo, e mesmo no seu primeiro quartel por alguns paleógrafos, distando, assim, menos de cinqüenta anos de seu original, se colocarmos o Evangelho de João, que P52 representa, na última década do primeiro século.
A tarefa do crítico é reagir contra os erros dos copistas. Ninguém deve recear a tarefa, nem mesmo menosprezá-la, quando se pode afirmar, com os entendidos do assunto, que não só os grandes manuscritos, mas também os mais antigos papiros, atestam a integridade geral do texto sagrado. E, todavia, a insofismável autoridade da Lagrange diz que entre esta pureza substancial e um texto absolutamente igual aos originais há distância apreciável.
Se nos lembrarmos de que os manuscritos e citações diferem entre si entre 150.000 e 250.000 vezes e que um estudo só do Evangelho de Lucas revelou mais de 30.000 passagens diferentes e que, como afirma a autoridade de M. M. Parvis, “não há uma só sentença do Novo Testamento na qual a tradição seja uniforme”, sentiremos a grandeza e a responsabilidade da tarefa. Há uma afirmação do mesmo prof. Parvis, da Universidade de Chicago, que surge aos olhos do leigo como um choque’ tremendo e que só pode ser avaliada pelos estudiosos da matéria, que o presente Autor não pode deixar de transcrever: “Até que esta tarefa esteja completa, a incerteza a respeito do texto do Novo Testamento permanece”. Note-se, todavia, que a elevada cifra de variantes, em sua maioria esmagadora, diz respeito a questões que não afetam o sentido profundo do texto e que o número de variantes que se revestem de importância, especialmente no que diz respeito à doutrina, é assaz reduzido.
A tarefa da crítica textual do Novo Testamento é, diz Kenyon, “o mais importante ramo da ciência”. Ela trata com um livro cuja importância é imensurável e vital, mais importante que qualquer outro livro do mundo, pois o Novo Testamento é único, nem mesmo comparação pode sofrer.
É tarefa básica, pois dela dependem as outras ciências bíblicas. A crítica textual lança os fundamentos sobre o qual a estrutura da investigação espiritual deve ser construída.
Sem um bom texto grego, tão mais próximo dos autógrafos quanto lhe permitam os labores da crítica textual, não é possível fazer segura exegese, hermenêutica, crítica histórica ou literária, nem mesmo teologia, para não falarmos em tradução.
Embora seja chamada de baixa critica e bem modestos os seus esforços, é fundamental e indispensável ao estudante do Novo Testamento, desde o tradutor até o teólogo.
O crítico textual tem por função, primeiro, a coleta do material documentário, que encontra no exame de vários manuscritos, versões e noutro elemento muito precioso, ainda não mencionado, as citações dos chamados Padres Apostólicos. Depois se entregará ao exame crítico desse material, pela estima de seu vaiar.
Para que ele possa realizar bem sua primeira função é necessário que esteja familiarizado com o material, terreno onde realiza suas investigações. Deve conhecer não só os vários manuscritos, versões e citações dos antigos escritores da Igreja Cristã, como também o modo pelo qual foram produzidos, os usos da escrita literária e não literária do tempo, o material usado, o destino e o objetivo final dessa mesma produção. . .
Para que possa realizar a segunda parte, mais profunda, mais difícil e que requer mente bem educada e de grande acuidade intelectual, deve conhecer a própria história do texto, os métodos da crítica textual, teologia do autor cujo livro se examina, a história das doutrinas, a língua original, particularmente sua gramática, e um conhecimento cultural da época do autor e dos escritos cujas cópias considera.
Por estas ligeiras indicações o leitor pode ver, não só a extensão, mas as implicações desta ciência. Isto para não falarmos em paleografia, arqueologia, conhecimento dos clássicos, como quer a escola alemã, pois se pressupõe este trabalho já realizado pelos respectivos especialistas e colocado ao alcance do crítico textual através da caracterização dos vários documentos.” (O Novo Testamento, Cânon – Língua – Texto, pp. 71-75).
Pedro Apolinário, História do Texto Bíblico, Capítulo 30.