Em certo sentido, somos todos judeus (queiramos ou não)

Em algum ponto remoto da história cristã, iniciou-se um processo de separação entre o judaísmo e o cristianismo. O que antes era um desenvolvimento ou uma ramificação da religião judaica tornou-se outra religião distinta. Convencionou-se, a partir daí, entender que Israel falhou em sua missão como povo de Deus, sendo substituído pela Igreja. A Igreja, portanto, seria o novo Israel.

Há tempos tenho dito que esse processo de divisão no seio do judaísmo não foi gerado por Jesus ou pelos seus discípulos, mas pelo desenrolar da história. Em outras palavras, conquanto Deus soubesse que isso iria acontecer, o evangelho pregado por Cristo e seus discípulos nunca representou uma nova religião criada por Deus. O Deus do evangelho era o mesmo Deus de Israel – e também as Escrituras, as profecias, os costumes iniciais e a espera pelo Messias. Todo o conteúdo do evangelho estava pautado na religião dos judeus. Não se tratava de outra religião, mas apenas o desenvolvimento já previsto do que hoje chamamos de judaísmo.

Indo ao encontro desse pensamento, recentemente passei a refletir sobre a supracitada teologia da rejeição de Israel e sua substituição pela Igreja de Cristo. Parece a mim que a conclusão se baseia em uma falsa comparação. Explico. Do ponto de vista espiritual, sempre houve um só povo de Deus na terra. Esse povo inclui todos os que se achegaram verdadeiramente ao Deus Criador (Yahweh), tanto antes de Israel existir, como durante e depois. Este fato independe de etnia. Um homem não se torna servo de Deus por ser descendente de determinado grupo ou ter nascido em uma nação específica. A inclusão no povo espiritual se dá de forma espiritual [1].

Quando nos fixamos nesse fato óbvio, entendemos que a formação de Israel como nação de Deus ocorre no sentido étnico/geográfico, não espiritual. Deus não estava vinculando a salvação a uma etnia ou região, mas sim levantando uma nação que pudesse preservar o monoteísmo e as suas santas verdades em meio a uma multidão de nações politeístas, moralmente degeneradas e fortemente teocráticas. A manutenção de um povo espiritual espalhado em meio a nações ímpias colocava em risco a sobrevivência do mesmo. A história do dilúvio universal e da destruição de Sodoma e Gomorra servem de exemplos para entendermos que sem um povo coeso geograficamente, com regras próprias e rígidas, e guiado diretamente por Deus, o politeísmo e a imoralidade do mundo antigo fariam extinguir todos os justos. O contexto histórico pedia uma teocracia que fizesse oposição às demais, no sentido de proteger os valores corretos.

Há, portanto, com a criação de Israel, dois tipos de povo de Deus: um povo espiritual e um povo étnico. A distinção é evidente. Era possível a um homem nascer israelita, mas sucumbir à idolatria e/ou à imoralidade. Este homem fazia parte do povo étnico de Deus, mas não do povo espiritual. Era um israelita na carne, porém não no espírito. Por outro lado, um homem sem parentesco israelita e nascido em outra nação, poderia se tornar adorador sincero de Yahweh e agir em conformidade com a sua moral. Este passava a fazer parte do povo espiritual, mesmo não sendo do povo étnico; tornava-se um israelita no espírito.

No Antigo Testamento isso pode ser observado em relação a diversos personagens, tais como Raabe (Js 2:8-13), Hirão (II Cr 2:11-12), Naamã (II Rs 5:15-17), Nabucodonosor (Dn 2:47, 3:26-29, 4:34-37), Dario (Dn 6:25-27) e Rute (Rt 1:15-18) – gentios que se tornaram seguidores do Deus de Israel. Conforme a Escritura testemunha, sempre foi vontade de Deus que os gentios se reunissem ao povo de Israel no que tange à verdade e jamais houve discriminação divina em relação aos mesmos por serem estrangeiros e não israelitas de sangue (Is 56:2-3 e 6-8; Zc 8:20-23; Ml 1:11).

Com o passar dos séculos, Israel étnico começa a ser descaracterizado. As constantes dominações retiram sua capacidade de cumprirem suas próprias leis civis. A partir daí, sua função passa a ser cumprida cada vez mais por meio da cultura. A cultura israelita solidificada é espalhada por judeus em diversas cidades pagãs. Sinagogas são formadas e outros povos entram em contato com as Escrituras Sagradas, as profecias e o modo de vida dos israelitas/judeus. Note-se, portanto, que função do Israel étnico vai se tornando menos relevante na medida em que o judaísmo se transforma mais em cultura/religião e menos em nação étnica localizada num espaço específico e com Estado teocrático.

Esse judaísmo cultural/religioso nada mais é que a religião do povo espiritual de Deus, que sempre existiu, só que agora contava com emissários de etnia judaica (motivo pelo qual passou a levar o nome desse povo). Em outras palavras, o que Deus fez foi proteger e fortalecer uma religião já existente desde Adão, através da concentração da mesma dentro do Israel étnico, até o momento em que o contexto mundial abriu a possibilidade de um espalhamento generalizado dessa religião.

O processo de perda de relevância do Israel étnico e de valorização do judaísmo como cultura e religião ganha novas cores com a vinda de Jesus Cristo. Ao preparar os seus discípulos para pregar o evangelho ao mundo todo e legar a eles uma presença especial do Espírito Santo, o Messias tornou plenamente possível a sobrevivência do povo de Deus espalhado por todas as nações. Nesse sentido, o Israel étnico deixa de ser nação exclusiva de Deus não por uma rejeição ou uma substituição pela Igreja, mas por uma mudança de contexto. Se antes apenas uma nação contava com uma maioria monoteísta e serva de Deus, agora todas tinham potencial de também sê-lo. E se antes uma nação teocrática específica era necessária para manter a religião verdadeira viva no mundo, agora a simples presença de cristãos vivendo e evangelizando em diversos lugares era suficiente para gerar o mesmo efeito.

A diferença pode parecer sutil, mas é relevante. Dizer que Israel étnico foi substituído pela Igreja é comparar coisas de categorias distintas. Israel étnico é uma nação com uma localização específica e cujos membros são ligados por laços sanguíneos. Só pode ser comparado, portanto, com outras nações. Poderíamos compará-lo hoje com a Itália ou os EUA, por exemplo. A Igreja, por sua vez, é o ajuntamento espiritual de todos aqueles que servem ao Deus verdadeiro. É o povo espiritual de Deus. Israel étnico está para o moderno Estado de Israel hoje assim como a Igreja está para o povo espiritual de Deus que sempre existiu. Essas são as relações corretas.

No sentido étnico/geográfico, nenhuma nação tomou o lugar de Israel como povo de Deus, simplesmente porque a função extinguiu-se. Era uma função temporária. Não faz mais sentido falar de nação de Deus hoje, já que o monoteísmo e as verdades de Deus são conhecidas e seguidas em diversas nações além de Israel e não há mais necessidade de uma teocracia para protegê-las. Assim, nem Israel étnico foi rejeitado por Deus, nem outra nação tomou seu lugar.

Já no sentido espiritual, a Igreja é o mesmo povo espiritual de sempre, porém em um contexto no qual o Messias já veio e seus membros estão espalhados em diversos pontos do globo. Não podemos falar em povos distintos, mas apenas em fases: uma pré-Israel étnico, uma concomitante ao Israel étnico e outra posterior ao cumprimento da missão pelo Israel étnico. Três fases, mas apenas um povo espiritual. Assim sendo, não há uma substituição ou transferência entre povos. E isso implica necessariamente que pessoas como Adão, o rei Davi, os discípulos de Jesus e o apóstolo Paulo, conquanto sejam de fases diferentes, pertencem ao mesmo povo espiritual e à mesma religião de sempre.

É por essa razão que os primeiros cristãos se consideravam, religiosamente, judeus. A religião verdadeira foi protegida pelos judeus e agora estava sendo espalhada. Não havia nada de novo. Não obstante, embora esse entendimento seja relativamente simples, a maioria dos líderes judaicos não estava disposta a aceitá-lo no primeiro século. E é aqui que começa o princípio da divisão entre judaísmo e cristianismo.

Ao longo de séculos, os líderes do povo judeu cultivaram uma visão do Israel étnico como sendo a mesma coisa que o Israel espiritual. Quando, então, os primeiros judeus cristãos começam a espalhar o evangelho ostensivamente pelas cidades e nações gentias, uma questão emerge: de que forma alguém que não tinha sangue israelita poderia fazer parte do povo espiritual de Deus? Para muitos a resposta estava no ritual da circuncisão e na guarda de toda a Torá. Quando um gentio assim o fazia, era incluído debaixo das promessas feitas a Abraão, tornando-se um israelita espiritualmente. Era como se fosse um processo de adoção. O gentio não teria sangue israelita, mas se tornaria judeu por meio do ritual de iniciação e a obediência à Torá. Os que adotaram essa visão ficaram conhecidos entre os apóstolos como “os da circuncisão”.

Os apóstolos de Cristo, entretanto, chegaram a uma conclusão radicalmente oposta. E a sua sistematização, ao longo das décadas, se baseou cada vez mais na visão lógica de que o Israel étnico não é a mesma coisa que o Israel espiritual. Paulo, sem dúvida, foi o que mais se destacou defendendo essa visão. No capítulo 2 da epístola aos Romanos, Paulo considera que se um judeu e circunciso não observa os preceitos morais da Torá, sua circuncisão nada vale. Por outro lado, se um incircunciso cumpre esses preceitos, é circuncidado espiritualmente. Conclui:

“Porque não é judeu quem o é apenas exteriormente, nem é circuncisão a que é somente na carne. Porém judeu é aquele que o é interiormente, e circuncisão, a que é do coração, no espírito, não segundo a letra, e cujo louvor não procede dos homens, mas de Deus” (Rm 2:28-29).

Paulo explicará melhor seu ponto no capítulo 3, mostrando que a vantagem do judeu e a utilidade da circuncisão eram contextuais. Para ele, as duas coisas se relacionam ao fato de que “aos judeus foram confiados os oráculos de Deus” (Rm 3:2). Trata-se de uma função temporária do ponto de vista étnico: receber e dar ao mundo. Por isso, Paulo diz no primeiro capítulo que o evangelho “é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego” (Rm 1:16). Ele está falando da função do Israel étnico. E essa função existe enquanto a Torá vigora sozinha, sem o sacrifício previsto do Messias (Rm 3:21-31).

Com o sacrifício do Messias, a função do Israel étnico se extingue juntamente com outros preceitos da Torá, que eram tipológicos [2]. É o fim da Torá como sistema completo de 613 mandamentos, mas não o seu fim no sentido de ser transgredida. Ela permanece sendo cumprida em sua plenitude por meio do sacrifício de Cristo (em seus aspectos prefigurativos messiânicos), dos preceitos morais que seguimos, das leis civis do lugar onde vivemos e dos princípios básicos de saúde e higiene, que são válidos para além de contextos históricos. E assim nos tornamos israelitas/judeus espirituais.

A absurdidade de interpretar o judaísmo étnico como igual ao espiritual estava no fato de que espiritualmente “tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado” (Rm 3:9), o que inviabiliza qualquer vantagem.

Paulo repete a mesma ideia no capítulo 9, dizendo que “nem todos os de Israel são, de fato, israelitas” (Rm 9:6). Há aqui uma clara distinção entre ser israelita no sentido étnico e ser israelita no sentido espiritual. E é justamente nessa base que Paulo se ancora para dizer que Deus não falhou em suas promessas a Israel. Se para Deus nem todos os do Israel étnico são do Israel espiritual, então as promessas de Deus não são para o país geograficamente, mas para a nação espiritual [3]. É óbvio que enquanto o povo espiritual de Deus esteve majoritariamente concentrado no Israel geográfico/étnico, as promessas para a nação espiritual casavam com as promessas para a nação física. Mas no momento em que a maioria dos judeus não aceita o Messias, espiritualmente estão deixando de serem israelitas. O assunto é tão sério que leva Paulo a dizer, no início do capítulo:

“[…] tenho grande tristeza e incessante dor no coração; porque eu mesmo desejaria ser anátema, separado de Cristo, por amor de meus irmãos, meus compatriotas, segundo a carne. São israelitas. Pertence-lhes a adoção e também a glória, as alianças, a legislação, o culto e as promessas; deles são os patriarcas, e também deles descende o Cristo, segundo a carne, o qual é sobre todos, Deus bendito para todo o sempre. Amém!” (Rm 9:2-5).

E no capítulo seguinte afirma que sua suplica a Deus é para que os judeus étnicos sejam salvos, porque eles “têm zelo por Deus, porém não com entendimento”. O seu problema era que procurando estabelecer a própria justiça, “não se sujeitaram à que vem de Deus”, pois a finalidade da Torá é Cristo (Rm 10:1-4).

Agora note que Paulo em nenhum momento afirma que Israel étnico foi rejeitado por Deus e substituído pela Igreja. Ele apenas deixa claro que a etnia e o cumprimento de velhos rituais da Torá sem Cristo não servem para a salvação. Isso é tão claro em Paulo, que no capítulo 11 ele diz:

“Pergunto, pois: terá Deus, porventura, rejeitado o seu povo? De modo nenhum! Porque eu também sou israelita da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim. Deus não rejeitou o seu povo, a quem de antemão conheceu. Ou não sabeis o que a Escritura refere a respeito de Elias, como insta perante Deus contra Israel, dizendo: Senhor, mataram os teus profetas, arrasaram os teus altares, e só eu fiquei, e procuram tirar-me a vida. Que lhe disse, porém, a resposta divina? Reservei para mim sete mil homens, que não dobraram os joelhos diante de Baal. Assim, pois, também agora, no tempo de hoje, sobrevive um remanescente segundo a eleição da graça” (Rm 11:1-5).

Em outras palavras, por mais que a função étnica de Israel tivesse sido extinta (não por rejeição, mas por previsão da própria Torá), diversos judeus étnicos tinham aceitado a Cristo. E, ademais, se o judaísmo como religião transcendia o ritual da circuncisão e incluía a aceitação do Messias como Salvador, então os gentios conversos ao evangelho pregado pelos primeiros judeus cristãos se tornavam também judeus.

É aqui que entendemos que a separação entre judeus e gentios não foi instituída por Deus, mas fabricada pelos homens. Havia uma só religião de Deus, como sempre houve. Essa visão era compartilhada por todos os autores do Novo Testamento. No Apocalipse, para citar um exemplo, João descreve Jesus Cristo repreendendo a blasfêmia dos que se diziam judeus e não eram – nas igrejas de Esmirna e Filadélfia. Os textos comparam esses falsos judeus a uma sinagoga de Satanás (Ap 2:9 e 3:9).

Ora, o livro de Apocalipse foi escrito por volta do ano 100 d.C., quando todos o processo de separação entre judeus e cristãos já estava relativamente avançado. Por que essas palavras foram usadas para se referirem a cristãos em um contexto cristão? É porque, aos olhos de Jesus Cristo (e, por conseguinte, seus apóstolos), não havia outra religião. Gentios que se tornavam cristãos nada mais eram que gentios que se tornaram judeus do “Caminho” (o nome como às vezes a crença em Jesus era chamada). Como os demais judeus, eles passavam a crer em um só Deus, nas Escrituras hebraicas, em Israel como povo étnico escolhido e no Messias que veio de Israel. Como todos os demais judeus, passavam a frequentar as sinagogas aos sábados e observar os preceitos morais da Torá e dos Profetas, que foram seguidos e elevados pelo Messias, e eram ensinados e vividos na prática pelos apóstolos.

Além disso, Jerusalém, a cidade santa, embora não tivesse mais a mesma relevância espiritual de outrora, continuou tendo relevância prática (até o ano 70 d.C., data de sua destruição), já que ali ficava o templo, boa parte dos apóstolos, boa parte dos primeiros cristãos e uma forte conexão com a cultura do povo étnico que deu origem ao evangelho.

As questões que geraram uma divisão entre judeus, judeus cristãos e gentios foram, sem dúvida, as interpretações díspares em relação à circuncisão, à Torá e ao Israel étnico. E todas essas questões se relacionam intimamente. A princípio não havia muito problema para um judeu médio aceitar Jesus como Messias. Ele cumpria as Escrituras e era por elas previsto. Assim, não era como aceitar outra religião. O problema é que aceitar o próprio Messias judaico implicava aceitar que Israel étnico cumpriu sua missão, bem como o sistema completo da Torá, incluindo o ritual da circuncisão. Em outras palavras, era entender os três fatores como meios e não fins. O fim era Cristo.

Isso gerava um problema com os rabinos, pois não era o que eles ensinavam. Também feria o orgulho étnico/cultural. Era duro o discurso de que para Deus não havia distinção espiritual entre israelitas e não israelitas, entre circuncisos e incircuncisos. Tudo isso gerava um incômodo e era explorado por muitos rabinos como uma afronta à Torá, à autoridade rabínica e ao próprio povo de Deus. Assim, não demorou para que crentes no Messias Jesus fossem compreendidos como transgressores da Torá.

O Messias Jesus em si não era o maior problema, mas sim o que a aceitação desse Jesus implicava. Daí surgiram as posições díspares. Alguns judeus aceitavam Jesus, contudo, criam que todos os 613 mandamentos da Torá continuavam em vigor e que os gentios deveriam cumpri-los (incluindo a circuncisão, que definia um judeu). Outros aceitavam Jesus e a continuidade de toda a Torá, mas só para os judeus étnicos, que continuavam sendo povo de Deus no sentido geográfico. Havia quem, estimulado por sincretismos, unia os rituais judaicos prefigurativos de Cristo com outros sistemas de rituais, sob a égide de um ascetismo forte. A maioria optava por não aceitar o próprio Messias, o que excluía qualquer tipo de judeu cristão. E tinham os que seguiam o ensino apostólico, que entendia ter se findado a função de Israel e da Torá como sistema completo (o que significava que parte era cumprida agora em Cristo).

O panorama se complica ainda mais porque a briga no interior do judaísmo étnico se expande para uma briga entre judeus e gentios. Afinal, os que impunham a circuncisão e o cumprimento inteiro da Torá, dificultavam a vida dos novos conversos e criava um preconceito mútuo. Igrejas predominantemente judaicas criavam atritos com os gentios e igrejas majoritariamente gentias criavam atritos com judeus. Nessa onda de atritos, foi se tornando comum e desejável o afastamento entre os dois grandes grupos. Gentios não queriam ser identificados como fazendo parte da religião judaica, nem judeus queriam ser entendidos como sendo da mesma religião que gentios. Um lado acusava o outro de transgredir a Torá. O outro acusava o primeiro de desprezar Jesus (fosse recusando-o ou apegando-se a rituais prefigurativos).

Com o acirramento do conflito, as posições intermediárias (judeus étnicos crentes no Messias Jesus) foram sofrendo preconceitos dos dois extremos. E algumas delas foram, de fato, se fechando em concepções heréticas (como negar os escritos do apóstolo Paulo, continuar impondo a circuncisão, etc.). Eventos como a destruição do templo judaico, a expansão do evangelho para diversas nações, a descrença geral no Israel étnico e a morte dos primeiros apóstolos e judeus cristãos, os pontos de encontro entre judeus e gentios foram se reduzindo.

Assim, um protótipo de novo cristianismo surge no fim do primeiro século, com gentios cristãos desejosos de uma nova identidade religiosa e cultural. Essa nova identidade deveria incluir novos lugares de culto, um novo centro religioso mundial (já que Jerusalém estava destruída), novos hábitos, novo dia semanal de guarda, novas festas sagradas, o abandono de símbolos judaicos e a reinterpretação das Escrituras de forma a substituir Israel pela Igreja. Deste modo, mesmo tendo raízes judaicas, o cristianismo seria uma religião nova que suplantou o judaísmo.

O judaísmo faz algo semelhante, fechando-se nas interpretações rabínicas e forjando uma religião também nova (embora com pretensão de ser a ortodoxa), na qual o Messias Jesus não teria entrada. O ato de crer em Jesus passava a ser visto como um abandono da fé judaica. As duas religiões criadas não representam, na totalidade, o que a Bíblia como um todo (por meio da Torá, os Profetas, Jesus e os Apóstolos) ensina.

Em meio à grave confusão gerada por essa grave divisão ainda no primeiro século, a pergunta que emerge é: como Deus fará para restaurar as coisas? Esse é o ponto do artigo em que mudamos levemente o foco do problema para a solução. E desta maneira nos encaminharemos para a conclusão.

Deus nunca é surpreendido pela trajetória dos fatos, é óbvio. Essa divisão era conhecida por Deus antes de ocorrer, desde sempre. Por essa razão, o Senhor estruturou toda a sua intervenção na história do mundo considerando essa rachadura e rumando para a futura restauração de sua religião. Essa conclusão pode ser deduzida pela lógica (é lógico que Deus deseja restaurar as suas verdades) e confirmada pelas profecias bíblicas, sobretudo as que foram reveladas em Daniel e Apocalipse. Tais obras escatológicas tratarão, em grande parte, do retorno a real ortodoxia.

Evidentemente, não há espaço nesse artigo para fazer uma análise completa de todas as profecias relacionadas à restauração da ortodoxia cristã. Entretanto, é possível pincelar de modo muito breve alguns pontos, de modo a dar um panorama geral ao leitor. Por exemplo, podemos dizer que as profecias apontam para a origem de um movimento cristão em algum ponto próximo do fim da história terrena que mostrará ao mundo essa ortodoxia, de maneira a influenciar muitos cristãos (Ml 4:1-6, Mt 24:14, Dn 7:25-27 e 8:12-14; Ap 7:1-3, 10:1-11, 11:19, 12:17, 14:6-7 e 14:12).

Qualquer movimento, portanto, que pretenda ser apostólico deve ter em sua estrutura a preocupação de um retorno às raízes judaico-cristãs dos apóstolos, a noção de que Deus não criou outro povo espiritual sobre a terra ou outra religião e a confirmação, nas profecias, de sua validade como mensageiro e restaurador derradeiro da doutrina bíblica em meio ao restante do povo de Deus. O resgate da verdadeira ortodoxia é uma missão profética que tem paralelo com a missão de João Batista anunciando a vinda de Cristo Jesus. O mesmo fora previsto no AT como sendo, simbolicamente, Elias. João Batista, o segundo Elias, teve a missão de aplainar o caminho para a primeira vinda do Messias, conforme o AT profetizou. De forma semelhante, um movimento aplainará o caminho para a segunda vinda, conforme toda a Bíblia prediz. É o “terceiro Elias”.

Os membros dessa página tem crido que a Igreja Adventista do Sétimo Dia se enquadra nos requisitos desse movimento. As palavras de Ellen White sobre os judeus e o mundo cristão se coadunam com a análise bíblica do problema que expusemos nesse artigo:

“Quando os judeus rejeitaram a Cristo, rejeitaram a base de sua fé. E, por outro lado, o mundo cristão de hoje, que tem a pretensão de ter fé em Cristo, mas rejeita a lei de Deus, comete um erro semelhante ao dos iludidos judeus” (Ellen G. White, Mensagens Escolhidas, p.229).

É na reunião das duas coisas que o movimento adventista tem trabalhado desde o seu início, não no sentido de criar um judaísmo messiânico ao estilo pró-circuncisão (como também houve no primeiro século e era rechaçado pelos apóstolos), mas no sentido de resgatar a ortodoxia apostólica perdida ao final do primeiro século. E ancorado total e fortemente em profecias específicas e claras que confirmam a sua validade profética, esse movimento vem cumprindo seu trabalho na história.

O adventismo não cria um novo povo, pois seus membros fazem parte do mesmo povo espiritual que Deus sempre manteve sobre a terra. O retorno à ortodoxia, portanto, não é a criação de uma nova religião e do fechamento da mensagem bíblica em um grupo exclusivista. Ao contrário, é o resgate de uma visão inclusiva. A reforma doutrinária não visa o novo, mas o eterno, o que nunca deveria ter mudado (Ap 14:6-7). Nesse sentido, Israel permanece intacto ao longo do tempo, conquanto mal compreendido. E é essa compreensão que mudará, precisamente um pouco antes da volta de Cristo.

O fim trará o entendimento de que todos os cristãos verdadeiros na verdade são parte de Israel e jamais houve rejeição de Israel por parte de Deus. Nada mudou. Temos o mesmo Deus, a mesma Bíblia, o mesmo Messias, as mesmas profecias e a mesma história. Somos o mesmo povo. Aquele que guarda os mandamentos Deus e a fé em Jesus (Ap. 12:17 e 14:12) permanece tão israelita/judeu (no sentido espiritual) quanto Pedro, Tiago, João, Paulo e o próprio Jesus foram aqui na terra. E o judeu que aceita a Jesus não está fazendo nada mais do que aceitando a maior promessa de sua própria religião. Não se deixa de ser judeu ao aceitar a Jesus Cristo. Eis a verdade que todos os apóstolos conheciam.

Embora o nome desse artigo seja diferente, ele na verdade é a conclusão da série “A invenção do catolicismo e do protestantismo”. A escolha de um título distinto se deu, em grande parte, porque o mesmo capta melhor a ideia desse texto. Ao final desses oito artigos, chegamos à compreensão de que a verdadeira ortodoxia não se encontra no calvinismo, no luteranismo ou no catolicismo romano, mas em algo mais antigo: a doutrina dos apóstolos tal como era no primeiro século. Essa doutrina não só é mais lógica como está de acordo com as Escrituras e com o judaísmo dos primeiros seguidores de Cristo.

Ao longo da história, o que Deus fez foi, gradualmente, fazer os homens retornarem a essa ortodoxia. Como adventistas do sétimo dia, nós cremos fazer parte do último movimento nesse sentido. Pode parecer “orgulhoso”. Mas e se for verdade? É algo que vale a interpretação. Com a Bíblia na mão, os princípios básicos de interpretação, a lógica e um interesse sincero em saber a verdade, podemos descobrir. Foi assim comigo um dia. Eu não fui ao adventismo. O adventismo foi até mim. E me trouxe a ortodoxia cristã. Não era o que eu queria no inicio. Mas era o que eu precisava.

___________________

Notas

1. Um exemplo clássico é o de Melquisedeque, descrito pela Bíblia como um sacerdote que reinava sobre a cidade-estado de Salém. Este homem não era israelita (Israel sequer existia), tampouco parente de Abraão. Mas ele servia a Yahweh e, por essa razão, o patriarca Abraão entregou-lhe o dízimo, reconhecendo-o como um sacerdote legítimo de Deus (Gn 14:17-20 e Hb 7:1-10). Além de Melquisedeque, todos os que viveram antes de Abraão, obviamente não eram israelitas nem descendentes de Abraão (como o próprio apóstolo Paulo aponta em Romanos 9:6-13).

2. Tipologia é um termo utilizado para se referir a práticas ritualísticas e elementos do culto judaico que, segundo a interpretação cristã, prefiguravam aspectos da vida, morte e ressurreição do Messias Jesus. O autor da epístola aos Hebreus afirma, por exemplo, que os elementos e rituais do Santuário Judaico eram “uma parábola para a época presente” e “impostas até ao tempo oportuno de reforma” (Hb 9:9-10). A vinda de Jesus acarreta o cumprimento dessas tipologias, cuja função era apenas representar o Messias prometido (Hb 9:11-14).

3. Pedro se utiliza de terminologias que eram empregadas aos israelitas/judeus étnicos para se referir ao povo cristão no geral, o que incluía judeus e gentios (II Pd 2:9-10). Ele deixa claro que está falando do Israel espiritual, pois afirma: “vós, sim, que antes não éreis povo, mas, agora, sois povo de Deus”. A etnia não pode ser mudada dessa forma. Um judeu natural sempre será um judeu natural. Mas espiritualmente falando, é possível não ser parte do povo de Deus e se tornar depois, mediante Cristo. Os termos usados por Pedro são literalmente retirados dos textos de Êxodo 19:5-6 e Deuteronômio 7:6 e 14:2, o que deixa claro que ele equipara judeus e gentios com base em Jesus Cristo, trazendo gentios para dentro de Israel. O texto de Pedro não endossa uma substituição, mas um processo de alargamento do Israel espiritual, o início de uma nova fase, mas na mesma religião e no mesmo povo espiritual de sempre.

Por Davi Caldas

Fonte: Reação Adventista

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