Calibrando nossa mensagem

Muitos adventistas zelosos alertam frequentemente, com grande preocupação, que os escritos de Ellen White estão sendo relativizados, esquecidos e até negados por parte das novas gerações de adventistas (em especial, os adventistas mais progressistas). A preocupação em si é válida. Se White realmente foi uma mulher com dom de profecia e inspiração divina, sua mensagem certamente é importante. É uma mensagem vinda de Deus. Não seria sábio descartá-la.

No entanto, há algo que me incomoda em muitos desses adventistas preocupados com o descarte de Ellen White: a falta de autoanálise. Vou chamar esse tipo de adventista de tradicionalista, pois eles se apegam a tradições já antigas (embora não originais) sobre Ellen White. Para o adventista tradicionalista, o modo como ele expressa sua crença em Ellen White como profetisa e em seus escritos como inspirados nunca possui qualquer problema. Portanto, se existe gente que ignora, relativiza ou nega seus escritos, portanto, a culpa é da própria pessoa. E a razão é, segundo muitos desses adventistas, mero desejo continuar cometendo certos pecados.

Mas esse é um julgamento falho. Eu conheço pessoas (não poucas!) que desprezam os escritos de Ellen White porque adventistas os apresentaram de modo extremamente distorcido. Ora, de posse uma imagem distorcida da função, do uso e do conteúdo dos escritos de White (imagem esta que elas não sabem ou não percebem estar distorcida), tais pessoas não poderiam crer mesmo. Seria um atentado à própria consciência. Não seria, então, o caso de avaliarmos mais cuidadosamente como temos apresentado os escritos da irmã às pessoas, a fim de consertar nossos erros metodológicos e calibrar a mensagem? Parece o mais sensato.

Pensando nisso, quero discorrer um pouco neste artigo sobre algumas das principais distorções existentes no meio adventista (em especial, entre os mais tradicionalistas) a respeito dos escritos de Ellen White.

1. Distorções quanto à relação entre a Bíblia, Ellen White e Interpretação

Embora a teologia adventista oficial afirme veementemente que a Bíblia é a única regra de fé e prática doutrinárias e que os escritos de Ellen White não possuem a mesma função da Bíblia, muitos adventistas se esquecem disso na prática. Em especial, claro, os tradicionalistas. Por exemplo, alguém numa roda de adventistas expõe uma dúvida ou convicção sobre um tema. Pode ser cinema, teatro, praia, vestuário, maquiagem, tatuagem, jóias, bateria, música, livros de romance, livros de ficção, jogos de cartas, jogos de tabuleiro, jogos com bola, bebida, fumo, drogas, carne, leite, ovo, açúcar, masturbação, homossexualidade, divórcio e novo casamento, perfeição, natureza de Cristo, Trindade, sete trombetas, marca da besta, selo de Deus, interpretação de algum texto bíblico, etc. É quase certo que alguém da roda (às vezes a própria pessoa que expôs a dúvida/convicção) citará algum texto de Ellen White ou perguntará se há algum texto de Ellen White sobre isso. E é bastante possível que o texto citado seja visto, na roda, como a resposta da questão.

Talvez o leitor esteja agora mesmo pensando com um ar surpreso e até indignado: “Se ela é uma profetisa verdadeira, o que ela fala é verdade! Então, qual é o problema em consultá-la!?”. O problema não é consultá-la. Consultamos o pastor, os comentários bíblicos, os léxicos, os livros diversos. Por que não consultaríamos uma escritora que tinha o dom de profecia? Ou seja, a pergunta do leitor está mal formulada.

Volte um pouco a leitura para entender melhor. Eu disse que a teologia adventista oficial afirma com veemência que a Bíblia é a única regra de fé e prática doutrinárias e que os escritos de Ellen White não possuem a mesma função da Bíblia. E aqui vai uma informação adicional: a própria Ellen White sustentava essa posição. Mas o que essas palavras significam na prática? Significam que tudo o que precisamos saber sobre e para salvação, santificação, comunhão com Deus e comunhão com o próximo está na Bíblia Sagrada. A Bíblia não fala sobre tudo, claro. Mas ela é a fonte para todas as doutrinas, isto é, para toda a fé e prática fundamental.

A implicação lógica disso é que ninguém pode impor ou proibir crenças e práticas cuja proibição ou imposição não se fundamente na Bíblia Sagrada. Isso significa que buscar em White a base para impor ou proibir uma prática ou uma crença é um erro. A base é a Bíblia.

Na prática, portanto, quando queremos saber se uma crença ou prática é proibida ou obrigatória, não devemos perguntar se há algum escrito de Ellen White sobre isso, mas sim se há algo na Bíblia sobre isso. O que a Bíblia ensina é a resposta. Mas então o que fazer com os escritos de Ellen White? Desprezá-los? De maneira alguma! Aqui está o x da questão. Quando ouvimos um sermão, o que esperamos? Que o pastor fale de acordo com a Bíblia, não é? Quando lemos um comentário bíblico, o que esperamos? Que o comentário explique o que está no próprio texto bíblico, certo? E se pedimos conselho a um cristão piedoso, o que desejamos? Que ele saiba aplicar princípios bíblicos à minha situação. Em todos esses casos, o padrão é a Bíblia. A pessoa é o canal. White não é diferente nesse sentido. Então, a pergunta que devemos fazer é: “Se White aconselhou sobre esse assunto, qual principio bíblico ela usou?”.

Nenhum adventista deveria ter medo de fazer essa pergunta. Afinal, White disse que o padrão era a Bíblia. Se White tinha mesmo inspiração divina, não pode ter mentido sobre esse ponto tão importante. Logo, se procurarmos os princípios bíblicos por trás de cada conselho, vamos achar. E assim estaremos cumprindo o que ela dizia ser a missão de seus escritos: levar as pessoas à Bíblia.

Quando, no entanto, nos esquecemos de buscar os princípios bíblicos usados por Ellen White, seus conselhos deixam de ser vistos como repetição e aplicação de princípios bíblicos. Passam a ser entendidos, ainda que tacitamente, como novas regras. Isso gera problemas práticos (ou subdistorções). Vejamos.

1.1. Confusão entre principio e aplicação de princípio

O primeiro problema é a constante confusão entre aplicação de principio e principio em si. Por exemplo, Ellen White já falou contra o uso de bicicletas e o hábito de tirar fotos. Alguém que tenda a ver os conselhos de White como novas regras poderia pensar: “É pecado andar de bicicleta e tirar foto!”. Mas essa é uma distorção.

À época de White, para se ter uma bicicleta ou tirar fotos, era necessário gastar muito dinheiro. E diversas pessoas gastavam esse dinheiro apenas por ostentação. White cita explicitamente essas coisas. Logo, o conselho dela não era um principio em si, mas a aplicação de princípios bíblicos como modéstia, humildade, domínio próprio, noção de prioridade, boa administração financeira, etc. Note: os dois conselhos supracitados não se aplicam mais hoje. Bicicletas e fotos são bastante acessíveis monetariamente. Mas os princípios que nortearam o conselho ainda são válidos. E bíblicos!

Outro exemplo: White já falou contra diversos jogos, desde cartas até xadrez. Alguns até hoje entendem suas palavras como princípios em si mesmos – muito embora seja impossível condenar tais jogos apenas pela Bíblia! Mas qual era o contexto histórico e cultural? À época de White, esses jogos estavam intimamente ligados a ambientes de apostas, más conversações, fumo, bebida e pessoas viciadas. Ainda que um sujeito pudesse jogar sem se envolver nessas coisas, poderia acabar sendo má influencia para outros. O conselho contra tais jogos, portanto, é contextual.

Aqui cabe uma reflexão: White cria fortemente na breve volta de Jesus. Pode ter acalentado isso para os seus próprios dias. Assim, tudo o que estava associado ao mal, ela provavelmente via como sendo o ápice do mal. Sua perspectiva não era de contextos melhores. Portanto, dificilmente ela poderia imaginar que jogos que comuns em um contexto de apostas, bebidas, fumo, más conversações, vícios e agitação poderiam, num contexto futuro, estar largamente distante desses males. A condenação seguia um tom próprio para o seu contexto e o seu campo de visão humano. O conselho não era uma nova regra, mas uma aplicação de princípios bíblicos como prudência e desvio do mal.

1.2. Acomodação, preguiça e superficialidade

Outro problema prático de não buscar os princípios bíblicos por trás de Ellen White é que nos tornamos acomodados e preguiçosos. Pra quê estudar a Bíblia Sagrada e fazer dela sua própria intérprete se eu posso achar um texto de White mastigado? Essa preguiça leva muitos a terem dificuldade de argumentar, dar um estudo, interpretar textos bíblicos ou pregar um sermão sem recorrer a White. Ora, se a missão de White era nos tornar mais bíblicos, então isso é um contra-senso.

A preguiça se expande da Bíblia para os próprios escritos de White. Afinal, se o sujeito não está disposto a estudar profundamente a Bíblia, também não estará disposto a estudar profundamente os escritos de White. Explico. Há uma grande diferença entre estudar e meramente ler. Ler é o ato de passar os olhos pelo texto, juntando as letras e descobrindo as palavras e frases. Estudar é o ato de interpretar profundamente o texto lido, trabalhar suas possíveis dificuldades, analisar suas implicações e buscar saber mais sobre o tema proposto.

Uma mera leitura se faz de uma lista de compras, um bilhete, um jornal popular, uma revista de atualidades – de preferência, escritas em nossa língua, tempo e território. Em tais casos, o esforço interpretativo é mínimo e não há o que ser estudado. Não se pode dizer o mesmo de livros que versam sobre alguma área de conhecimento específica ou que contenham conceitos complexos. Para entendê-los de modo correto e amplo é preciso grande esforço interpretativo e pesquisa árdua.

Interpretar é extrair do texto o seu sentido. Uma vez que o sentido do texto está sempre atrelado aos seus contextos, a interpretação envolve a análise dos contextos temático, histórico-cultural, lingüístico, estilístico, etc. Na prática, isso significa: (1) ler o texto inteiro (parágrafos e capítulos anteriores e posteriores); (2) descobrir em que local e época o texto foi escrito, quem o escreveu, para quem e com que finalidade; (3) consultar livros que versem sobre o contexto histórico e cultural em que a obra foi produzida; (4) descobrir em que idioma o texto foi escrito originalmente; (5) ler e comparar diferentes traduções do texto; (6) consultar livros sobre o idioma original, incluindo dicionários e obras sobre a literatura do local/tempo; (7) pesquisar se há expressões idiomáticas próprias da época e lugar do autor no texto; (8) analisar o uso que o autor faz de determinadas palavras e expressões em outras obras, e como essas mesmas palavras e expressões foram usadas por autores contemporâneos; (9) consultar livros que versem sobre a autenticidade do texto em questão; (10) avaliar e comparar o que comentaristas do passado já escreveram sobre o texto; entre outros procedimentos.

Pesquisar, por sua vez, é juntar todas essas obras, lê-las com atenção, entendê-las, compará-las, peneirá-las, sintetizá-las e, a partir daí, sustentar uma visão – no caso, do texto interpretado. Isso envolve leitura, escrita, reflexão, paciência, tempo investido e até dinheiro economizado para comprar obras necessárias.

Obviamente, nem todos os textos serão difíceis de interpretar, tanto pelo conteúdo ser simples, quanto pelos contextos serem bem conhecidos. Quanto mais conhecidos os contextos, mais a interpretação ocorre de modo rápido, sem necessidade de enormes aprofundamentos. Por outro lado, alguns textos serão mais complexos, com conteúdo obscuro e contextos pouco conhecidos. Nestes casos, o estudo será mais demorado.

O que descrevi não é algo exclusivo para a Bíblia Judaico-Cristã, enfatizo. Serve para qualquer livro, sobretudo livros escritos em contextos históricos distintos do nosso e que versem sobre temas complexos como filosofia e teologia. Portanto, trazendo a questão de volta para nosso assunto central, não basta meramente ler a Bíblia e os escritos de Ellen White, se queremos entender essas obras correta e profundamente. É preciso estudar ambos. Isso significa que os procedimentos que expus devem ser aplicados tanto à Bíblia, quanto aos escritos de Ellen White.

Mas se alguém acha que a mera leitura da Bíblia é suficiente, também verá a mera leitura dos escritos de White como suficiente. E aqui ocorre uma grande desgraça: o indivíduo que já é propenso a ver os conselhos de White como novas regras (e não como aplicações de princípios já existentes na Bíblia), interpretará a Bíblia com base em White e interpretará White com base em si mesmo. A ideia de que a Bíblia interpreta a si mesma é solapada duas vezes aqui. O indivíduo “extrai” o sentido do texto bíblico não do texto bíblico, mas daquilo que ele acha que White entendeu da Bíblia. É uma interpretação de terceira mão.

1.3. Ignorância e desprezo pelos contextos

Todo esse problema da confusão entre estudo e leitura se liga intimamente à ignorância dos contextos, como acabamos de ver. E esse é outro problema prático de quem vê nos conselhos de White novas regras. O indivíduo perde a capacidade buscar e analisar contextos antes de tirar conclusões sobre o que White disse. A interpretação mais incompleta e superficial possível (mera leitura) é escolhida como a correta. E não cabe contestação. É possível observar isso claramente na relação de muitos adventistas com os livros compilados dos escritos de Ellen White após sua morte. Se você não sabe do que estou falando, vamos clarear a questão.

Ellen White escreveu milhares de páginas ao longo da vida, dentre cartas pessoais de exortação e encorajamento, artigos para a Review and Herald e livros. Alguns desses livros foram publicados quando ela ainda estava viva, sob sua supervisão. Após sua morte, no entanto, dezenas de outros livros foram sendo produzidos a partir de seus escritos menores. A ideia era criar compilados de diversos textos de White por temas.

Compilar e publicar textos de um autor após sua morte tem seus pontos positivos. As compilações oferecem ao leitor uma visão mais ampla de como o autor tratou certo tema ao longo da vida. Elas também tornar alguns textos mais conhecidos do público. Não obstante, compilações também podem trazer problemas. O primeiro e mais pungente é que a seleção dos textos e trechos, bem como sua ordem, seus títulos e seus subtítulos não são feitos pelo próprio autor, nem supervisionados por ele. Tudo fica nas mãos dos editores.

Por que isso é ruim? Imagine que um autor escreveu sobre um tema em contextos distintos, para pessoas diferentes, com ênfase, tom e finalidade diversas. Os editores podem não deixar isso claro. Além disso, é esperado que as seleções, ordens, títulos e subtítulos reflitam as próprias visões dos compiladores. Isso é inevitável até certo ponto, mas pode cruzar a linha do aceitável. Por exemplo, se os editores vêem (ou querem que os leitores vejam) determinado autor como ranzinza, talvez priorizem textos em que o tom do escritor é mais ranzinza. Se textos menos ranzinzas ficam de fora e não há notas e comentários dos editores explicando o contexto da passagem, quem era o destinatário, qual era o problema tratado e porque o tom foi aquele, o leitor pode ficar com impressão de que o autor era sempre ranzinza. Esse exemplo pode ser estendido para praticamente todo o tipo de opinião e postura de um autor. Basta fazer uma má seleção.

No caso dos escritos de Ellen White o problema se agrava, pois há compilações que não se limitam a artigos ou cartas inteiras, mas fazem recortes de trechos. Como a ideia dos editores é compilar por temas, nem sempre cartas e artigos inteiros servem para o tema da compilação. Embora isso torne a pesquisa por tema mais fácil (o que é bom!), deixa o leitor ainda mais distante do contexto original. No fim das contas, compilações de trechos servem mais como índice do que como livros para estudo. Afinal, ler tais obras sem ir até os textos inteiros é sacrificar os contextos e confiar numa leitura rasa feita a partir da seleção de um compilador. É uma interpretação de quarta mão já.

Quem se acostuma a meramente ler esses compilados, em vez de ir para os originais estudar, acaba por adotar a mesma postura na vida comum. O sujeito defenderá seus pontos de vista sobre vida religiosa baseado no método texto-prova. Esse método, como já falei em alguns textos e vídeos, consiste em citar textos da Bíblia ou dos escritos de Ellen White sem se preocupar em explicar o contexto e como o contexto suporta a ideia sustentada pelo indivíduo. É como se os textos fossem autoevidentes independente de contexto, estudo e explicação mais aprofundada. É só citar. No fim das contas, quem meramente lê, meramente cita.

2. Distorção em relação à função de White

Tratar Ellen White, na prática, como fonte de novas regras não é a única distorção que encontramos entre adventistas tradicionalistas. Ela também é vista muitas vezes como um comentário bíblico inspirado. E talvez algum leitor, mais uma vez chocado comigo, pergunte: “Por que isso seria uma distorção? Se Ellen White foi inspirada e escreveu comentários sobre a Bíblia, seus escritos são um comentário bíblico inspirado”. Mas a coisa não é tão simples. Vamos entender.

Comentários bíblicos são obras de caráter exegético, técnico e detalhado. A função desse tipo de obra é analisar a Bíblia livro por livro, capítulo por capítulo e até verso por verso. Nessa análise, frases, palavras e contextos são destrinchados para que o sentido de cada trecho seja extraído e compreendido. Nos textos mais obscuros, as visões mais plausíveis são expostas para que o leitor as compare e tire suas conclusões.

Ora, nem toda a obra de conteúdo teológico será um comentário bíblico. Por exemplo, C. S. Lewis é um dos escritores cristãos mais brilhantes que já existiu. Pessoalmente, é meu preferido. Mas suas obras não são exegéticas, tampouco constituem um comentário bíblico. Seus livros teológicos tratavam de apologética, lógica formal, filosofia da religião, literatura e alguma coisa de religião comparada. E, claro, ele também escrevia ficção/fantasia com elementos alegóricos para a fé cristã. Tentar torná-lo um comentário bíblico seria ridículo.

De maneira semelhante, Ellen White nunca escreveu um comentário bíblico. Tampouco produziu muitos textos que poderiam ser considerados exegéticos no sentido mais estrito. Suas obras seguiam uma linha mais homilética, devocional e exortadora. Ela era uma pregadora, uma contadora de histórias, uma conselheira e alguém que sabia dar um toque poético e romântico nas descrições bíblicas que fazia. Há exegese em alguns de seus textos? Sim. Mas não era algo predominante em seu estilo, não era seu foco, nem era feita de modo amplo e técnico. Isso não diminui a obra dela, como alguns podem supor. Mas nos conduz a uma visão distinta da função dos escritos dela.

O principio defendido por White era o de que a Bíblia interpretava a si mesma. E para que a Bíblia faça isso, devemos lançar mão de análise técnica minuciosa dos textos e seus contextos, coisa que White quase nunca se propõe a fazer. Ou seja, parar em White, usando-a como palavra final, como supra-sumo de tudo o que o texto bíblico diz, é ficar na superfície interpretativa do texto. White conduz à Bíblia não no sentido de dar a palavra final sobre cada verso, mas sim no sentido de nos chamar a atenção para a relevância de estudar as Sagradas Escrituras, em especial temas largamente esquecidos durante os séculos de cristandade. E durante toda a vida, tanto Ellen White quanto seu marido e filhos insistiram que Deus não deu os escritos de White para substituir o estudo da Bíblia.

3. Distorção em relação à inspiração

A teologia adventista oficial entende que a inspiração do Espírito Santo sobre profetas e escritores sacros não é verbal, mas conceitual. Em outras palavras, o Espírito não dita palavra por palavra. Ele inspira a mente do profeta/escritor com a mensagem. O sujeito inspirado, então, reproduz o conceito com suas palavras, estilo e limitações naturais de um ser humano (embora, claro, um ser humano que anda com Deus). Isso significa que, para a IASD, uma pessoa inspirada pode falar/escrever mensagens com pequenas confusões cronológicas, geográficas e científicas, falhas de memória em detalhes, erros ortográficos, exageros lingüísticos, etc. Essas falhas não contradizem a inspiração, pois são periféricas, não afetando os pontos centrais dos fatos e doutrinas inspiradas. Tal crença era sustentada também por Ellen White.

Apesar disso, desde quando White ainda era viva, muitos irmãos adventistas insistiam em ver seus escritos como absolutamente inerrantes. Mesmo que isso seja negado na teoria, um sujeito pode agir assim na prática. A exigência ou expectativa de inerrância absoluta torna difícil de entender o processo de inspiração e a sua finalidade. Quanto ao processo, a inspiração não requer originalidade. O evangelista Lucas, por exemplo, diz que fez uma pesquisa histórica para compor seu relato. Pela similaridade de seu texto com o de Mateus e Marcos, fica claro que ele também teve acesso a pelo menos um dos dois evangelhos ou uma fonte comum. Da mesma forma, Mateus e Marcos podem ter se baseado numa fonte comum ou um deles no outro.

White não agiu diferente. Embora tenha recebido visões e inspiração, procurou ler livros religiosos e de história para compor seus escritos. Isso explica a similaridade de frases e conceitos de White com outros autores em vários casos. Alguns adventistas, ao longo da história, se chocaram com essas similaridades porque tinham um conceito errôneo de inspiração arraigado. Esperavam originalidade. Quando notaram que Ellen White usava outros autores, descreram dela. Outros se chocaram por acharem que as similaridades eram muito grandes, acusando-a de plágio. Mas além de tais alegações serem um tanto exageradas, elas se baseiam numa exigência de inerrância absoluta. Não há problema em reconhecer que White, uma mulher com pouca instrução formal, tenha errado em seu método de absorção de conceitos e fraseados, abusando de paráfrases. Isso explica porque ela não escondeu que usava outros autores e não se opôs, mas até incentivou que seus livros passassem por revisões para inclusão de fontes e correção de pequenas imprecisões históricas ou geográficas.

Em relação à finalidade, a inspiração não intenta uma mensagem perfeita em todos os aspectos, como a forma, o tom e o estilo. Verdades podem ser ditas sob formas, tons e estilos diversos. O intuito da inspiração, no entanto, é que o âmago da mensagem seja transmitido às pessoas. Assim, não deveríamos nos surpreender se em alguns contextos White se expressou de modo exagerado ou impreciso. Até porque a inspiração também não intenta fazer do profeta/escritor um especialista naquilo que ele está falando. É o âmago que precisa ser captado, o que sempre deve estar sujeito aos princípios bíblicos e relacionado ao contexto histórico-cultural da fala.

Quando mantemos esses pontos em mente, deixamos de esperar/exigir demais dos escritos de White, entendendo sua real função: conduzir à Bíblia. E essa compreensão é essencial para que seus escritos sejam respeitados.

4. Distorção em relação ao uso cotidiano

Uma última distorção tem a ver com o uso cotidiano dos escritos de White. Ao tratar suas obras, na prática, como fonte de novas regras, comentário bíblico inspirado e texto absolutamente inerrante, muitos adventistas se acostumam a usar White em contextos e frequencia indevida. Eis alguns exemplos do que esses irmãos fazem:

(a) Discutem a interpretação de passagens bíblicas citando Ellen White para argumentar e concluir o sentido dos textos. Já vimos isso nos tópicos anteriores. O resultado é que a Bíblia deixa de ser interpretada com base nela mesma. Além disso, a postura dá a impressão, para os protestantes não-adventistas, que não conseguimos interpretar e discutir Bíblia sem Ellen White, o que a colocaria numa posição não muito diferente de um Papa da igreja romana.

(b) Pregam sermões nos púlpitos a partir das obras de White (fazendo de seus escritos o centro da pregação). Isso enfraquece o estudo da Bíblia e o nível das pregações, tira a Escritura do centro, distorce a função dos escritos de White e também gera uma péssima impressão a visitantes não adventistas.

(c) Focam muito em textos de White que tratam de questões menores, tais como música e vestimenta, dando a impressão de que ela falava mais dessas coisas do que de Cristo e outras grandes verdades da fé. Isso cria uma tendência legalista.

(d) Citam-na como especialista e palavra final em todas as áreas, o que também faz com que sua função original seja obscurecida. Ela foi profetisa e conselheira. Suas palavras devem ser valorizadas como alertas de Deus para uma vida mais santa e pautada nas Sagradas Escrituras. Mas isso não faz com que White tenha esgotado todos os assuntos ou dado maior contribuição que todos os autores do mundo.

(e) Usam seus escritos em situações nas quais seria possível e mais recomendável usar só a Bíblia (como em pregações, estudos ou argumentações públicas com pessoas que não creem em White). Obviamente, há momentos em que ela pode e deve ser citada, em especial quando para mostrar sua mensagem cristocêntrica e sua exaltação da Bíblia. No entanto, esses momentos não são todos.

(f) Tratam a crença total nos escritos de Ellen White como imprescindível para ser um adventista do sétimo dia. Mas os escritos de Ellen White sempre foram um meio, não um fim. A IASD é um remanescente missiológico de Deus, isto é, um movimento levantado para restaurar verdades bíblicas. Este é o fim. Portanto, por mais importante que ela tenha sido (e seja) na condução para a Bíblia e na organização do movimento adventista, é a mensagem bíblica que é imprescindível.

Reconhecer isso ajuda a tratar melhor os irmãos que querem entrar na IASD ou já entraram, mas ainda possuem dificuldades sinceras em relação à Ellen White. Eles são verdadeiros adventistas. Só ainda estão no meio de um processo de assimilação dos escritos de White. E isso não os faz perdidos ou menos santos. O processo de cada um é diferente. Apenas isso.

É importante enfatizar que Ellen White repudiava todas essas posturas citadas. Embora eu tenha optado por não fazer citações nesse texto, já as trabalhei em diversos outros artigos [ver links no fim dessa postagem]. Ou seja, não estou criando uma nova teologia. Estou apenas seguindo o que a própria Ellen White ensinava.

Considerações finais

As várias distorções sobre a função e o uso dos escritos de Ellen White na IASD, a despeito do que diz a doutrina oficial, demonstram que o ensino nesta área tem sido deficitário. Há um abismo entre o que a teologia oficial diz sobre Ellen White e o que muitos adventistas entendem de Ellen White, o que inclui pastores.

A meu ver, o que precisamos é de um ensino mais transparente, preciso e corajoso sobre Ellen White. É preciso perceber que o progressismo que cresce no seio adventista não será combatido com doses cavalares de tradicionalismo. Na realidade, uma vez que progressismo e tradicionalismo são extremos opostos que se afastam da teologia adventista oficial, combater um com o outro é alimentar os dois extremos. Progressistas erram ao desprezar White e relativizar até a própria Bíblia. Tradicionalistas erram ao supervalorizar White, em detrimento do estudo aprofundado da Bíblia e dos contextos envolvendo os escritos de White. Não precisamos escolher um desses lados.

Nossa mensagem não tem nada de errado em seu conteúdo. Mas tem sofrido por causa da forma como é expressa por muitos. A resposta para a preocupação de irmão zelosos, sejam eles mais tradicionalistas ou mais progressistas, é calibrar a mensagem no estudo profundo, debaixo de humildade, oração, amor a Deus e amor ao próximo. É apenas isso que fará a mensagem edificar mentes e corações.

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Por Davi Caldas

Fonte: Reação Adventista

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Escritor & Evangelista da União Central Brasileira

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