Comparando Escatologias – Parte 4: Daniel 9

Na terceira postagem dessa série, analisamos as interpretações católicas e protestantes em geral a respeito de Daniel 8. Nessa quarta postagem, vamos analisar as interpretações católicas e protestantes em geral a respeito de Daniel 9. Quem não leu as postagens anteriores, elas estão aqui: parte 1parte 2 e parte 3.

A profecia das 70 semanas

No capítulo 9 de Daniel, o profeta descobre, estudando o livro de Jeremias, que o tempo do exílio forçado dos judeus seria de 70 anos (Dn 9:1-2). Como o tempo estava quase no fim e Daniel se encontrava confuso com a visão recebida anteriormente (Dn 8:26-27), ele começou a orar a Deus (Dn 9:3-19). O texto dá a entender que Daniel desejava entender como a profecia dos 70 anos de exílio se relacionava com a profecia das 2300 tardes e manhãs. Se as 2300 tardes e manhãs representavam 2300 anos, como a estrutura da visão parecia indicar, como a profecia dos 70 anos se cumpriria levando-se em conta que ainda haveria mais 2300 anos pela frente? A cidade de Jerusalém e o santuário seriam reconstruídos e depois destruídos de novo? Quando exatamente a profecia dos 2300 anos deveria se iniciar? Eram mesmo 2300 anos ou 2300 dias? O que o fim dos 70 anos significava? Deus iria postergar sua promessa?

Para responder essas perguntas, o anjo Gabriel é enviado ao profeta, a fim de explicar a relação entre as profecias (Dn 9:20-23). E ele explica que 70 semanas haviam sido cortadas (chatak – o termo original, geralmente traduzido como “determinadas” ou “separadas) para o povo de Israel e a cidade de Jerusalém. Elas se iniciariam na saída da ordem para edificar Jerusalém. Na semana 69, o Messias apareceria e na metade dessa última semana morreria. O texto não faz menção clara ao que ocorreria na segunda metade da última semana. Apenas diz que depois disso, o templo de Jerusalém seria novamente destruído (Dn 9:24-27).

Com essa explicação, aparentemente, Gabriel fez Daniel entender que dentro do período de 2300 tardes e manhãs haveria um período reservado ao povo judeu para alguns adventos importantes. Um deles era a reconstrução da cidade, que estava destruída até então. Outro seria o aparecimento de um Messias muito importante que morreria. E outro era a nova destruição da cidade, após essas setenta semanas.

Mas como os intérpretes de cada vertente analisada entendem esse texto? Bom, existem pontos de convergência e divergência. Um ponto de convergência entre os intérpretes protestantes é que as 70 semanas eram um período simbólico e calculável, cada dia representando um ano (equivalendo, portanto, a 490 anos). Esse é o pensamento de Calvino, dos calvinistas da Nova Bíblia de Estudo de Genebra, da Bíblia de Estudo Apologia, o Comentário Bíblico Moody e os comentários de Isaac Newton. Para todos esses intérpretes, a profecia alcança Jesus Cristo, que seria o príncipe ungido dos versos 25-26. Concordam ainda todos esses comentaristas que o período tem inicio em algum ponto do período Medo-Persa. A Bíblia de Jerusalém não bate o martelo na questão, conforme veremos mais à frente.

Outro ponto de convergência é que os intérpretes não relacionam as 2300 tardes e manhãs e as 70 semanas, embora a estrutura dos capítulos 8 e 9 sugiram essa íntima conexão. Também vamos analisar isso mais à frente.

Dois pontos de divergência são: (1) a interpretação sobre o inicio da contagem das 70 semanas (490 anos); (2) a localização temporal da metade da última semana. Faremos uma avaliação agora tanto dos pontos de convergência, quanto dos pontos de divergência. Comecemos pelos pontos de divergência, que são mais longos e exigem maior atenção.

O início da contagem das 70 semanas

Para Calvino, as 70 semanas estavam relacionadas com os 70 anos. Uma vez que a profecia dos 70 anos terminaram em 538 a.C., quando Ciro editou um decreto que permitia aos judeus voltarem a Jerusalém, então 538 a.C. seria o inicio da contagem das 70 semanas. Ele diz:

“Declarei que devemos começar com a monarquia de Ciro; isso deve ser claramente deduzido das palavras do anjo, e especialmente da divisão das semanas. Pois ele diz: As sete semanas têm referência à reparação da cidade e do templo. Nenhum sofisma pode de forma alguma privar a expressão do profeta de sua verdadeira força: desde a saída do édito concernente ao regresso do povo e à reconstrução da cidade, até o Messias, o Líder, serão sete semanas; e então, sessenta e duas semanas. Em seguida ele acrescenta: Depois das sessenta e duas semanas, Cristo será eliminado”.

Em outro ponto, diz: 

“Na preleção de ontem dissemos que as setentas semanas foram interceptadas pelo povo; o anjo havia também declarado a saída do édito, pelo qual Daniel havia orado. Que necessidade, pois, existe para tratar uma certeza como duvidosa? E por que questionar o ponto quando Deus pronuncia que o começo desse período seria o término dos setenta anos proclamados por Jeremias? E plenamente certo que esses setenta anos e setenta semanas devam ser mantidos juntos”.

Evidentemente, iniciando a contagem em 538 a.C., os 490 anos não chegariam à morte de Cristo (31 d.C. – a data mais provável, dado o fato de que o calendário ano domini contém um conhecido erro de cálculo de cerca de 2 a 4 anos em relação ao nascimento de Jesus Cristo, o que significa que ele nasceu um pouco antes do que o calendário considera ano 1 d.C.). Chegaria ao ano 48 a.C.

Para evitar essa distância de 79 anos na profecia, Calvino põe em dúvida todas as datas históricas sustentadas pela historiografia geral, forçando sua interpretação a se adequar à realidade. Assim, ele desconsidera o inicio do reinado de Ciro como tendo ocorrido em 550 a.C., enfia 49 anos (sete semanas) entre o decreto de Ciro e a retomada da reconstrução por decreto do seu segundo sucessor legítimo, Dario I Histaspes, e sustenta que do fim da reconstrução (no sexto ano de Dario, segundo a Bíblia – Ed 4:24 e 6:3-15; Ag 1:1-14; Zc 1:1-6) até o batismo de Jesus Cristo, se passaram 434 anos (as 62 semanas). Em suas palavras:

“[…] quase todos os escritores profanos computam 550 anos, desde o reinado de Ciro até o advento de Cristo. Não hesito em pressupor algum erro aqui, porquanto não nos fica a mais leve dificuldade sobre este cálculo […]”.

E em outro ponto:

 “Aqui Daniel trata das sessenta e duas semanas que transcorreram entre o sexto ano de Dario e o batismo de Cristo, quando o evangelho começou a ser promulgado, mas ao mesmo tempo ele não negligencia as sete semanas das quais esteve falando. Porque elas compreendem o espaço de tempo que forma o intervalo entre a monarquia persa e o segundo édito que uma vez mais concedia liberdade ao povo depois da morte de Cambyses”.

Considerando as datas realocadas por Calvino, o édito de Dario teria ocorrido não em 519 a.C., mas em 408 a.C. E o édito de Ciro teria ocorrido não em 538 a.C., mas em 457 a.C. Há dois problemas nessa realocação de Calvino. O primeiro é que não há nenhuma base histórica sólida para isso. Calvino simplesmente força as datas que se encaixam melhor na sua interpretação. O segundo é que 457 a.C. é justamente a data (pelos dados da historiografia geral) em que o rei persa Artaxerxes emite o terceiro decreto em relação aos judeus (Ed 7:7-8), o que ratificava os dois primeiros (de Ciro e Dario) e possibilitava que Jerusalém voltasse a ter magistrados e juízes (algo fundamental na reconstrução de uma cidade em sentido pleno, incluindo sua administração pública). Ou seja, seria muito mais racional, bíblico e condizente com a historiografia geral entender que as setenta semanas se iniciam com o decreto de Artaxerxes, não com o de Ciro. O encaixe é muito mais natural, não necessitando forçar as datas.

Para além desses dois problemas, a suposição de Calvino de que passaram-se 49 anos entre o decreto de Ciro e o de Dario também não conta com apoio histórico-bíblico. A Bíblia afirma, como já vimos, que Dario I Histaspes deu ordem para a retomada da reconstrução do templo no segundo ano de seu reinado (Ed 4:24 e 6:3-15; Ag 1:1-14; Zc 1:1-6). Na historiografia geral, isso ocorreu no ano 519 a.C. Ou seja, 19 anos depois de 538 a. C., não 49. Calvino tenta emplacar a ideia dos 49 anos baseado em uma confusão a respeito de alguns dados bíblicos. Vejamos o que ele diz:

“Quando, pois, ele põe as sete semanas em primeiro lugar, e claramente expressa sua computação começando desse período da promulgação do édito, a que podemos atribuir essas sete semanas senão aos tempos da monarquia de Ciro e a de Dario, filho de Hystaspes? Isso é evidente à luz da história dos Macabeus tanto quanto do testemunho do evangelista João; e podemos chegar à mesma conclusão à luz das profecias de Ageu e Zacarias, quando a construção do templo foi interrompida durante quarenta e seis anos. […]. Se o leitor acrescentar os três anos durante os quais os fundamentos foram lançados, teremos então quarenta e nove anos, ou sete semanas”.

Na verdade, nem Ageu, nem Zacarias falam em 46 anos de reconstrução. Eles falam que a reconstrução estava parada até o segundo ano de reinado de Dario. Em João 2:20, os fariseus, discutindo com Jesus, afirmam: “Em quarenta e seis anos foi edificado este santuário”. Mas esse tempo se refere não à reconstrução da época de Esdras, Ageu e Zacarias, mas sim à reforma iniciada por Herodes. Ela se iniciou entre os anos 19 e 18 a.C. e ainda estava em curso na época de Jesus. Se o diálogo de João 2 tiver ocorrido entre os anos 27 e 28 d.C., meses depois de Jesus ter iniciado seu ministério, então a reforma estava com cerca de 46 anos mesmo. De fato, o texto de João 2 indica que o diálogo entre Jesus Cristo e os fariseus sobre o templo ocorreu no inicio do seu ministério. Assim sendo, esses 46 anos não têm nada a ver com a reconstrução do período persa.

Os intérpretes da Nova Bíblia de Estudo de Genebra não fecham a questão. Em vez disso, eles apresentam três vertentes de pensamento. A primeira é de que o decreto que inicia a contagem é o de Artaxerxes, em 457 a.C. Como já vimos, essa se adéqua bem à historiografia geral e à Bíblia.

A segunda é a de que o decreto que inicia a contagem é uma segunda ordem de Artaxerxes, em 444 a.C. (Ne 2:1-9). Mas essa interpretação acabaria levando a semana 69 até o ano 39 d.C., quando Jesus já tinha morrido há cerca de 8 anos. Além disso, não há um decreto em 444 a.C. Artaxerxes simplesmente atende ao pedido de Neemias para ir a Jerusalém com autoridade para ajudar na reconstrução da cidade, que havia parado de novo. A autorização não traz nada novo em matéria de decreto, como havia sido o caso do decreto de 457 a.C. Soma-se a isso o fato de que Esdras entende o decreto de Artaxerxes em 457 a.C. como sendo a culminação dos decretos de Ciro e Dario (Ed 6:14 e 9:9). Assim, essa interpretação é frágil e necessitaria de muito malabarismo para se encaixar na profecia.

A terceira é a de que o inicio da contagem das setenta semanas se daria em 587 a.C., ano em que Jerusalém é destruída e Jeremias prevê sua reconstrução (Jr 31:38 e 32:15-44). Os intérpretes descrevem: “Quarenta e nove anos depois seria 538 a.C., ano em que Ciro permitiu que os judeus para cumprir a profecia de Jeremias, retornando à Palestina (Esdras 1:1-4)”. Essa interpretação também falha em vários pontos. Vejamos.

Ponto 1: ela não faria chegar até o ano 31 d.C., mas sim ao ano 104 a.C. (uma diferença de 135 anos na profecia!). Ponto 2: se entendermos que há uma pausa entre as primeiras 7 semanas (49 anos) e as próximas 62 (434 anos), encontramos o problema de que o texto de Daniel 9 não oferece nenhuma informação a respeito do período que duraria essa pausa, quando começaria e quando terminaria. Isso acaba esvaziando o sentido da profecia, que era dar a Daniel o tempo exato da reconstrução da cidade de Jerusalém e da vinda do Messias. Ponto 3: pela lógica, essa pausa teria de durar de 538 a.C. até 408 a.C., para que os 434 anos restantes chegassem ao ano 31 d.C. Mas isso estranhamente faria com que o período da reconstrução da cidade ficassem de fora das 70 semanas, justamente na pausa. Isso é incoerente, pois a profecia foi dada justamente para incluir o tempo de reconstrução de Jerusalém.

Curiosamente, a interpretação que Calvino possuía não é citada pelos intérpretes da Nova Bíblia de Genebra. Talvez isso seja um indício de que Calvino forçou demais em sua interpretação e os intérpretes modernos acharam por bem não considerá-la.

O Comentário Bíblico Moody adota a visão de que o inicio da contagem seria 444 a.C., o que já mostramos ser incoerente. Como resposta à diferença nos cálculos, o Moody afirma: “De 444 A.C. até 30 d.C., O período geral do ministério de Cristo é de 470 e mais alguns anos – tão próximo dos 483 especificados que, sem mais sutilezas a correspondência é bastante convincente”. Mas não me parece que 13 anos de diferença seja algo pouco substancial.

A Bíblia de Estudo Apologia não fecha questão, mas demonstra predileção por uma interpretação. Ela pontua que “há incertezas sobre quando iniciar a contagem. João Crisóstomo (345-407 d.C.), por exemplo, não interpretou a profecia de Jeremias em 29:10 (Dn 9:2) [feita em 587-586 a.C.] , como o ponto de referência, mas a ‘promulgação do decreto para restaurar e reconstruir Jerusalém’, feita por Ciro, no fim do exílio na Babilônia (Discourse 5.10.3)”. Essa é a mesma interpretação de João Calvino e, como já vimos, não se adéqua às datas da historiografia geral. A Bíblia de Jerusalém parece seguir interpretação semelhante. Ela diz:

“Trata-se de número perfeito de semana de anos. O ponto de partida do cálculo é a data da revelação feita a Jeremias [587-586 a.C.], cf. vs. 25. O término visado é a restauração de Jerusalém e a volta dos exilados, que II Cr 36:22-23 (=Ed 1:1-3) vê realizados pelo decreto libertador de Ciro em 538 d.C.”. 

Embora possa se achar 49 anos nesse meio tempo, a interpretação cai nos problemas já mencionados há pouco, o que a torna frágil e implausível. Diferindo-se desses intérpretes, Isaac Newton parece acertar o alvo em suas observações. Ele diz:

“Aqui, substituindo uma semana por sete anos, obtemos um período de 490 anos, desde o tempo em que os Judeus dispersos deveriam ser reincorporados (Vide Isaías 23:13) em um povo e uma cidade santa, até a morte e a ressurreição de Cristo […]. Entretanto, os Judeus dispersos tornaram-se um povo e uma cidade quando pela primeira vez se constituíram num corpo político, o que se deu no sétimo ano de Artaxerxes Longímano, quando Esdras voltou do cativeiro com uma leva de Judeus e reviveu o culto judaico e, por ordem do rei, nomeou magistrados em toda parte, a fim de que julgassem e governassem o povo de acordo com as leis de Deus e do Rei, como se lê em Esdras 7:25. Houve apenas dois retornos do cativeiro: o de Zorobabel e o de Esdras. No primeiro, apenas tiveram licença para construir o Templo; com Esdras, antes de mais nada, tornaram-se um organismo político ou uma cidade, com governo próprio”. 

Por tudo o que vimos até aqui, faz mais sentido interpretar o inicio das 70 semanas no ano 457 a.C. Assim, alcançamos exatamente a época do ministério de Cristo.

A metade da última semana

As divergências continuam na questão da última semana. Daniel 9:26-27 dá a entender que Jesus apareceria no inicio da última semana da profecia e morreria no meio dessa semana. Isso indica que seu ministério duraria três anos e meio. A implicação lógica é que ficam sobrando mais três anos e meio. Essa última semana é interpretada de modo diferente pelas vertentes.

Calvino parecia entender que a metade da última semana era um tempo dado aos judeus antes do evangelho passar a ser pregado em todo o mundo. Observe os trechos abaixo:

“[…] quando o anjo fala da última semana, claramente afirma: O pacto será confirmado naquele tempo, e então o Messias será eliminado. Como isso deveria ser feito na última semana, devemos necessariamente estender o tempo até a pregação do evangelho”. 

“Na última preleção explicamos como Cristo confirmou o pacto com muitos durante a última semana; pois ele congregou os filhos de Deus de seu estado de dispersão, quando a devastação da Igreja assumiu um caráter extremamente terrível e miserável. Embora o evangelho não fosse instantaneamente promulgado entre as nações estrangeiras, todavia somos corretamente informados que Cristo confirmou o pacto com muitos, visto que as nações foram diretamente chamadas à esperança da salvação [Mt 10.5]. Embora ele proibisse os discípulos de pregarem então o evangelho aos gentios ou aos samaritanos, contudo os instruiu dizendo que muitas ovelhas viviam dispersas pelo mundo fora, e que estava próximo o dia em que Deus construiria um só aprisco [Jo 10.16]. […] É muitíssimo notório que o pacto divino esteve depositado por um tipo de direito hereditário com os israelitas até que o mesmo favor se estendesse também aos gentios. Portanto diz-se que Cristo renovou o pacto de Deus não só com uma nação, mas em termos gerais com o mundo como um todo”. 

“O profeta agora adiciona: Ele fará cessar o sacrifício e a oblação durante metade de uma semana. Devemos relacionar isso com o tempo da ressurreição. Pois enquanto Cristo atravessava o período de sua vida terrena, ele não pôs termo aos sacrifícios; mas depois de oferecer-se como vítima, então todos os ritos da lei chegaram ao termo final. […] Daí, depois que Cristo se manifestou e expiou todos os pecados do mundo, fez-se necessário que todos os sacrifícios cessassem (Hb 8.5). Essa é a intenção do profeta quando diz que Cristo faria cessar os sacrifícios durante metade de uma semana. Ele abarca dois pontos ao mesmo tempo: primeiro, Cristo real e eficientemente pôs fim aos sacrifícios da lei; e, segundo, ele provou isso ao mundo através da pregação do evangelho por seus apóstolos”.

“Eu, porém, penso que a passagem [de Daniel 9:26-27] marca a mudança geral que ocorreu diretamente depois da ressurreição de Cristo, quando a obstinada impiedade do povo foi plenamente detectada. Foram, pois, convocados ao arrependimento; ainda que tivessem se esforçado em extinguir toda esperança de salvação radicada em Cristo, todavia Deus estendeu-lhes a mão e testou se sua perversidade era ou não passível de cura. Depois que a graça de Cristo foi obstinadamente rejeitada, então seguiu-se a extensão das abominações; ou, seja, Deus subverteu o templo em total ruína, e fez com que sua santidade e glória se desvanecessem totalmente. Embora essa vingança não ocorresse imediatamente depois de expirar a última semana, todavia Deus vingou-se suficientemente de seu ímpio desprezo por seu evangelho […]”. 

Calvino também entende que a destruição de Jerusalém no ano 70 d.C. não está inclusa nas 70 semanas, mas é algo que ocorre algum tempo depois do término desta. A visão de Calvino, à principio, é bastante coerente. Porém outros intérpretes discordam. Os comentaristas da Nova Bíblia de Estudo de Genebra não fecham questão, mas citam duas vertentes em relação à interpretação dos versos 26-27. A primeira entende que quem faz uma forte aliança com muitos é o Messias. A segunda defende que quem fará essa aliança é o príncipe destruidor. Sobre essa interpretação, a nota diz: “O ‘príncipe’ é identificado como o Anticristo, que vai estabelecer uma aliança com o povo judeu reunido na terra de Israel durante um período de ‘tribulação’ (12:1; Mt 24:21; Ap. 7:14) de sete anos (a ‘semana’ septuagésima)”.

Na sequência, os comentaristas explicam que para a primeira visão, o fim do sacrifício “refere-se ao término do sistema sacrificial do Antigo Testamento provocada pela morte de Cristo”, enquanto que para a segunda visão, “esta é uma referência a proibição do Anticristo do ‘o sacrifício e da oferta’ (talvez de pé para a prática religiosa em geral) pelo povo judeu reunido após três anos e meio (Ap. 11:2; 12:6,14) do período de tribulação”. Por sua vez, a primeira visão entende que a referência ao assolador “descreve a destruição de Jerusalém que ocorreu no ano 70”, enquanto que a segunda entende que a expressão “descreve uma catástrofe que virá sobre Jerusalém em conexão com as atividades do Anticristo”.

É interessante que Calvino se alinhava à primeira interpretação, como vimos. Mas os calvinistas da Nova Bíblia de Estudo de Genebra preferem apresentar as duas visões, talvez por influência da interpretação dispensacionalista no mundo protestante desde o fim do século 19 até hoje. Mas a visão que destaca a última semana ou a metade dela para um pouco antes da volta de Jesus, carece de apoio textual, conforme veremos mais à frente.

O Comentário Bíblico Moody, que favorece o dispensacionalismo, defende a visão que empurra a metade da última semana para o fim dos tempos. Comentando sobre o verso 26, os comentaristas dizem:

26. Depois das sessenta e duas semanas. É mais importante observar que certos acontecimentos são ditos serem depois (heb. we’aherê) das sessenta e duas semanas (mais, é claro, as sete, ou sessenta e nove ao todo). A palavra hebraica não significa ‘então’ ou ‘naquele tempo’ como algumas outras palavras (cons. 12:1). Como também a profecia não coloca de forma alguma o próximo acontecimento na septuagésima semana. Ela a coloca depois da sexagésima nona. 

Será morto o Ungido, e já não estará (ou, e nada terá, ASV); e o povo de um príncipe, que há de vir, destruirá a cidade e o santuário. Quase todos os intérpretes evangélicos concordam que esses dois acontecimentos, a morre do Messias (Ungido) e a destruição do santuário referem-se à crucificação de Cristo e à destruição de Jerusalém pelos romanos. Esses dois acontecimentos estão separados por um período de aproximadamente quarenta anos (29-60 d.C.). Contudo, na ordem literária da passagem, ambos se encontram depois da sexagésima nona semana e antes da ‘última semana’ final mencionada no versículo seguinte. Assim a própria sintaxe, gramática e significado das palavras indicam uma interrupção na sucessão das setenta semanas”. 

O grande problema dessa interpretação é que ela ignora a estrutura poética hebraica de Daniel 9:25-27 e lê o texto com os olhos ocidentais. Na poesia ocidental, costumamos a usar rimas e nos textos gerais seguimos uma dinâmica linear. Na poesia hebraica, o foco era a colocação das frases e/ou conteúdos e nos textos gerais a dinâmica era mais circular ou piramidal. Por exemplo, muitos textos bíblicos no original hebraico foram construídos em formas de quiasma. Nesse esquema, os primeiros versos (ou ideias) refletem os últimos e o verso (ou ideia) central é o conteúdo principal do texto. Isso quer dizer que as ideias iniciais se repetiriam no final e que o ponto alto não estaria no final, mas no meio.

Além dos quiasmas, os hebreus usavam vários tipos de paralelismo, como os sinômicos (uma ideia ou verso era repetido com palavras diferentes), os antitéticos (uma ideia ou verso mostra o lado logicamente contrário da primeira), sintéticos (uma ideia ou verso complementa ou acrescenta algo à ideia anterior) e alternativos (duas ideias são desenvolvidas verso sim, verso não, em alternância). Ora, Daniel 9:25-27 apresenta um paralelismo alternativo. Note:

A1 – Ideia: Vinda do Messias (v. 25a)

B1 – Ideia: Reconstrução de Jerusalém (v. 25b)

A2 – Ideia: Morte do Messias (v. 26a)

B2 – Ideia: Destruição de Jerusalém (v. 26b)

A3 – Ideia: Aliança com o Messias (v. 27a)

B3 – Ideia: Destruição de Jerusalém (v. 27b)

Em outras palavras, seguindo o estilo hebraico (não o estilo ocidental), a ideia em A3 não poderia ser uma aliança com o príncipe destruidor, mas com o Messias. Além disso, é interessante notar que seguindo o paralelismo alternativo, todas as vezes em que o texto se refere ao Messias, o associa com a palavra “semanas”. Isso reforça que a leitura natural do texto deve jogar a destruição da cidade por um príncipe para depois do fim das setenta semanas, como Calvino defendia. Isso faz sentido, já que a destruição é uma informação adicional. O foco da visão dada por Gabriel era falar sobre a reconstrução e a vinda do Messias, o que ocorre dentro das setenta semanas. Assim, implicitamente, o texto nos indica que a metade da última semana continua depois da morte de Jesus.

Tal interpretação se adéqua bem à história, já que nos primeiros anos de pregação do evangelho, os apóstolos se limitaram a Jerusalém (Mt 10:5-6 e 15:24; Lc 24:47; At 1:8; 2:41-46, 3:1-3, 4:32, 5:12-21, 6:7, 8:1-25, 11:19-22). Coerente! As setenta semanas tinham sido cortadas especificamente para Jerusalém e os judeus. Elas seguem uma dinâmica presente em toda a Bíblia: Yahweh abençoa a Israel para Israel abençoar o mundo todo (Gn 12:1-3; Jr 31:31-33; Is 56:1-8; Zc 8:20-23; Jo 4:22; Rm 1:16; 2:10).

Mais adiante, o Comentário Bíblico Moody diz:

27. Ele fará firme aliança com muitos por uma semana. […] O mais natural antecedente para ele, o sujeito da cláusula, é o ‘príncipe’ perverso do versículo 26. Esta é a palavra mais próxima na concordância gramatical e se encaixa no sentido. Os muitos aqui, como também em outras passagens, é uma referência ao povo hebreu, o assunto em discussão através de todo o capítulo 9 (cons. vs. 2, 12,18, 19, esp. 24, ‘teu povo…, tua santa cidade’). Evidentemente a aliança será feita entre o Anticristo e Israel quando os judeus voltarem a sua terra nos últimos tempos. A natureza exata da aliança é desconhecida”. 

Essa interpretação escorrega no mesmo problema: ignorando-se o paralelismo hebraico e fazendo uma leitura ocidentalizada (linear), os comentaristas enxergam a aliança como tendo sido feita pelo príncipe destruidor.

A Bíblia de Estudo Apologia não fecha questão. Se limita a dizer que “De forma tradicional, os cristãos afirmam que a profecia [das setenta semanas] prediz a vinda de Cristo, embora haja uma discrepância quanto a se as setenta semanas culminam com o seu primeiro advento ou se com o seu segundo”. A Bíblia de Jerusalém vai na mesma linha, afirmando que alguns dos antigos padres da igreja “transpunham a última semana para o fim dos tempos”. Ela também afirma, a respeito da aliança do verso 27: “Essa passagem talvez se esclareça à luz de [Daniel] 11:30-32: a ‘aliança’ designaria aqui a reunião dos ímpios  em torno do tirano que os atraiu para violarem a Aliança sagrada”. Numa nota adiante, conclui: “A abolição do sacrifício antigo não significa aqui a sua substituição pelo sacrifício da nova aliança; as passagens paralelas e o contexto mostram que se trata de obra dos ímpios”. Mas já vimos que os contextos lingüístico e estilístico não apóiam esse pensamento.

Isaac Newton, possui uma interpretação que se situa no meio termo. Ele entende, como já vimos, que a contagem se inicia no decreto de Artaxerxes em seu sétimo ano de reinado (457 a.C.). Mas em vez de concluir que os três anos e meio restantes depois da morte de Jesus estariam conectados, ele fragmenta o tempo e o coloca para ser cumprido entre os anos de 67 e 70 d.C., quando Jerusalém seria destruída por Roma pelos exércitos de Vespasiano. Por outro lado, ele também menciona, antes, o seguinte:

“É bem sabido como o Cristo foi eliminado e a cidade e o santuário destruídos pelos Romanos. ‘E o Cristo confirmará com muitos a sua Nova Aliança durante uma semana’. E isto se deu, apesar de sua morte, até a expulsão dos Judeus e a vinda de Cornélio e dos gentios, no sétimo ano depois de sua paixão”.

Aqui Newton entende que quem faz aliança é Cristo. E menciona que após a sua morte, a aliança seria confirmada por meio de alguns eventos, como a expansão do evangelho aos judeus. No entanto, aparentemente, Newton colocava esses eventos dentro de uma pausa nas setenta semanas, empurrando a metade da última semana para décadas mais tarde. Me parece um raciocínio meio confuso. O raciocínio de Calvino, neste ponto específico, continua sendo mais razoável e natural, dada a estrutura do texto hebraico.

A relação entre Daniel 8 e 9

O último tópico antes das considerações finais tem a ver com um ponto de convergência entre todos esses intérpretes que, não obstante, faz pouco sentido. Nenhum deles faz uma conexão entre Daniel 8 e 9. Isso é estranho, pois (1) os capítulos proféticos de Daniel seguem uma linha onde cada capítulo explica e amplia o anterior; e (2) Daniel 8 termina com o profeta não entendendo a visão (mareh) das 2300 tardes e manhãs, que Gabriel havia sido designado para explicar (vs. 26-27 e 16), e Daniel 9 deixa claro que o mesmo Gabriel veio explicar a visão (mareh) ao profeta (vs. 20-23). É óbvio, portanto, que Gabriel foi explicar a visão das 2300 tardes e manhãs, e que esta era, ao mesmo tempo, a chave para entender a profecia dos 70 anos de Jeremias. Em outras palavras, a profecia das 70 semanas era o elo que faltava para entender a relação entre as 2300 tardes e manhãs e os 70 anos.

Além disso, uma vez que o capítulo 8 não dá o tempo exato do inicio das 2300 tardes e manhãs (apesar de indicar que o período se iniciaria em algum ponto do império persa), é plausível que o capítulo 9 tenha a chave para isso. Como o capítulo 9 dá o inicio das setenta semanas e diz que esse período foi cortado para os judeus (presumivelmente de um período geral maior que iria além dos judeus), então é bastante coerente concluir que os dois períodos têm o mesmo ponto de partida: a saída da ordem para edificar a cidade de Jerusalém (o decreto de Artaxerxes em 457 a.C.).

Resumo e Conclusão

Vimos que os intérpretes cristãos geralmente concordam que as 70 semanas são 490 anos que se estendem até o ministério de Cristo. Há, no entanto, divergências entre qual seria o inicio o ano de inicio da contagem e onde seria posta a metade da última semana da profecia. No primeiro tópico, há sugestões dos anos 587 a.C., 538 a.C., 457 a.C. e 444 a.C. como pontos de partida. No entanto, apenas o ano 457 a.C. leva ao ano 31 d.C., o mais provável ano da morte de Jesus. Além disso, esse ano possui o decreto que melhor se encaixa na profecia.

No segundo tópico, há três sugestões: (1) a de que a metade da última semana seriam os três anos e meio depois da morte de Jesus, quando o evangelho ainda estaria sendo pregado exclusivamente em Jerusalém; (2) a de que seriam os anos de aliança com o Anticristo, no fim dos tempos; e (3) a de que seriam os anos de guerra entre Jerusalém e Roma, entre 67 e 70 d.C. A primeira é a única que se adéqua aos contextos idiomático e lingüístico de Daniel 9. Além disso, o entendimento das setenta semanas sem pausas dá maior sentido à profecia, pois o objetivo era oferecer ao profeta o tempo exato da reconstrução da cidade e da vinda do Messias.

A Igreja Adventista do Sétimo Dia tem seguido historicamente a hipótese de 457 d.C. como ponto de partida das setenta semanas e a de que a profecia prossegue sem pausas, terminando no ano 34 d.C., quando provavelmente os primeiros crentes em Jesus passaram a pregar fora de Jerusalém. Além disso, a IASD tem enfatizado a relação entre os capítulos 8 e 9 de Daniel por conta da estrutura do livro e dos dois capítulos.

Na próxima postagem, devemos comparar as interpretações a respeito de Daniel 11:40-45 e de todo o capítulo 12, fechando assim o livro. Na postagem subseqüente, nós adentraremos o livro de Apocalipse, começando pelas cartas às sete igrejas. Não se esqueça que os livros de Daniel e Apocalipse estão intimamente conectados.

Por Davi Caldas

Fonte: Reação Adventista

Sobre Weleson Fernandes

Escritor & Evangelista da União Central Brasileira

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