I Samuel 18:10 – I Reis 22:19-20
Inegavelmente nos encontramos diante de declarações que causam dificuldades aos leitores. Para boa compreensão destas passagens é necessário ter em mente os seguintes fatos:
1º) Tanto anjos bons quanto maus estão sujeitos ao poder de Deus. O próprio poder de que Satanás dispõe lhe é permitido por Deus.
2º) Veracidade destaca-se como atributo divino (Números 23:19), enquanto Satanás é o originador da mentira (João 8:44).
3º) É difícil, por vezes, transmitir em português o que os escritores bíblicos expressaram em hebraico e grego, por serem línguas com peculiaridades distintas.
Partindo do princípio que a divindade não está imbuída de nenhum espírito maléfico, a lógica determina que nenhum ente espiritual malfazejo integra a Essência Divina, logo nenhuma personalidade angelical maligna pode emanar de ‘Eli him”, precisamente o termo hebraico ocorrente em I Samuel 18.10.
O que se deve ter muito em conta nesta investigação teológica é que a expressão (em português) “da parte de” não aparece no original hebraico. O famoso interlinear de Green traz, cautelosamente, a preposição inglesa from entre parênteses, querendo com isso denotar que não pertence ao Texto Massorético.
A melhor explicação para 1 Samuel 18:10 é a que fornece o teólogo A. Neves de Mesquita em sua obra Estudos nos Livros de Samuel, quando comenta 16:14-23. Eis o que diz:
“Deus mandara tanto nos espíritos bons como nos maus. Nada escapa ao governo divino, e os demônios são usados para perseguir os que estão desviados. O mundo invisível é muito misterioso para nós que só entendemos as coisas de acordo com a vista. Pode-se entender pelo texto que Deus tanto mandou um espírito mau para Saul, como o permitiu. Tanto vale uma coisa como outra. Em Jó capítulo 1 verso 7, Deus dialoga com Satanás a respeito das atividades deste na Terra. Parece estranho, mas não é. Deus tem sob Seu domínio anjos e demônios, como tem os homens, e usa-os no Seu governo providencial, do modo que quer.”
Há uma particularidade no sistema verbal hebraico que deve ser lembrada. O chamado “hifel” é causativo, mas também é permissivo. É tarefa árdua distinguir nos escritores do Antigo Testamento o que é executado por Deus e por Ele permitido. Esta informação lança luz sobre o endurecimento do coração de Faraó.
O espírito maligno da parte de Deus significa permitido por Deus.
O comentário Adventista, vol. 4, pág. 647, afirma: “Na linguagem bíblica, muitos atos são atribuídos a Deus, não com a idéia de que Deus os executa, mas de que em Sua onipotência e onisciência, não os impede.”
A expressão “o Senhor pôs o espírito mentiroso na boca de todos os seus profetas”, de I Reis 22:23, é uma adaptação antropomórfica, que traz indestrinçável incógnita. O tal espírito pertencia às hostes do bem ou do mal?
Na exegese precedente (I Samuel 18:10) “um espírito mau” pode ser entendido: um anjo bom autorizado ou ordenado à prática de um ato mau. O anjo que sai para ferir mortalmente os primogênitos dos egípcios pertencia às potestades benéficas, comissionado a ceifar vidas humanas, para o cumprimento da justiça de Deus, foi em certo sentido um “anjo mau” da parte de Deus.
É útil o comentário de Adão Clarke sobre I Reis 22:23:
“Ele permitiu ou tolerou que um espirito mentiroso influenciasse teus profetas. É indispensável novamente lembrar ao leitor que as Escrituras reiteradamente representam a Deus como o autor daquilo que Ele, no desenrolar de Sua providência, apenas permite ou tolera que ocorra. Nada pode ser feito no céu, na terra ou no inferno, que não seja por Sua atividade imediata ou por sua permissão.”
Síntese: Muitas vezes anjos bons são solicitados a fazer o mal para a obtenção do bem. Similarmente anjos maus operam o bem para a aquisição do mal, em inumeráveis circunstâncias.