Na quinta postagem dessa série, analisamos as interpretações católicas e protestantes em geral a respeito de Daniel 10, 11 e 12. E assim finalizamos as comparações em relação às interpretações escatológicas do livro de Daniel. Nesta sexta postagem, dando início às análises do livro de Apocalipse, nós vamos comparar as interpretações católicas e protestantes em geral a respeito de Apocalipse 2-6. Quem não leu as postagens anteriores, os links estão aqui (parte 1, parte 2, parte 3, parte 4 e parte 5).
As fontes
Conforme mencionei no início da série, tenho me utilizado de seis fontes para fazer as comparações:
(1) dois volumes de comentários de João Calvino sobre o livro de Daniel, publicados em português pela Parakletos, em 2002;
(2) uma tradução da “New Geneva Study Bible” [Nova Bíblia de Estudo de Genebra], originalmente publicada em 1995, com edição geral do conhecido R. C. Sproul e comentários de teólogos calvinistas do século XX;
(3) a católica “Bíblia de Jerusalém”, publicada pela editora Paulus em 2002, com comentários de teólogos católicos;
(4) “A Bíblia de Estudo Apologia”, publicada pela CPAD (Casa Publicadora das Assembléias de Deus), em 2015, e comentada por eruditos protestantes de diversas denominações;
(5) o “Comentário Bíblico Moody”, editado pelos teólogos protestantes Charles F. Pfeiffer (vol 1) e Everett F. Harrison (vol 2);
(6) a obra “Observações sobre as profecias de Daniel e o Apocalipse de São João”, de Isaac Newton, publicado originalmente em 1733.
Como já cobrimos Daniel, os comentários de Calvino sobre este livro já não serão tão utilizados, salvo para relembrar pontos já abordados em textos anteriores. Infelizmente, Calvino não escreveu comentários sobre o livro de Apocalipse, de modo que não tenho como substituir a obra de Daniel. Entretanto, farei uso de comentários de Calvino sobre o Anticristo que estão registrados em seu comentário a II Tessalonicenses. Assim, eu espero oferecer um quadro mais completo de interpretações para comparar.
Os métodos interpretativos
Antes de partir para as primeiras comparações é necessário ter em mente que existem quatro principais métodos interpretativos a respeito do Apocalipse: preterista, futurista, historicista e idealista. O preterista entende que a maior parte das visões de Apocalipse foi cumprida na própria época de João. O futurista sustenta que a maior parte das visões se cumprirá alguns poucos anos e até meses antes de Jesus voltar. O historicista crê que as visões foram sendo cumpridas ao longo da história, restando ainda algumas poucas para se cumprirem. E o idealista interpreta as visões como não tendo cumprimento no tempo, mas representando apenas princípios gerais para a vida espiritual.
O que deve determinar qual desses métodos deve ser usado? Obviamente, os contextos com os quais o Apocalipse é escrito: sua mensagem, sua intenção, sua estrutura, seu estilo literário, suas relações do o livro de Daniel e o restante da Bíblia, etc. A ideia desse e dos próximos textos é justamente analisar e comparar as interpretações para ver se seus métodos fluem do texto bíblico ou não.
No caso de Daniel fizemos o mesmo. E qual método de interpretação fluiu do livro de Daniel? Foi o historicista. Vimos que cada visão dada ao profeta apontava a mesma sucessão de reinos ao longo de séculos. E todas elas levavam até o tempo do fim. Além disso, o livro foi estruturado de maneira tal que cada visão explica e amplia a visão anterior. Assim, todas elas só podem ser interpretadas pelo método historicista. Teria o Apocalipse a mesma estrutura? É o que veremos.
Carta às Sete Igrejas (Ap 1-3)
A primeira visão dada a João no Apocalipse é a das cartas a sete igrejas da Ásia. Na visão, Jesus dita a João algumas mensagens que deveriam ser entregues a sete igrejas da região da Ásia: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia. Todas as cartas são curtas (estão mais para “telegramas”) e possuem praticamente a mesma estrutura: uma apresentação de Cristo Jesus enfatizando alguma característica de sua identidade; uma descrição breve da Igreja acoplada a um elogio; uma repreensão; uma exortação; uma palavra de conforto; e uma promessa escatológica. Apenas a Igreja de Esmirna e a de Filadélfia não possuem uma repreensão direta.
Como cada vertente interpreta essas cartas? Antes de começar a citar, devo deixar claro que não vamos analisar a interpretação de cada detalhe das sete cartas, mas apenas a visão geral. Em outras palavras, qual é o sentido geral da redação dessas sete cartas? O que elas pretendem ensinar? Por que foram escolhidas sete? As igrejas são literais? Ou simbolizam alguma coisa? Se sim, o quê? Esses são os pontos. Vamos começar.
A Nova Bíblia de Estudo de Genebra afirma o seguinte:
“Apocalipse está organizado em sete, o número bíblico simbólico de completude (Gen. 2:2-3). A escolha das sete igrejas expressa esse tema e aponta para a relevância mais ampla da mensagem para todas as igrejas (vv. 1 , 3 ; 02:07 , 11 , 17 , 29 , 03:06 , 13 , 22 , 22:07 , 11 -14 , 16 , 18-21)”.
Mais adiante, também lemos a seguinte nota:
“Em todas as cartas há alusões a circunstâncias ou as tradições da cidade em particular, provavelmente incluindo alguns que não são mais reconhecidos. Ao mesmo tempo, todas as igrejas são incluídas num chamado universal à fidelidade e perseverança até que as promessas alcançar sua plenitude na Jerusalém celeste. Suas lutas contrastam com a paz e satisfação retratado em 21:01-22:05. As exortações são reforçados por uma alusão abertura para algum elemento da visão majestosa de 1:12-20, e, portanto, têm influência universal (1:4 nota)”.
Aqui os comentaristas optam pela mescla de dois métodos interpretativos: o preterista e o idealista. As mensagens são vistas como expressando a situação literal das sete igrejas escolhidas da Ásia, mas também como simbolizando princípios para todas as igrejas. A mescla de métodos é uma proposta dos comentaristas mencionadas nas notas iniciais ao livro de Apocalipse. Após um esboço de cada método, eles pontuam: “A combinação desses pontos de vista é provavelmente mais próxima da verdade. A imagem em Apocalipse é multifacetada e, em princípio, capaz de múltiplas realizações”.
O Comentário Bíblico Moody, em sua introdução, também fala dos quatro esquemas interpretativos, defendendo o futurista e tecendo objeções aos demais. No entanto, alerta que o futurismo extremo seria um erro:
“É claro que em cada um destes sistemas de interpretação existe um pouco de verdade. Os três primeiros capítulos devem ser interpretados historicamente. Há grandes princípios espirituais apresentados nos juízos, nas promessas, nas profecias e nas vitórias messiânicas deste livro. Na maioria, entretanto, o Apocalipse será mais corretamente interpretado se for adotado o esquema futurista”.
Sobre as sete igrejas, o comentário afirma:
“Através dos séculos, os estudantes têm defendido quatro diferentes pontos de vista sobre as mais profundas implicações desta série de sete cartas. Primeiro, há a interpretação histórica – que estas igrejas existiram quando João escreveu e tinham as características aqui descritas.
Segundo, há a opinião – sem dúvida correta – de que estas igrejas, além de serem históricas, são representantes dos diferentes tipos de igrejas através dos séculos. De acordo, manifestam as boas e as trágicas características nas igrejas, século após século. As advertências e as promessas, então, são para todas as épocas.
Há uma terceira e um tanto fantástica opinião de que estas profecias devem ser interpretadas futuristicamente; isto é, que todas essas cidades serão restauradas no final dos tempos, e então as predições serão inteiramente cumpridas.
Um quarto ponto de vista, defendido por muitos, é o de que estas sete igrejas representam sete períodos sucessivos da história da igreja, desde o primeiro século até o fim dos tempos. Eu pessoalmente não sigo esta interpretação, e o estudo das obras de seus proponentes revelam confusão sobre confusão. Virtringa, por exemplo identifica a sexta igreja com o primeiro século da Reforma, e a sétima com a igreja Reformada do seu tempo. Geralmente, os escritores que aceitam este ponto de vista proclamam que estão no período de Laodicéia. Parece que a mornidão e a indiferença marcará a igreja do final dos tempos, particularmente a indiferença quanto às grandes doutrinas da fé e a falta de vontade de defendê-las”.
Vou comentar em detalhe esses apontamentos mais adiante. Porém, devemos notar que o comentarista não trata com muita justiça a quarta interpretação. Ele faz parecer que a principal razão para não crer nela seria a confusão que alguns autores fazem. Entretanto, o fato de alguém utilizar mal um modelo não implica que o modelo é errôneo. E, como veremos logo mais, a quarta interpretação (que é o modelo historicista) conta com muito boas razões para ser aceito.
A Bíblia de Estudo Apologia faz dois comentários sobre as sete igrejas:
“As sete igrejas locais listadas não eram as únicas igrejas da Ásia Menor naquela época (Cl 1:2; 4:13). Estas comunidades foram escolhidas como exemplo do que estava acontecendo entre eles naquela época, e porque estavam localizadas nas estradas de uma rota postal circular”.
“Alguns afirmam que as sete igrejas escolhidas para receber estas breves cartas representam sete estágios na história da igreja. Mas considerando as diferentes interpretações desses estágios, é improvável que a visão fosse aplicável a estas situações. Mais provavelmente, as igrejas foram escolhidas por causa das lições que fornecem para ‘todas as igrejas’ (2:2-3)”.
A argumentação aqui contra o modelo historicista (cada igreja representando uma fase sucessiva na história cristã) cai no mesmo erro da argumentação do Comentário Bíblico Moody: o pressuposto de que se há várias interpretações diferentes e bizarras dentro de um modelo, então o modelo deve ser falso. Ora, se formos aplicar esse raciocínio a tudo, o próprio cristianismo é falso, já que do seio cristão saíram e continuam saindo as mais diversas interpretações, muitas das quais são ridículas. Simplesmente, esse não é um bom argumento para se jogar fora algum conjunto de ideias.
A maneira correta de se avaliar a validade do historicismo é a seguinte: (1) observar se o os contextos presentes na redação do Apocalipse indicam que devemos usar o método historicista e (2) se há eventos históricos que se coadunam com as profecias. Note: se o segundo ponto mostrar que há esses eventos, mas o primeiro ponto não indicar que o método deve ser usado, então é só coincidência. Por outro lado, se o primeiro ponto indicar que o método historicista deve ser usado, mas o segundo ponto não achar os eventos, ou a profecia falhou (o que implica falsidade do Apocalipse), ou o intérprete foi incompetente em encontrar os fatos históricos. O que não é opção plausível é jogar o historicismo fora antes de avaliar esses dois pontos em profundidade. Mas vamos ver isso logo mais. Continuemos.
A Bíblia de Jerusalém afirma, em relação a Apocalipse 1:19, que “As coisas presentes são as cartas dos capítulos 2 e 3. As coisas que deverão acontecer depois destas são as revelações dos capítulos 4-22. A profecia toma aqui a forma de visões”. Mais adiante, há o seguinte comentário:
“As sete cartas têm todas a mesma estrutura. Às constatações sobre o estado das Igrejas (‘conheço’) seguem-se promessas ou ameaças, expressas numa perspectiva escatológica. São muito ricas em doutrina, especialmente a respeito de Jesus Cristo, que se considera falar em primeira pessoa do começo ao fim. Deste modo, elas nos fornecem também um quadro da vida cristã na Ásia por volta do ano 90”.
Essas notas denotam que os comentaristas da Bíblia de Jerusalém utilizam, ao menos na seção das sete cartas, o método preterista.
Isaac Newton é o único desses todos que se mostra favorável à interpretação historicista das sete cartas. Ele afirma:
“Estas Cartas contêm advertências contra a próxima apostasia e, assim, referem-se aos tempos em que a apostasia começava a trabalhar fortemente, e antes que tivesse prevalecido. Ela começou a trabalhar nos dias dos Apóstolos e deveria continuar trabalhando até que o homem do pecado fosse revelado [II Ts 2:1-12]. Começou a trabalhar nos discípulos de Simão, Menandro, Carpocrates, Cerinto e outros do mesmo quilate, encharcados de filosofia metafísica dos Gentios e dos Judeus Cabalistas, pelo que foram chamados de Gnósticos. João os chama de anticristos e diz que nos seus dias havia muitos anticristos [I Jo 2:18-22]. Mas estes, tendo sido condenados pelos Apóstolos e por seus discípulos imediatos, não ofereceram perigo às Igrejas durante a abertura dos primeiros quatro Selos”.
Pois bem, qual é a abordagem mais bíblica dentre essas? Vamos analisar alguns pontos do texto de Apocalipse 1-3 e do contexto geral.
Ponto 1: está claro que independente de qual método for o correto, as igrejas da Ásia existiram e tinham, à época, as características descritas nas cartas. Afinal, se a intenção era representar realidades maiores, as igrejas escolhidas precisavam ter características capazes de representar essas realidades. Se a intenção era apenas passar mensagens a essas igrejas, obviamente elas existiam e precisavam ouvir aquelas palavras.
Ponto 2: apesar de aquelas igrejas existirem e terem, no fim do primeiro século, as características citadas nas cartas, o livro do Apocalipse não tem estilo epistolar. O NT conta com 21 epístolas (pelo menos 13 epístolas de Paulo, 1 de Tiago, 2 de Pedro, 3 de João e 1 de Judas). Todas elas possuem linguagem predominantemente literal, direta, prática e exortativa. Elas não possuem partes extensas com visões descritas de maneira detalhada, nem uma série de símbolos pare serem decodificados. São apenas epístolas com conteúdo disciplinar, pastoral e doutrinário. Apocalipse, por sua vez, é um livro de estilo profético-apocalíptico, o mesmo estilo encontrado nos capítulos 2, 7, 8, 9, 10, 11 e 12 do livro de Daniel. Logo, é pouco provável que as sete cartas, inseridas no contexto maior de Apocalipse, tivessem intuito meramente epistolar. As cartas provavelmente possuem intuito profético-apocalíptico.
Ponto 3: o estilo profético-apocalíptico está intimamente ligado à escatologia. Ele busca elucidar questões ocorrem no fim dos tempos ou que levam até o fim dos tempos. Logo, se as sete cartas possuem esse intuito, elas não foram escolhidas prioritariamente para exortar as sete igrejas (embora o conteúdo servisse literalmente a cada uma delas), mas para representar realidades maiores. Pelo mesmo principio, no entanto, é improvável que as sete igrejas tenham sido escolhidas para representar apenas uma exortação geral a todas as igrejas locais da época de João e posteriores. Isso continuaria sendo uma característica epistolar, não profético-apocalíptica e escatológica. Como os próprios comentaristas da Bíblia de Jerusalém assumem, as cartas são escritas numa “perspectiva escatológica”. Logo, é razoável concluir que o intuito da mensagem é escatológico. Ou ele se refere ao fim ou ele conduz ao fim numa linha histórico-cronológica ininterrupta.
Ponto 4: existiam outras igrejas na Ásia Menor e fora da Ásia, mas apenas sete foram escolhidas. Sabemos que sete indica, no pensamento hebraico-bíblico, plenitude e/ou perfeição. Então, é provável que a escolha das no número de sete tenha sido motivada pela ideia de representar a Igreja como um todo. Além disso, a localização geográfica delas criava uma rota circular ordenada. E elas são descritas exatamente na ordem desta rota. Isso significa que quem andasse por essa rota para entregar as mensagens, partindo de Éfeso até Laodiceia, chegaria a essas igrejas em períodos diferentes e sucessivos. Há neste fato um forte indicativo de que as sete igrejas representavam os vários períodos históricos sucessivos da Igreja cristã como um todo. Em outras palavras, as sete igrejas não representavam meramente todas as igrejas da época, mas sim todas as épocas da Igreja.
Ponto 5: o ponto anterior é reforçado pelo fato de que a estrutura do livro de Daniel expõe justamente uma sucessão de eventos desde a época do profeta até o fim. E o livro de Apocalipse está intimamente conectado com o livro de Daniel. Alguém poderia dizer, claro, que Apocalipse faz citações e alusões a diversos livros do AT, não apenas a Daniel. E é verdade. Entretanto, Daniel é o único livro do AT que foca em dar detalhes do fim a partir de uma longa linha de eventos históricos que alcançam o final da história terrena. E Apocalipse é o único livro do NT que faz o mesmo. Além do mais, Daniel faz profecias numéricas que se cumprem ao longo da história. E Apocalipse cita essas mesmas profecias. Assim, é razoável concluir que Apocalipse explica e amplia a parte profético-apocalíptica do livro de Daniel, tendo ambos o mesmo intuito e estilo.
Por esses cinco pontos, portanto, parece bastante provável que o método bíblico de interpretar Apocalipse 1-3 é o historicista. Esse método não exclui o fato de que as igrejas existiam e tinham aquelas características. Nem que há princípios que podemos extrair dessas cartas para nossa exortação. No entanto, o método faz mais jus ao fato de que o intuito central de Apocalipse (e do conjunto Daniel-Apocalipse) é fornecer uma linha histórica que nos leve até o fim. Com esse método, parece que Deus quis que nós pudéssemos nos preparar melhor para o que haveria de vir, tendo uma ideia do que já foi cumprido e do que ainda resta.
Mas se o método historicista deve ser aplicado a Apocalipse 1-3, então a que períodos se referem as sete igrejas? Bom, sendo elas sucessivas, nós não devemos trocar as suas ordens. Isso implica que Éfeso só pode ser o período apostólico e Laodiceia só pode ser o último período da história terrena. Da segunda à sexta igreja, por conseguinte, devem-se localizar os períodos mais relevantes da história da Igreja. Do ponto de vista bíblico, Daniel nos aponta como relevante que em algum momento da história cristã um poder político-religioso obteria supremacia sobre o povo de Deus após a fragmentação do império romano [passagens]. Essa supremacia duraria por 1260 anos, vindo depois disso o início de um juízo celeste que colocaria em cheque esse poder [passagens]. Vimos isso nos cinco textos anteriores da série. Portanto, esses eventos certamente estão entre os relevantes na história da Igreja, pois a Bíblia os aponta assim.
Temos, então, todos os elementos bíblicos necessários para nos orientar na busca pelo cumprimento histórico das profecias. E os fatos que conhecemos se encaixam bem. A era apostólica vai até o fim do primeiro século (ou começo do segundo), quando todos os apóstolos já estavam mortos. Logo, começa o período de Esmirna. Ele deve ir até 313 d.C., posto que a carta fala sobre duras perseguições e, historicamente, as piores perseguições do império romano se deram sob o imperador Diocleciano, entre 303 e 313 d.C. Dali em diante, se inicia um período de mistura entre Igreja e Estado Romano, o que bate com as descrições contidas na carta de Pérgamo sobre “trono de Satanás” e “prostituição”. São símbolos apropriados.
Uma vez que o poder político-religioso predito em Daniel está ligado a Roma, mas surge após a fragmentação do império romano, então a próxima igreja, Tiatira, parece ser apropriada para dar conta do que acontece entre os anos 476 d.C. (fragmentação do império), 538 d.C. (início da supremacia papal) e 1798 (fim da supremacia). De fato, a carta a Tiatira intensifica as repreensões à prostituição e idolatria, e faz menção a uma autodenominada profetisa (Jezabel) que engana e não se arrepende. É uma descrição bem apropriada da Igreja Cristã Romanizada.
No entanto, é notável que a Igreja Cristã Romanizada começa a sofrer alguns impactos, ainda durante sua supremacia. Temos o Grande Cisma do Oriente em 1054 (quando a Igreja do Ocidente e a do Oriente se separam, gerando a Romana e a Ortodoxa), a resistência de Pedro Valdo e os valdenses (séculos 12 e 13), de John Wycliff e seus seguidores (séculos 13 e 14), de John Huss e seus seguidores (séculos 14 e 15), a Reforma Protestante iniciada por Martinho Lutero (século 16) e todos os movimentos protestantes posteriores. Assim, é provável que o período de Tiatira não se estenda até 1798, já que essa janela declínio da Igreja Romanizada teve enorme relevância histórica e possui importância crucial para entender por qual razão ela perde a supremacia ao fim do século 18. Isso implica que Sardes deve incluir alguns desses eventos.
A carta a Sardes oferece um panorama que expressa o grau dos estragos feitos pela Igreja Romanizada. É uma igreja que tem nome de que vive, mas está morta. Que tem, no entanto, pontos que aprendeu e deve consolidar, bem como pessoas que não sujaram suas vestes. Isso se adéqua bem a qualquer período que contenha a supremacia católica, tentativas de reforma e uma igreja reformada emergindo, mas com muitos pontos ainda não restaurados. Pode ter tido início tanto no século 12 quanto no século 16, indo até provavelmente o século 18, quando se iniciam muitos reavivamentos cristãos e um interesse renovado em Daniel e Apocalipse.
Passando a igreja de Sardes, a próxima igreja é a da Filadélfia. A descrição dessa igreja contém diversos elogios e nenhuma crítica direta. Ela fala sobre sua pouca força, mas também sobre sua fidelidade. Dá a entender que o período representa um despertar da Igreja como um todo, o que se encaixa bem não só com os reavivamentos e interesse nos livros de Daniel e Apocalipse, mas também com o fim (ou a proximidade do fim) da supremacia católica/papal.
Esse período não dura muito tempo. Depois de meados do século 19, os reavivamentos passam e o interesse em Daniel e Apocalipse também. O método historicista começa a ser enterrado. A Igreja cristã no geral volta a se estagnar. Surgem o darwinismo, o marxismo e o cristianismo liberal. E aqui parece que a Igreja começa a experimentar a mornidão predita na carta à Laodiceia.
Não parece haver incoerência em ver esses eventos profetizados. Eles possuem, como vimos, relevância histórica, sequência lógica e cronológica, e são citados, demarcados ou aludidos pelo livro de Daniel.
Os Sete Selos
Terminadas as mensagens às sete igrejas, João tem uma visão sobre alguns detalhes da sala do trono de Deus (cap. 4). Em seguida, o discípulo vê, na mão de Deus, um livro escrito por dentro e por fora e selado com sete selos (Ap 5:1). Ninguém podia abri-lo, a não ser Jesus (vs. 2-14). É no capítulo 6 que Jesus começa a abrir os selos. A cada selo aberto, segue-se alguns acontecimentos. Nos quatro primeiros selos, podemos ver os famosos quatro cavaleiros do Apocalipse, cada qual com suas características distintas. É o sentido geral dessa série de selos que devemos estudar. A questão central aqui é: os eventos descritos na abertura de cada selo ocorreram todos no passado, estão ocorrendo ao longo da história, vão ocorrer todos um pouco antes da volta de Jesus ou não se tratam de eventos históricos? Como o leitor pode ver, a questão outra vez envolve qual é o método de interpretação que o próprio texto indica: preterista, historicista, futurista ou idealista.
A Nova Bíblia de Estudo de Genebra diz o seguinte:
“Os quatro cavaleiros representam conquista, guerra, fome e morte. Estas calamidades caracterizar um período indefinido antes da Segunda Vinda (Marcos 13:68). Essas coisas ocorreram nos tumultos do Império Romano, e pode ser prevista para ocorrer agora e antes da Segunda Vinda. O imaginário é capaz de múltiplas aplicações ao longo da história da igreja”.
Por essa breve descrição, parece que os comentaristas preferem não fechar questão sobre o tempo do cumprimento dessas profecias, podendo ser qualquer época entre o império romano e a segunda vinda de Jesus. As demais notas são todas genéricas, não explicando nada sobre o tempo dos acontecimentos.
O Comentário Bíblico Moody parece adotar uma interpretação genérica tendendo para o futurismo. Sobre os quatro primeiros selos, afirma:
“Observe que nestas quatro primeiras cenas não há nomes de indivíduos, humanos ou sobre-humanos, nem termos geográficos, nem acontecimentos específicos. Os juízos são, como se vê, de natureza geral:- guerras têm acontecido com freqüência sobre a terra, e são freqüentemente acompanhadas de pestes e falta de alimentos, se não de fomes. Parece, então, que é apenas uma fase preliminar de juízos mais terríveis que vêm a seguir”.
A Bíblia de Estudo Apologia diz:
“Há muito paralelismo entre esta seção e a seção do sermão de Jesus no monte das oliveiras (Mt 24:4-14). Se as duas passagens se referem aos mesmos eventos e ocasiões, a sequência da remoção dos selos de Apocalipse 6:1-8:1 acontece antes da grande tribulação (7:14)”.
Mais adiante, em relação aos quatro primeiros selos, pontua:
“Existe um debate algo ou tudo o que está retratado aqui já aconteceu. Embora tenha havido conquistas (v. 2), guerras generalizadas (v.4) e efeitos devastadores da fome na economia (vs. 5-6), nenhuma catástrofe devastou uma parte inteira da Terra (v. 8)”.
Com isso parece que o comentarista tende mais ao futurismo. A Bíblia de Jerusalém, por sua vez, parece se alinhar com um tipo de preterismo. Ela diz:
“Os capítulos 6-9 formam um todo. À medida que o Cordeiro tira os selos do livro (6:1-8:1) e que ressoam as trombetas (8-9), desenvolve-se a visão dos acontecimentos que anunciam e preparam a derrota do Império Romano, protótipo dos inimigos de Deus (cf. Mt 24p)”.
Isaac Newton possui uma abordagem mais voltada para o historicismo. Falando sobre os quatro primeiros selos, Newton afirma:
“As visões, na abertura destes Selos, referem-se exclusivamente aos negócios civis do Império Romano pagão. Enquanto prevaleceram, as tradições apostólicas preservaram a Igreja em sua pureza; assim, os negócios da Igreja não começaram a ser considerados nesta Profecia antes da abertura do quinto Selo. Então, ela principiou a declinar, por falta de conselhos. Por isso é aconselhada, por estas Sete Cartas, (conselhos estes que perduraram) até que a Apostasia prevaleceu e tomou lugar, o que se deu quando da abertura do sétimo Selo. Portanto, os conselhos contidos nestas Cartas se referem ao estado da Igreja ao tempo do quinto e do sexto Selos. Ao abrir-se o quinto Selo, por uma grande perseguição a Igreja é então expurgada dos hipócritas. Ao abrir-se o sexto Selo, o que restava da Igreja é posta fora do caminho (desencaminhada), a saber, o Império Romano pagão. Ao abrir-se o sétimo Selo, revelou-se então o homem do pecado. As Sete Cartas referem-se a esses tempos”.
A interpretação de Newton aqui é um pouco confusa. Embora ele use o historicismo para as sete cartas e os sete selos (o que é coerente, conforme veremos mais adiante), entende que a sequência de cartas não se inicia na Era Apostólica, mas no momento em que a Igreja começa a apostatar. O problema é que não há razão bíblica para pensar dessa forma. Se Apocalipse segue a estrutura profética básica de Daniel, então é mais plausível que as visões se iniciem na época do profeta, no caso, João. E o fato de a primeira visão de Apocalipse ter envolvido igrejas representativas que existiam à época de João corrobora com isso, pois a primeira visão em Daniel envolveu um rei existente à época do profeta, o babilônico Nabucodonosor. Além disso, é notável que todos os capítulos de Daniel que falam sobre sucessão de reinos, apontam as mesmas sucessões, perfazendo os mesmos períodos. Assim, é provável que Apocalipse siga o mesmo modelo, onde as séries de sete igrejas, sete selos e sete trombetas (caps. 8-9) perfariam os mesmos períodos da história cristã.
Newton, por coerência, deveria seguir esse princípio, já que afirma: “O Apocalipse de João foi escrito no mesmo estilo e na mesma linguagem das Profecias de Daniel e tem para com estas a mesma relação que elas têm entre si”. Essa unidade entre os dois livros é a chave para interpretar o Apocalipse corretamente.
Apesar das confusões, Newton é o que apresenta interpretações mais satisfatórias sobre as cartas e os selos. O preterismo da Bíblia de Jerusalém prende as profecias ao passado, o que as destituem do intuito escatológico. O futurismo do Comentário Moody as desconecta da história, fugindo aos indícios de Daniel/Apocalipse de que os eventos da linha histórica que leva até o fim devem ser enfatizados. E as interpretações generalistas da maioria dos intérpretes fazem a profecia perder relevância e sentido. Pelo grau de detalhes em Daniel e Apocalipse, as predições sem dúvida devem ser entendidas como específicas e historicamente relevantes para o povo de Deus.
Assumindo a ideia de que os selos cubram o mesmo período das sete igrejas, fica fácil encontrar os eventos preditos. O selo 1 fala sobre um cavalo branco e seu cavaleiro com um arco. Ele vem vencendo e para vencer. Representa o primeiro período da Igreja, o período apostólico, simbolizado no capítulo 2 pela Igreja de Éfeso. Note a descrição: cavalo branco: parece indicar pureza. Cavaleiro com coroa e arco, vencendo e para vencer: parece indica força, realeza, poder. A imagem aqui é de um período forte, de crescimento rápido, de qualidade e puro.
No selo 2, há um cavalo vermelho e um cavaleiro que tira a paz, fazendo os homens se matarem. Traz uma espada. Esse é claramente o segundo período, simbolizado pela Igreja de Esmirna no capítulo 2. É o período das perseguições. Casa direitinho com o período de mais mortes e martírio nas mãos de Roma pagã. O cavalo vermelho parece ser uma representação de sangue.
No selo 3, há um cavalo preto e o cavaleiro com uma balança. Ele vende as coisas por alto preço. E orienta a não danificar o azeite e o óleo. Representa o período da Igreja se misturando ao Estado, simbolizado pela Igreja de Pérgamo no capítulo 2. A descrição quer dizer que o evangelho verdadeiro começa a entrar em escassez. A orientação é que os cristãos não danifiquem o trabalho do Espírito Santo (óleo) e do vinho (sangue de Cristo).
O selo 4 traz um cavalo amarelo e o cavaleiro chamado Morte. Ele mata por meio de feras, fome e espada. O inferno o segue. Esse cavaleiro se difere do segundo, embora os dois matem. O segundo é vermelho, o que sugere mortes mais violentas, literais, derramamento de sangue. Esse quarto é amarelo e mata de modos distintos. Isso sugere que a principal forma de matar desse cavaleiro não é literal e sanguinária. É moral e teológica. Encaixa-se bem, portanto, ao quarto período, representado no capítulo 2 pela Igreja de Tiatira, a Igreja que tem a profetiza idólatra Jezabel. Ou seja, o sistema papal/católico durante seu longo período de supremacia. Ele matou mais teologicamente do que fisicamente.
O selo 5 apresenta as almas dos mortos perguntando a Deus quando se fará vingança pelos mártires. Isso obviamente é simbólico. Não há almas de mortos debaixo de um altar clamando por vingança. É a mesma figura de linguagem que Deus usa ao falar com Caim: “A voz do sangue do seu irmão clamava terra” (Gn 4:10; Hb 11:14). Não clama de fato. Esses mortos provavelmente se referem tanto a quem sofreu morte física literal, quanto a quem sofreu morte teológica. Eles clamam contra o sistema que distorceu todo o evangelho. Ou seja, esse quinto selo só pode se referir ao período da pré-Reforma e/ou da Reforma Protestante, representado pela Igreja de Sardes no capítulo 3.
No selo 6, uma série de eventos estranhos ocorrem, levando as pessoas a acharem que o Grande e Terrível dia do Senhor chegou. Esse período começa em algum momento depois da Reforma Protestante. Como todos os selos seguiram paralelo com as Igrejas até aqui, então é razoável supor que o sexto selo é a sexta Igreja (Filadélfia).
De fato, alguns dos eventos citados no selo 6 ocorreram entre os períodos de 1700 e 1800. Por exemplo, em 1755 houve um terrível terremoto em Lisboa que destruiu a cidade e foi sentido em lugares de toda a Europa, parte da Ásia e África. O terremoto ocorreu num domingo pela manhã, quando as pessoas estavam em missa. Então, muita gente achou ser o fim do mundo e saiu gritando desesperado. Muitos eventos, como chuva de meteoritos é um dia inteiro escuro (por conta de uma fumaça) nos EUA ocorreram nesse período. Foram eventos naturais, mas bem semelhantes aos descritos na Bíblia.
É possível que esses eventos sejam cumprimentos bíblicos e também é possível que tais profecias tenham dupla natureza. Há várias profecias na Bíblia que se referem a dois eventos diferentes, mas com semelhanças, como uma coisa só. A profecia de Malaquias 4, por exemplo cobre tanto a primeira como a segunda vinda de Jesus. A profecia de Joel 2 sobre derramamento do Espírito se cumpre nos últimos dias, mas antes disso, no Pentecostes da Era Apostólica (At 2). O discurso escatológico de Jesus no monte das Oliveiras se refere à destruição do templo de Jerusalém no ano 70 d.C., mas também ao fim do mundo. Então, se esse for o caso dessas profecias, elas podem ter se cumprido previamente no período do sexto selo e tornarem a ocorrer antes de Jesus voltar, talvez agora de maneira sobrenatural.
Entre o sexto e o sétimo selo há um interlúdio (cap. 7). Nesse interlúdio, o texto fala sobre o selo de Deus posto na testa de seus servos e os 144 mil selados. O que é esse selamento? Quem é o anjo que sela? O que é o selo? Quem são os selados? Esse será o tema da próxima postagem, que vai tratar só sobre o capítulo 7 de Apocalipse.
O sétimo selo é aberto depois do interlúdio (Ap 8:1). Então, há silêncio no céu por quase meia hora. Essa meia hora provavelmente não é literal. Se usarmos o princípio dia-ano aqui, chegamos à conclusão de que quase meia hora é cerca de uma semana. O cálculo é assim: 360 dias (um ano) divididos por 24 horas é igual a 15 dias. Meia hora seriam 7,5 dias. Quase meia hora, portanto, devem representar 7 dias. Se isso estiver certo, o céu ficará em silêncio por uma semana. O que isso pode significar? É possível que o sentido seja que Jesus se levantou e saiu do céu para buscar a Igreja. Juntos foram todos os anjos e seres. Assim, o céu fica vazio e, portanto, em silêncio. Do ponto de vista simbólico isso faz sentido. Deus criou o mundo em sete dias. Parece coerente que o destrua também em sete dias. Neste caso, no sétimo dia provavelmente os salvos passarão o primeiro sábado no céu.
Resumo e Conclusão
Vimos que há quatro métodos de interpretação do Apocalipse: preterismo, futurismo, historicismo e idealismo. A maioria dos intérpretes comparados não defende o método historicista, à exceção de Isaac Newton. Nossas análises mostraram que há várias razões para interpretar tanto a série de sete cartas às igrejas da Ásia Menor como os sete selos pelo método historicista, de modo que tais séries representam períodos da Igreja cristã ao longo dos séculos. A estrutura é a mesma encontrada no livro de Daniel, obra que está intimamente ligada a Apocalipse.
A Igreja Adventista do Sétimo Dia é uma das poucas igrejas hoje em dia que ainda sustenta o historicismo para os primeiros capítulos do livro do Apocalipse. Esse método foi comum entre os protestantes desde a época da Reforma, mas caiu em declínio a partir de meados do século 19. Um dos fatores para isso pode ter sido interpretações errôneas que muitos cristãos praticaram com este modelo. Entretanto, mau uso do modelo não implica falsidade do modelo. Como demonstramos nessa postagem, há um modo bíblico e lógico de averiguar a veracidade deste modelo.
Na próxima postagem, faremos a comparação das diferentes interpretações cristãs a respeito do capítulo 7 de Apocalipse, que é uma seção muito estudada pelos adventistas do sétimo dia.
Por Davi Caldas
Fonte: Reação Adventista