O Próximo, o distante e o ignorado

O discipulado de Jesus aponta o samaritano exemplar: o desconhecido semimorto é protegido e devidamente cuidado no anonimato. O samaritano vai embora, mas deixa marcas de bondade e solidariedade, e sai positivamente registrado para o resto dos tempos como uma das mais significativas histórias sobre compaixão, solidariedade e misericórdia. Ele é a imagem de Deus no ser finito.

Somos ensinados que podemos e devemos ajudar os outros, com gratuidade, especialmente os que sofrem violência nas sociedades não-igualitárias de nossos dias. O samaritano não deixou nome nem endereço. Soube a hora exata de entrar e sair da vida do outro, entre os milhões de anônimos vítimas de afronta e insulto nas desigualdades, afirmou João Dias no hino, “A Vil Miséria Insulta os Céus”.

O aprendizado da compaixão e da misericórdia fala no profundo do ser humano. Na verdade, a história vigora como uma denúncia do que realmente nos falta. Para o Evangelho de Jesus aquele que sangra e sofre é que importa. Vale mesmo o que a Bíblia reconhece: compaixão, ternura pelo que sofre e chora (“rahamin”). Jesus une a paixão de Deus pelos feridos e sofredores na negação de direitos fundamentais (saúde e escola de qualidade, trabalho e habitação com dignidade, por exemplo). Quem são nosso próximo ou ignorado?

Menos de 2% dos brasileiros são considerados ricos pelo IPEA (0,001% são multimilionários!). O mesmo órgão diz que 75 milhões, dos 193 totais, vivem na referência da “linha de pobreza” (23 milhões vivem na miséria). A fé cristã sugeriria que nos preocupássemos com isso? Nas igrejas “intramuros”, como quem vive em abrigos antiaéreos, afastados da realidade, como se poderá saber o quê alimenta a violência existente? Talvez o evangelho nos avive a memória lembrando que “o próximo”, o violentado e abandonado, atirado à beira da estrada, ferido de morte nas sociedades prósperas, ignorado, mereceu a manifestação do cuidado de Deus, por meio de Jesus Cristo.

Sob a força inexorável do estilo de vida, acumulação de bens e padrões de consumo, onde o luxo é aspiração comum, levantam-se fortalezas para consagrar essas diferenças. Querem o excluído à distância. Têm medo. À semelhança de quem constrói residências luxuosas superprotegidas, paredes de metal corrugado, “bunkers” sem janelas, dentro de edifícios arruinados. De que adianta sabermos que no Brasil há riqueza emergente (cf. Copa-2014), face ao que não se pode esconder? O grande desafio está nas ideologias sobre propriedade, lucro, acúmulo de riqueza e consumo do luxo, até mesmo dentro das comunidades cristãs. Um estudante de teologia afirmava, numa igreja, que a Bíblia destaca o cuidado com o pobre (“anawin”), símbolo do fraco, do órfão e da viúva; que o pobre é a preferência solidária de Deus. Ele foi rechaçado: “O sentido bíblico é espiritual…”.

A primeira questão levantada nos evangelhos diz respeito à natureza da justiça de Deus. A comunidade do “ágape” dispensava a contabilidade meticulosa dos méritos e deméritos. Antes, respondia com ilimitada generosidade na conversão ao amor. Na medida em que as comunidades foram se transformando em órgãos legisladores, essa generosidade foi cedendo lugar a formas mais calculadas de justiça eclesiástica. Começam, assim, a surgir indagações no interior da Igreja sobre a natureza do poder, sobre as qualificações do bispo ou do diácono (1Tm 3.1-13). As consequências do autoemparedamento da igreja são bem conhecidas historicamente. Pastores continuam estimulando a “prosperidade” e ascensão social pela conversão religiosa, enquanto “exigem” salários de deputados.

A mentalidade religiosa do tempo de Jesus repete-se na igreja absorvida pelo egocentrismo religioso. Converte-se em consciência fria, sem calor humano, à qual não importam as necessidades nem os direitos do ser humano. Este foi o cenário onde nasceu a parábola: um homem necessitado de ajuda, mais morto que vivo, sem direitos, violentado em sua dignidade, é abandonado pelos cumpridores da lei religiosa. Lucas informa que Jesus fez uma proposta de verdadeira opção pelos direitos do ser humano caído (Lc 10.25-37), condenado pelas estruturas sociais, políticas, econômicas e religiosas. Mateus indica o que Jesus quer dizer: a solidariedade é um valor que se antepõe aos outros (Mt 9.13). “Misericórdia quero, diz o Senhor.”

Certa ocasião, um perito na lei levantou-se para pôr Jesus à prova e lhe perguntou: “Mestre, o que preciso fazer para herdar a vida eterna?”
“O que está escrito na Lei?”, respondeu Jesus. “Como você a lê?”
Ele respondeu: ” ‘Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todas as suas forças e de todo o seu entendimento’ e ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’
Disse Jesus: “Você respondeu corretamente. Faça isso, e viverá”.
Mas ele, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: “E quem é o meu próximo?”
Em resposta, disse Jesus: “Um homem descia de Jerusalém para Jericó, quando caiu nas mãos de assaltantes. Estes lhe tiraram as roupas, espancaram-no e se foram, deixando-o quase morto.
Aconteceu estar descendo pela mesma estrada um sacerdote. Quando viu o homem, passou pelo outro lado. E assim também um levita; quando chegou ao lugar e o viu, passou pelo outro lado.
Mas um samaritano (samaritanos e judeus não se falavam), estando de viagem, chegou onde se encontrava o homem e, quando o viu, teve piedade dele. Aproximou-se, enfaixou-lhe as feridas, derramando nelas vinho e óleo. Depois colocou-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e cuidou dele.
No dia seguinte, deu dois denários ao hospedeiro e lhe disse: ‘Cuide dele. Quando eu voltar lhe pagarei todas as despesas que você tiver’.
“Qual destes três você acha que foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?”
“Aquele que teve misericórdia dele”, respondeu o perito na lei.
Jesus lhe disse: “Vá e faça o mesmo”.
Evangelho segundo Lucas, capítulo 10, versículos de 25 a 37

Derval Dasilio


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Sobre Weleson Fernandes

Evangelista da Igreja Adventista do sétimo dia, analista financeiro, formado em gestão financeira, pós graduado em controladoria de finanças, graduado em Teologia para Evangelistas pela Universidade Adventista de São Paulo. Autor de livros e de artigos, colunista no Blog Sétimo dia, Jovens Adventista. Tem participado como palestrante em seminários e em Conferências de evangelismo. Casado com Shirlene, é pai de três filhos.

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