15 Razões para guardar o Sábado – Parte 2

Na primeira parte desse texto, analisamos nove razões pelas quais acreditamos que o sétimo dia da semana, o sábado, deve ser guardado pelos cristãos. Hoje veremos os outros três pontos. E na terceira (e última) parte do texto veremos os últimos três pontos restantes. O texto foi particionado por conta de seu tamanho. Para quem não leu a primeira parte, clique aqui para ver. Quem já leu, podemos continuar.

Razão 10: As raízes judaicas da Igreja Primitiva

Os cristãos mantiveram o hábito de ir às sinagogas aos sábados durante algumas décadas (após Jesus ascender aos céus). Isso não é, à priori, uma prova cabal de que eles guardavam o sábado. Muitos cristãos não sabatistas tem alegado, com razão, que o hábito poderia ser uma estratégia para alcançar judeus. Por ouro lado, a continuação dos hábitos judaicos comuns pelos cristãos é um indício de que a cisão entre o judaísmo e o que veio a se chamar cristianismo posteriormente não foi imediata.

Os primeiros cristãos eram judeus e continuaram se sentindo judeus. Cristo não representava, para eles, o fundador de uma nova religião, mas o Messias Judaico. Assim, era natural continuar guardando o sábado, indo à sinagoga, lendo as Escrituras Judaicas e cumprindo seus mandamentos. Também os gentios não enxergavam esses primeiros cristãos como membros de uma nova religião, mas como judeus comuns, freqüentadores de sinagogas e guardadores do sábado.

O evangelista Lucas, por exemplo, não era judeu natural. Escrevendo seu evangelho pelo menos 30 anos após a morte de Cristo, afirma que as mulheres que acompanharam a condução do corpo de Cristo até o túmulo “se retiraram para preparar aromas e bálsamos. E, no sábado, descansaram segundo o mandamento” (Lucas 23:56). É de se estranhar que Lucas, um não judeu, historiador detalhista, escrevendo para um homem também não judeu (Teófilo), três décadas após os eventos descritos, não tenha enfatizado que o tal mandamento era para os judeus da época. Sua descrição é tão curta, natural e pouco explicativa que a impressão que temos é que o mandamento citado não era ultrapassado, mas continuava em vigor e era conhecido.

O mesmo Lucas, autor do livro bíblico Atos dos Apóstolos, menciona a ida de cristãos em sinagogas judaicas de pelo menos oito cidades pagãs: Damasco (At 9:2), Salamina (At 13:5), Antioquia (At 13:14), Icônio (At 14:1), Tessalonica (At 17:1-4), Bereia (At 17:10), Atenas (At 17:16-17), Corinto (At 18:1-4) e Éfeso (At 18:19). O historiador também cita o costume de Paulo e seus companheiros dedicarem o sábado a Deus nas sinagogas (At 13:16, 13:42-22, 17:1-3 e 18:1-4). O apóstolo Paulo, aliás, quando trabalhou confeccionando tendas em Corinto, disponibilizava justamente o sábado para pregar o evangelho o dia inteiro. E mesmo após se irritar com judeus incrédulos e dizer que a partir dali focaria nos gentios (At 18:6), ele torna a pregar em sinagogas, na cidade de Éfeso, permanecendo ali por dois anos e convertendo tanto judeus naturais quanto gregos que iam à sinagoga (At 18:18-19 e 19:8-10).

Em Filipos, alguns anos antes de Paulo ir para Éfeso, uma passagem enfatiza que Paulo e seus companheiros ficaram em Trôade por alguns dias e que no sábado sairam do centro da cidade, procurando algum lugar calmo, apropriado para oração (At 16:11-13). A julgar pelo costume de Paulo e os demais cristãos, se houvesse sinagoga na cidade, eles teriam ido a ela, o local mais apropriado para oração, por sinal. Trôade não devia contar com uma sinagoga, o que levou aqueles crentes a desejarem sair do movimento da cidade, indo para um local isolado. É curioso que Lucas enfatize o fato de ser sábado neste dia. O fato não parece ter muita importância para a narrativa, a não ser que se considere que aquele dia era realmente distinto dos demais.

Ainda sobre Paulo, suas defesas contra acusações de judeus incrédulos também denotam uma forte sintonia com os hábitos judaicos. Ele reafirma seu judaísmo étnico e suas raízes religiosas judaicas (At 22:3); considera-se fariseu (At 23:6); afirma estar sendo julgado apenas por crer na mesma coisa que criam seus acusadores: a ressurreição dos mortos (At 23:6); ressalta que acredita em tudo o que está na lei e nos profetas, incluindo a ressurreição – tal como os fariseus que o acusavam (At 24:14-15); deixa claro que foi pego por seus oponentes sem estar transgredindo a lei, desempenhando ainda uma prática judaica (At 24:17-19) e torna a dizer que está sendo julgado apenas por crer na ressurreição (At 24:20-21).

Em Atos 25:7, vários judeus incrédulos rodeiam o apóstolo e o acusam, perante o governante romano Festo, de várias transgressões que não podiam provar. Paulo responde, no verso 8: “Nenhum pecado cometi contra a lei dos judeus, nem contra o templo, nem contra Cesar”. Continua nos versos 10 e 11: “Estou perante o tribunal de César, onde convém seja eu julgado; nenhum agravo pratiquei contra os judeus, como tu bens sabes. Caso, pois, tenha eu praticado algum mal ou crime digno de morte, estou pronto para morrer; se, pelo contrário, não são verdadeiras as coisas de que me acusam, ninguém, para lhes ser agradável, pode entregar-me a eles”.

Fica claro que Paulo tinha a convicção sincera de não estar transgredindo ponto algum do judaísmo. Sua visão, como a dos demais cristãos, não era a de um rompimento com a religião judaica e a aceitação de uma nova religião. Era, sim, da manutenção de uma mesma religião, mas agora com a revelação plena do Messias. Podemos ver esse mesmo senso de pertencimento à religião judaica no apóstolo Pedro. Em Atos 10, quando Pedro tem a visão dos animais imundos e Deus lhe ordena que se alimente deles, responde: “De modo nenhum, Senhor! Porque jamais comi coisa alguma comum ou imunda” (At 10:14). A visão era uma parábola, conforme a continuação do capítulo 10 e o capítulo 11 demonstram. Os animais imundos simbolizavam os gentios e a instrução da parábola era que os judeus deveriam pregar o evangelho a estes, sem distinção. Para os propósitos deste post, contudo, o que importa é enfatizar que Pedro continuava guardando a dieta alimentar judaica.

O apóstolo João também dá indícios de que ainda se sentia um judeu (ou que Jesus queria que ele se sentisse assim). Em Apocalipse 2:9 e 3:9, descrevendo as palavras que recebeu de Jesus, utiliza os termos “Sinagoga de Satanás” e “judeus que a si mesmo se declaram judeus e não são” para criticar uma classe de desobedientes. O Apocalipse, aliás, está repleto de termos e conceitos judaicos advindos dos livros proféticos do Antigo Testamento. Parece haver não só uma visão do judaísmo como a religião dos primeiros cristãos como um cuidado, sobretudo nesses dois textos, de mostrar aos cristãos que eles não deveriam perder suas raízes judaicas. Não nos referimos, claro, aos erros, preconceitos e tradições humanas que se infiltraram no judaísmo, mas sim daquilo que compunha, de fato, o conjunto de princípios dados por Deus ao povo judeu. Embora Deus já não tivesse um povo no sentido étnico, com uma pátria, uma língua e um governo teocrático, o judaísmo como religião permanecia.

O apóstolo Tiago, irmão de Jesus, também demonstrava manter fortes laços com o judaísmo. Quando Paulo foi até Jerusalém, após alguns anos de missão, ouviu dele e dos presbíteros da Igreja de lá: “Bem vês, irmão, quantas dezenas de milhares de judeus que creram, e todos são zelosos da lei” (At 21:20). É evidente, como a própria continuação desse texto indica, que entre os judeus crentes em Cristo havia muitos judaizantes. Estes não entendiam que, conquanto a religião permanecesse a mesma, alguns preceitos ritualísticos haviam deixado de vigorar, por previsão da própria lei judaica, em função do sacrifício de Cristo. Isto não era uma quebra da lei ou uma abolição do judaísmo, mas apenas o cumprimento de uma previsão que estava de acordo com a Lei e os Profetas. Era por isso que Paulo se sentia confortável em dizer que não transgredia qualquer lei judaica e permanecia judeu. Era verdade, não mera estratégia mentirosa para se livrar de condenações.
O problema é que os judaizantes não entendiam assim. Para eles, Paulo ensinava a transgressão da lei (At 21:21) e o boato acabava sendo comprado por grande parte da Igreja de Jerusalém, além dos judeus incrédulos.

O próprio Tiago, no entanto, não era um judaizante. No primeiro grande concílio da Igreja Cristã, em Jerusalém, apóstolos, presbíteros e alguns nomes importantes entre os primeiros cristãos se reuniram para discutir se a circuncisão deveria ser requerida dos gentios para a salvação. Aparentemente, Jesus não havia deixado qualquer observação quanto a isso e grande controvérsia estava ocorrendo entre os partidários da circuncisão para salvação e os adeptos da incircuncisão (At 15). Houve um grande debate nesse concílio, mas ao fim dos testemunhos de Pedro, Paulo e Barnabé à favor da não necessidade de circuncisão, Tiago, como líder da Igreja em Jerusalém, tomou a palavra final e também votou pela desobrigação do rito aos gentios conversos (At 15:13-21). Mas, apesar de não judaizante, Tiago permaneceu judeu. São dele as contundentes palavras:

“Se vós, contudo, observai a lei régia segundo a Escritura: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’, fazeis bem; se, todavia, fazeis acepção de pessoas, cometeis pecado, sendo arguidos pela lei como transgressores. Pois qualquer que guarda toda a lei, mas tropeça em um só ponto, se torna culpado de todos. Porquanto, aquele que disse: ‘Não adulterarás’ também ordenou: ‘Não matarás’. Ora, se não adulteras, porém matas, vens a ser transgressor da lei. Falai de tal maneira e de tal maneira procedei como aqueles que hão de ser julgados pela lei da liberdade” (Tg 2:8-12).

A exposição deste pano de fundo nos ajuda a visualizar melhor como o afastamento entre judaísmo e cristianismo foi muito gradual nas primeiras décadas após a ascensão de Cristo e que não havia uma identidade cristã própria e plenamente desconectada do judaísmo na Igreja. A Igreja das primeiras décadas era formada basicamente por judeus, por gentios freqüentadores de sinagogas e judaizantes. As sinagogas continuaram sendo o local de adoração de muitos cristãos e foi também, por bastante tempo, o principal local de pregação do evangelho, onde eram alcançados judeus e gentios. O ponto de encontro entre o evangelho e os gentios era justamente às sinagogas plantadas nas cidades pagãs.

Os cristãos aproveitavam as sinagogas judaicas para pregar justamente porque ainda se sentiam judeus e entendiam que pregar Jesus nas sinagogas não era pregar outra religião, mas apenas anunciar as boas novas do Messias Judaico. Era tão natural quanto alguém hoje ir a uma igreja de outro país e ler a Bíblia. Seria estranho, no entanto, fazer isso numa Mesquita islâmica.

O cenário da igreja do primeiro século é um cenário majoritariamente judaico. Se fosse preciso dar um nome à Igreja desse período, esse nome deveria ser “Igreja Católica Apostólica Judaica”, cuja sede, obviamente, era a Congregação em Jerusalém, na qual os apóstolos ficaram durante muito tempo. E é por isso que a guarda do sábado durante esta época foi (com alta probabilidade histórica) algo bastante natural e intuitivo. Na Igreja de Jerusalém, conforme o próprio texto de Atos afirma, havia dezenas de milhares de judeus crentes zelosos da lei. Ou seja, guardavam o sábado e freqüentavam sinagogas. Os gentios crentes de lá, portanto, certamente faziam o mesmo. O hábito ainda era seguido por todos os judeus e gentios crentes das cidades pagãs que mantinham sinagogas, conforme também os textos apontam.

Não há qualquer indicação que nessa época, pelo menos até o ano 70 d.C., tenha havido qualquer grande controvérsia sobre a questão do sábado. O que é estranho. Embora não possamos tomar o silêncio como uma prova irrefutável, o fato é que se o sábado realmente foi abolido, era de se esperar uma enorme controvérsia sobre o tema como reflexo. O sábado era, para os judeus do primeiro século, um mandamento/sinal mais importante até que a circuncisão. Fortemente influenciados pelo farisaísmo, os judeus desta época guardavam o sábado com tanto cuidado à ponto de seguirem regras extrabíblicas para evitar sua transgressão. Ademais, o sábado era o símbolo que melhor destacava os judeus para os gentios. Qualquer mudança nesse mandamento provocaria uma avalanche teológica na igreja. No entanto, o sábado não é mencionado como alvo de controvérsia no Concílio de Jerusalém, em Atos 15, ou em algum livro do Novo Testamento de maneira clara, enfática e repetitiva. O silêncio parece indicar fortemente que não havia qualquer controvérsia e todos seguiam o sábado normalmente, incluindo gentios crentes, já que adoravam, em sua maior parte, com os judeus, nas sinagogas.

À título de comparação, a polêmica da circuncisão não só mostrou seus reflexos em Atos 15, como também em Atos 16:3 e 21:21; Romanos 2:25-29, 3:30, 4:9-12; I Coríntios 7:18-19, Gálatas 2:12, 5:2-11 e 6:12-15, Filipenses 3:2-5, Colossenses 2:11-13, 3:11 e Tito 1:10. Não há dúvida de que essa foi a maior polêmica da Igreja em suas primeiras décadas. O sábado, no entanto, como mandamento do decálogo e hábito generalizado, continuou sendo seguido sem problemas grandes o suficiente para se refletirem em cartas e documentos escritos. A guarda do sábado era tão habitual, cremos, como hoje é habitual para a maioria dos cristãos ir à Igreja aos domingos e natural para qualquer recém converso usar esse dia para dedicar mais tempo à vida espiritual, à família e ao descanso.

Razão 11: Os apóstolos não desprezavam a lei

Ao contrário do que comumente se alega hoje, os apóstolos não desprezavam a lei. A ideia de que Jesus anulou a lei é estranha ao Novo Testamento. O que o Novo Testamento fala sobre a lei, especificamente Paulo, deve ser entendido dentro do seguinte contexto: Jesus não deixou formulada uma teologia sistemática, com um sistema religioso já fechado e todos os conceitos e termos já definidos. O que Jesus fez foi deixar princípios, exemplos, explicações sobre profecias e avisos sobre erros interpretativos dos fariseus. No mais, Jesus se preocupou curar pessoas, pregar o reino de Deus, preparar os discípulos para a prática missionária, morrer, ressuscitar e ascender aos céus. Isso quer dizer que quando Jesus deixou a terra, a teologia cristã não tinha a menor sistematização.

Paulo talvez tenha sido o primeiro a tentar dar um ponta pé inicial no desenvolvimento de um sistema teológico coeso. Um dos conceitos que procurou trabalhar foi o da função da lei. O apóstolo procurou demonstrar que: (1) a lei não pode salvar ou purificar, apenas mostrar o erro; (2) a salvação é concedida por graça de Deus, mediante a fé em Jesus Cristo, que se sacrificou por nós; (3) boas obras e obediência são importantes, mas não geram mérito para que sejamos salvos; (4) boas obras e obediência são frutos esperados naqueles que aceitaram a salvação de Cristo e a purificação do Espírito Santo; (5) devemos ser bons porque somos servos de Cristo e não mais do pecado; (6) não devemos nos aproveitar do fato de Jesus nos ter arrancado da condenação imposta pela lei aos pecadores para nos voltar ao pecado; (7) os rituais do templo findaram suas funções com o sacrifício de Cristo, nosso Cordeiro.

O apóstolo criou seus próprios termos, expressões e analogias para desenvolver essas ideias e procurou ser claro, primeiramente, para aqueles que viviam à sua época. Ele possuía seu próprio estilo, arcabouço teórico e prático, visão de mundo e modo de se expressar. Nada diferente de todos os outros autores. Cada qual se expressa à sua maneira. Embora o Espírito Santo que os inspire e conduza seja o mesmo, inspiração não é ditado e inspirados não possuem a mente divina. Deus comunicou as suas verdades por meio de homens distintos e dentro de suas características, cosmovisões e limitações espaço-temporais. Assim, é natural encontrar enfoques, termos e modos de expressão distintas entre os autores do Novo Testamento. Conquanto a essência do que disseram seja a mesma e não se contradiga, é trabalho dos teólogos posteriores unir todo o arcabouço de escritos e ensinos deixados e transformar em uma única teologia sistemática. O trabalho de sistematização durará por séculos e continuará sempre a se renovar.

Uma vez que se entende isso, compreendemos que Tiago não contradiz Paulo ao dizer que o homem era justificado pelas obras (Tiago 2:14-26), enquanto Paulo ensinava que era pela fé (Rm 4:2-5, Fl 2:8-9 e Gl 3:6-22). Parecem duas teologias opostas, mas o que há aqui são enfoques e sentidos diferentes para termos semelhantes. Paulo refere-se à mérito. Seu combate era à ideia de salvação por mérito (fosse por cumprir mandamentos morais ou rituais). Sua luta era contra tendências que colocavam outras coisas no lugar de Cristo. Tiago, no entanto, está lutando contra cristãos malandros que pretendiam só crer, mas não praticarem boas obras. Ele não toca na questão do mérito, apenas ressalta que uma fé verdadeira deveria estar acompanhada de obras. E Paulo concordava com isso. Em passagens como Tito 1:16 e Filipenses 2:10, Paulo ressalta como as boas obras são elemento essencial na fé e testificam se ela é verdadeira ou não. Logo, um homem salvo pela fé necessariamente é um homem cheio de boas obras.

Também entendemos que Paulo não contradizia João ao dizer diversas vezes que não estamos debaixo da lei (Rm 6:12-15, 3:19, Gl 3:23, 4:21 e 5:18), enquanto João diz em sua primeira epístola: “Todo aquele que pratica o pecado também transgride a lei, porque o pecado é a transgressão da lei [anomia]” (João 3:4). Para Paulo, a expressão “debaixo da lei” (ou “na lei”, numa tradução mais literal) significava algo como “dentro da condenação da lei”, ou “debaixo do jugo da lei”, ou “debaixo do domínio condenatório da lei”, ou ainda “dentro do período/sistema em que a lei condenava e Jesus ainda não tinha concretizado a salvação na cruz”. Foi o termo que ele achou melhor para expressar essas ideias. Não queria dizer que ele pensava que todos os princípios da lei tinham sido abolidos e que, portanto, estamos fora da lei no sentido de não existir mais lei alguma.

O apóstolo cria claramente na vigência do decálogo (Rm 13:9, Ef 6:2 e I Co 7:18-19), asseverava que quem se mantinha na transgressão dos mandamentos morais de Deus, que são derivados do decálogo, não entraria no Reino de Deus (I Co 6:9-10 e Gl 5:19-21) e também acreditava, logicamente, no pecado. Pecado quer dizer errar o alvo. João definia pecado como “anomia” (“a” = prefixo de negação + “nomia”, derivado de “nomos” = lei). Ou seja, um estado em que se vive como se não houvesse lei.

Ora, se a função da lei é mostrar o certo e o errado, segundo Paulo, então viver como se não houvesse lei é viver como se não houvesse certo e errado, isto é, como se não houvesse alvo para acertar. É, portanto, viver em pecado. Se Paulo cria no conceito de pecado, cria no conceito de alvo para acertar. Logo, cria numa lei, tal como João. O discípulo João, por sua vez, tal como Paulo, acreditava fortemente nos mandamentos do decálogo. Em sua I Epístola, afirma:

“E nisto sabemos que o conhecemos; se guardamos os seus mandamentos. Aquele que diz: Eu o conheço, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso, e nele não está a verdade; mas qualquer que guarda a sua palavra, nele realmente se tem aperfeiçoado o amor de Deus. E nisto sabemos que estamos nele; aquele que diz estar nele, também deve andar como ele andou” (I João 2:3-6).

João ainda irá insiste na importância de se guardar os mandamentos morais de Deus em nas passagens 3:22-24 e 5:2-3 de sua primeira epístola e também II João 1:5-6. Já no seu livro de Apocalipse, João ressalta por duas vezes que os santos perseverantes do Senhor são aqueles que “guardam os mandamentos de Deus e a fé em Jesus” (Ap 12:17 e 14:12). É verdade que João costuma a usar a fórmula resumida do decálogo, que foi ensinada por Jesus (Mt 22:36-40 e Mc 12:28-34). Mas essa fórmula de Jesus, longe de anular o decálogo, apenas demonstra que o mesmo possui dois mandamentos principais da Torá que lhe servem de base. Assim, um judeu que observe os dois, automaticamente observará todo o decálogo e mais todas os mandamentos morais que se desdobram a partir do decálogo, desde não assassinar até não odiar.

Interessante é que a descrição feita pelo evangelista Marcos nos traz uma prévia do que os autores do Novo Testamento discutiriam sobre a lei décadas mais tarde. Após Jesus responder quais eram os dois mandamentos-base de todo o conjunto de leis da Torá, o escriba que o interpelou disse: “Muito bem, Mestre. Com verdade disseste que ele é um, e fora dele não há outro; e que amá-lo de todo o coração, de todo o entendimento e de todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo, é mais do que todos os holocaustos e sacrifícios” (Mc 12:32-33). Marcos continua sua descrição da cena: “E Jesus, vendo que havia respondido sabiamente, disse-lhe: ‘Não estás longe do reino de Deus’. E ninguém ousava mais interrogá-lo” (Mc 12:34). O leitor percebe? Jesus já deixava uma pista de que a discussão posterior seria mandamentos morais x sistema sacrificial – o qual se relacionava intimamente com as festas e feriados judaicos.

Que Jesus Cristo demonstrou grande reverência pelo decálogo fica claro nas passagens que descrevem o diálogo com o jovem rico (Mt 19:16-19, Mc 10:17-19 e Lc 18:18-20), no sermão do monte (Mt 5:17-20) e na última ceia com seus discípulos (Jo 14:15-21 e Jo 15:9-10). Sobre o diálogo com o jovem rico, aqui temos mais um exemplo de como a Bíblia não pode ser interpretada como se seus autores tivessem se reunido para fazer uma teologia sistemática. O jovem pergunta a Jesus o que deveria fazer para ganhar a vida eterna. Jesus responde que ele deveria guardar os mandamentos. À primeira vista, pode parecer que Cristo está ensinando aqui a salvação pelas obras. Mas não é isso. A guarda dos mandamentos não gera méritos para salvação. Ela é apenas o produto de um coração que ama a Deus e crê nos méritos do sacrifício de Cristo.

A resposta de Jesus deve ser entendida de acordo com o que o rapaz realmente desejava saber. O jovem queria saber qual era a sua parte no processo de salvação. Embora seja Cristo quem nos salva e o Espírito que nos purifica e dá força contra o pecado, há uma parte que cabe a nós: aceitar a salvação e o trabalhar do Espírito em nós. Deus acende a luz e nos oferece ajuda para sair do pecado e cumprir seus mandamentos. Mas não nos força a isso. Ele restaura nosso poder de decisão e a coloca em nossas mãos. Cabe a nós decidirmos se queremos ser salvos e se vamos caminhar segundo o seu Espírito Santo, procurando cumprir seus mandamentos. Era isso o que o jovem queria saber: que parte cabia a ele? O que ele deveria fazer? Havia algum mandamento especial? Havia algum requerimento que ele não conhecia? Até mesmo algum ritual, quem sabe? Exatamente o que ele deveria/poderia fazer? A resposta de Jesus é objetiva: “Você conhece quais são os mandamentos”.

Embora fosse isso o que o jovem queria saber (e Jesus respondeu exatamente aquilo que o jovem perguntou), Cristo sabia que o problema do moço rico não era conhecer o que a lei dizia e tentar segui-la. O problema do moço era seu grande amor às riquezas, o que não deixava de ser uma transgressão ao primeiro mandamento do decálogo. O jovem amava a Deus, mas amava igualmente (ou até mais) o dinheiro. E com esse problema, ele não estaria preparado jamais para aceitar a Cristo incondicionalmente. Aceitaria só até onde fosse conveniente ou da forma como fosse conveniente. Por essa razão, quando o moço rebate dizendo que já guardava os mandamentos, Jesus afirma que ainda faltava ele vender tudo o que tinha e seguir a Jesus. Era uma prova. Cristo estava querendo dizer: “Você realmente guarda os mandamentos? Realmente ama a Deus sobre todas as coisas? Então, por amor a Deus, largue seu dinheiro, que você tanto ama e me siga”.

O jovem percebeu, com a resposta de Jesus, que não amava tanto a Deus assim e que tampouco que era totalmente fiel aos mandamentos de Deus. O ponto crucial aqui é que aquele jovem falhava naquilo que dizia cumprir. Mas o seu remédio não era buscar uma maior fidelidade aos mandamentos. Era sim abrir-se para amar mais a Cristo. Porque é a fé e o amor a Cristo que nos dão a capacidade de sermos mais obedientes. Isso não é uma teologia da salvação por obras. Afinal, abrir-se para Cristo é apenas aceitar o seu convite e estar disposto a fazer a sua vontade. A salvação e a força do Espírito Santo são dadas por Deus e não encontradas em nós mesmos.

Em suma, Jesus sempre demonstrou que o decálogo era extremamente importante para a vida de um cristão. Então, era por isso que tanto João, quanto Paulo, criam na vigência dos mandamentos de Deus e do decálogo, o que nada mais é que parte da lei.

Apesar disso, o modo como Paulo usava a palavra “lei” variava. Em I Coríntios, por exemplo, Paulo chega a dizer que não vive sem lei perante Deus, mas está sob a lei de Cristo (I Coríntios 9:21). Trata-se de uma clara tentativa de distinção entre rejeitar toda a Torá e rejeitar apenas a parte ritualística da Torá que se tornou obsoleta. A “lei de Cristo”, portanto, é a expressão que Paulo criou nessa carta para ratificar que ele ainda cria na parte moral da Torá, que foi reafirmada por Cristo na Nova Aliança. Já na carta de Romanos, Paulo cria as expressões “lei do pecado” e “lei do Espírito da vida” (Rm 7:23-25 e 8:2), já para explicar outros aspectos da relação entre a vida no contexto em que só havia lei e a vida no contexto em que Jesus nos salva e nos dá o seu Espírito.

Também em Romanos, há um trecho em que Paulo procura mostrar, à sua maneira, que não está contra os mandamentos morais, mas à parte ritualística que que tinha a ver com o sacrifício de Cristo. Ele afirma:

“Se, porém, tu, que tens por sobrenome judeu, e repousas na lei, e te glorias em Deus; que conheces a sua vontade e aprovas as coisas excelentes, sendo instruído na lei; que estás persuadido de que és guia dos cegos, luz dos que se encontram em trevas, instrutor de ignorantes, mestre de crianças, tendo na lei a forma da sabedoria e da verdade; tu, pois, que ensinas a outrem, não te ensinas a ti mesmo? Tu, que pregas que não se deve furtar, furtas? Dizes que não se deve cometer adultério e o cometes? Abominas os ídolos e lhes roubas os templos? Tu, que te glorias na lei, desonras a Deus pela transgressão da lei? Pois, como está escrito, o nome de Deus é blasfemado entre os gentios por vossa causa. Porque a circuncisão tem valor se praticares a lei; se és, porém, transgressor da lei, a tua circuncisão já se tornou incircuncisão. Se, pois, a incircuncisão observa os preceitos da lei, não será ela, porventura, considerada como circuncisão? E, se aquele que é incircunciso por natureza cumpre a lei, certamente, ele te julgará a ti, que, não obstante a letra e a circuncisão, és transgressor da lei. Porque não é judeu quem o é apenas exteriormente, nem é circuncisão a que é somente na carne. Porém judeu é aquele que o é interiormente, e circuncisão, a que é do coração, no espírito, não segundo a letra, e cujo louvor não procede dos homens, mas de Deus” (Romanos 2:17-29).

Aqui Paulo demonstra que o problema não está em seguir o decálogo. Ao contrário, o apóstolo mostra que seguir o decálogo é muito importante e o foco de seu ensinamento é mostrar que a observância dos mandamentos morais está acima da circuncisão. Paulo chega ao ponto de dizer que um circuncidado que não guarda o decálogo é incircunciso, ao passo que um incircunciso que guarda o decálogo é o verdadeiro circuncidado. E ele vai dizer ainda que ser judeu não é simplesmente ter uma marca externa; o verdadeiro judeu é aquele que obedece a Deus na prática e não aquele que apenas detém a teoria. É o mesmo ensino de Tiago, quando afirma que não basta apenas ser ouvintes, é preciso ser praticante da Palavra (Tiago 1:22).

A concepção do apóstolo Paulo sobre o decálogo (e a lei moral no geral) era bastante favorável. Embora seu ensino fosse de que os mandamentos não salvam, nem purificam, apenas demonstram nossos erros, ele não deixa de afirmar que a lei não é pecado (Rm 7:7), que ela é santa e que seus mandamentos (tal como o de “não cobiçar”) são santos, justos e bons (Rm 7:12). Ele também faz questão de dizer que a lei é espiritual e que o ser humano é que é carnal (Rm 7:14). Ele diz ainda que a lei é boa (Rm 7:16) e que, embora ele não consiga seguir a lei com sua própria força (pois é pecador), ele tem prazer nela (Rm 7:22).

O único problema da lei, segundo o apóstolo Paulo, é que ela não tem como fazer o pecador segui-la. Mas Paulo ensina que esse problema é resolvido por Jesus Cristo:

“Porquanto, o que fora impossível à lei, no que estava enferma pela carne, isso fez Deus enviando o seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa e no tocante ao pecado; e, com efeito, condenou Deus, na carne, o pecado, a fim de que o preceito da lei se cumprisse em nós, que não andamos segunda a carne, mas segundo o Espírito (Rm 8:1-4).

“A fim de que o preceito da lei se cumprisse em nós”. Essa é a chave para entender a relação entre o Espírito Santo e a lei. O grande ensino de Paulo em relação a isso não era que a lei fosse inútil e ultrapassada, mas que não tinha função purificadora. Paulo só coloca cada coisa no seu devido lugar. Jesus salva e nos religa ao Pai. O Espírito Santo nos ajuda a cumprir a lei. E a lei se limita a mostrar o que é certo e o que é errado para que não erremos o alvo (isto é, para que não pequemos). Andar no Espírito não é andar fora da lei no sentido de não haver mais lei, mas andar dentro da lei moral e fora de um sistema legal sem o sacrifício Cristo, o qual é inútil. É exatamente essa teologia que Paulo desenvolve melhor em II Coríntios 3:

“Vós sois […] manifestos como carta de Cristo, ministrada por nós, e escrita, não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne do coração” (II Coríntios 3:2-3).

Aqui Paulo faz alusão a uma passagem do Antigo Testamento em que Jeremias fala sobre o a Nova Aliança de Deus com os homens. Nessa passagem, vemos Deus dizer o seguinte: “Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o SENHOR: Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo” (Jr 31:33). Essa inscrição das leis no coração é exatamente o que o Espírito Santo faz. Só Ele é capaz de inscrever em nosso coração aquilo que está escrito nas tábuas da lei. A diferença entre as duas coisas é ressaltada por Paulo nesse texto, na passagem de Romanos que descrevemos há pouco e por Tiago. Enquanto a lei está apenas nas tábuas de pedra, conhece-la não nos ajuda em nada, nem nos torna verdadeiros judeus. A partir do momento em que essa mesma lei é interiorizada, por meio do Espírito Santo, aí deixamos de ser meros ouvintes.

Paulo, portanto, elogia os cristãos de Corinto dizendo que eles passaram de ouvintes para praticantes. Há aqui uma contraposição ao judeu hipócrita descrito por Paulo em Romanos, que detinha a lei escrita, mas não a cumpria. Os cristãos de Corinto saíram desse estágio. A partir desse elogio, Paulo esboça um ensinamento teológico à respeito da superioridade da Nova Aliança. Continua:

“E é por Cristo que temos tal confiança em Deus; não que sejamos capazes, por nós, de pensar alguma coisa, como de nós mesmos; mas a nossa capacidade vem de Deus, o qual também nos capacitou para sermos ministros dum novo pacto, não da letra, mas do espírito; porque a letra mata, mas o espírito vivifica (II Coríntios 3:4-6).

Essa é uma das passagens mais mal interpretadas do Novo Testamento. Muitos pensam que Paulo aqui está criticando aqueles que dão muito importância à Bíblia, ao que está escrito. Estes seriam legalistas e sem Espírito. Outros sustentam que Paulo está tecendo uma crítica à lei, criando uma oposição “Lei x Espírito”. As duas estão erradas.

Quando Paulo afirma que ele e seus companheiros são ministros de um novo pacto, que não é da letra, está dizendo que eles aceitaram a Nova Aliança, na qual a letra da lei é inscrita pelo Espírito Santo nos corações dos seus servos. A letra mata não porque ler a Bíblia Sagrada e seguir a lei moral matem o homem. Na realidade, para ser exato, é justamente o oposto: não ler a Bíblia Sagrada e não seguir a lei moral é que matam o homem (espiritualmente). O que Paulo quer dizer com “a letra mata” é que quando você pega a Bíblia Sagrada ou o decálogo e lê, por exemplo, “Não cobiçarás”, você se lembra que já cobiçou no passado ou que está lutando contra a cobiça ainda. E qual é a punição para isso? A morte eterna. Porque o salário do pecado é a morte. E a letra que te diz isso pode te livrar desse destino? Não. Ela pode ao menos de ajudar a não mais transgredir a lei? Também não. Então, ela apenas te mata.

O problema não está na letra, evidentemente, mas em você. Você é o pecador. A letra mata o pecador porque aponta o pecado e afirma que o pecado é passível de morte. Ela é a condenação formal do homem, por culpa do homem e não dela. Entretanto, o Novo Pacto traz a cruz de Cristo e o seu Espírito, de modo que a condenação da letra já não pode mais operar sobre o pecador arrependido que aceitou o pacto. “Portanto, agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o Espírito. Porque a lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte” (Rm 8:1-2). É isso que Deus quer dizer com “a letra mata, mas o Espírito vivifica”. O Espírito faz o que a letra não pode fazer. Nem por isso a letra deixa de ter sua função e importância. Paulo continua:

“Ora, se o ministério da morte, gravado com letras em pedras, veio em glória, de maneira que os filhos de Israel não podiam fixar os olhos no rosto de Moisés, por causa da glória do seu rosto, a qual se estava desvanecendo, como não será de maior glória o ministério do espírito? Porque, se o ministério da condenação tinha glória, muito mais excede em glória o ministério da justiça” (II Coríntios 3:7-9).

Aqui o apóstolo Paulo cria mais duas expressões novas (ou quatro, se preferir) que ele julgou interessantes para essa carta: “ministério da morte/condenação” e “ministério do Espírito/justiça”. O primeiro se refere à antiga aliança. Mais uma vez deve-se ressaltar que a crítica de Paulo não é ao decálogo. Ele chama a antiga aliança de ministério da morte/condenação não porque ela fosse ruim ou não viesse de Deus, mas porque ela era temporária. E ela era temporária porque era incompleta. A aliança possuía a lei, uma presença limitada do Espírito Santo e uma promessa de redenção. Só. Faltava a presença ilimitada do Espírito e redenção concretizada por Cristo. Logo, tratava-se de um ministério de morte/condenação, pois nele mesmo não havia salvação. As pessoas de fé que viveram na antiga aliança foram salvas não pela antiga aliança, mas pela nova. Não viesse o novo pacto, todos os que vieram no antigo teriam morrido para sempre. O antigo pacto, portanto, detinha a letra, mas não a salvação.

Em contraponto, o ministério do Espírito/justiça detém a salvação já concretizada por Cristo; e a letra escrita em tábuas de pedra passa a ser inscrita de maneira muito mais profunda nos corações dos crentes, através da atuação plena do Espírito Santo. Sem dúvida, esse ministério, esse novo pacto, é muito superior ao antigo. Ele é um ministério de justiça porque o pecado foi vencido na cruz. A letra, contudo, permanece. Ela só não nos mata mais, já que Cristo resolveu esse problema. Paulo continua:

“Pois na verdade, o que foi feito glorioso, não o é em comparação com a glória inexcedível. Porque, se aquilo que se desvanecia era glorioso, muito mais glorioso é o que permanece. Tendo, pois, tal esperança, usamos de muita ousadia no falar. E não somos como Moisés, que trazia um véu sobre o rosto, para que os filhos de Israel não atentassem na terminação do que se desvanecia. Mas o entendimento lhes ficou endurecido. Pois até o dia de hoje, à leitura do velho pacto, permanece o mesmo véu, não lhes sendo revelado que em Cristo é ele abolido; sim, até o dia de hoje, sempre que Moisés é lido, um véu está posto sobre o coração deles. Contudo, convertendo-se um deles ao Senhor, é-lhe tirado o véu. Ora, o Senhor é o Espírito; e onde está o Espírito do Senhor aí há liberdade. Mas todos nós, com rosto descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor (II Coríntios 3:10-18).

Neste trecho, Paulo termina de ensinar sobre a superioridade da Nova Aliança e faz uma crítica aos judeus que não tinham aceitado a Cristo. Ao não aceitarem o Messias, eles se prendiam a uma aliança que não só era incompleta, mas já estava ultrapassada. O prazo de validade da primeira aliança já havia acabado. Assim, os judeus incrédulos estavam se prendendo às limitações da antiga aliança, abstendo-se de uma presença mais ampla do Espírito Santo e não concretizando em suas vidas a salvação em Cristo Jesus. Agiam como se um véu estivesse posto em seus próprios corações. Não há, portanto, nada na teologia de Paulo que desabone o decálogo. Há apenas uma tentativa de demonstrar que a Nova Aliança é superior à Antiga, o que é lógico.

Como fica claro, embora Paulo tenha dado grandes passos na direção de uma teologia sistemática ou sistematizada, não se deteve numa utilização rígida, plenamente refletida, coesa e que tivesse semelhança absoluta com os termos usados por outros apóstolos. Isso sequer era possível. Paulo era um missionário, sempre ambulante, passando por diversas dificuldades, distante da maioria dos apóstolos.

Nem Paulo, nem os demais apóstolos eram escritores com estabilidade social e financeira, reunidos em uma mesma cidade, com o intuito de escreverem juntos uma obra de teologia sistemática. As diferenças de linguagem, enfoque e termos é exatamente o que se espera de seus escritos. Contudo, uma análise mais detida demonstra que, apesar das diferenças estilísticas, a essência da mensagem não se contradiz. Havia um só evangelho. E nesse evangelho entendia-se que a parte moral da lei, resumida no decálogo, e cuja base era o amor, permanecia válida. Cada discípulo e apóstolo expressou isso de uma forma, mas não há dúvidas quanto a essa verdade. O exemplo foi deixado pelo próprio Cristo, como já mencionamos há pouco, que enfatizou a importância do decálogo durante seu ministério.

E especificamente sobre o sábado, o próprio Jesus Cristo parece ter se preocupado com a possibilidade de que seus discípulos tivessem de fugir neste dia, na perseguição que se abateria em Jerusalém no ano 70 d.C. (Mt 24:20). Embora existam outras interpretações possíveis para a passagem de Mateus 24:20, esta também é válida e se constitui um bom indício da importância do sábado, bem como um indício para a prática, ainda comum, da guarda desse dia até pelo menos o ano 70 d.C. em Jerusalém.

Razão 12: O Sábado não tem relação com a circuncisão

O sábado nada tem a ver com a circuncisão. É comum que anti-sabatistas apontem uma suposta incoerência nos adventistas, dizendo que deveríamos nos circuncidar também. Ora, o ensino sobre a não obrigação da circuncisão é claro, conforme apontamos acima. Mas, além disso, quando falamos de circuncisão, estamos falando de uma lei de origem e caráter diferentes do mandamento do sábado. Enquanto o sábado surge antes do advento do pecado, originalmente como descaso-memorial para o homem lembrar-se de Deus como Criador, a circuncisão surgirá mais de vinte séculos depois, já no contexto pós-pecado, como um símbolo de uma aliança de Deus o Israel étnico, surgido a partir de Abraão. Ora, essa aliança de Deus com Israel na posição de nação de Deus sempre foi temporária. A função de Israel, desde sempre, foi servir de ferramenta para manter o monoteísmo, os profetas verdadeiros, as Escrituras e prover o contexto apropriado para que Jesus viesse trazer salvação ao mundo. Tendo vindo Jesus e cumprido a sua missão, a função de Israel como nação específica de Deus termina. O sacrifício de Jesus Cristo e a sua ressurreição inicia a nova aliança (Hb 8:6-13 e 9:11-15, Gl 3:24-26, Rm 11:1-32, Cl 2:12 e 3:1-3).

Israel, é claro, poderia ter uma nova função muito importante na nova aliança. A nação poderia ser o pivô do evangelismo mundial, um centro missionário com enorme relevância até o fim dos tempos. Poderia ser o povo mais ativo na transformação do Israel étnico em um Israel supra-étnico (ou multiétnico), ampliando o povo de Deus com judeus não naturais e expandindo as suas fronteiras, não como nação terrena, mas como Igreja de Cristo. Infelizmente, a maioria dos judeus não aceitou o seu próprio Messias, o que retirou de Israel a possibilidade de exercer essa função tão nobre. Ainda assim, o evangelho partiu de judeus e tais raízes, no primeiro século, eram muito fortes. Mas voltando à questão da circuncisão, o fato cristalino é que tal preceito, uma vez que estava ligado à antiga aliança, se torna obsoleto e desnecessário na nova. Não é o caso do sábado, que precede a antiga aliança e não tem razão de ser abolido. No Israel supra-étnico, a etnia judaica não tem mais qualquer importância religiosa. Mas Deus continua sendo Criador e Senhor do Sábado.

Curiosamente, muitos cristãos que equiparam o sábado à circuncisão e alegam a anulação de ambos, não alegam também a anulação do dízimo. Não me refiro à pastores ou tesoureiros ladrões, que se utilizam dos dízimos enriquecimento pessoal imoral. Refiro-me à cristãos sérios, incluindo bons pastores, de igrejas tradicionais. Outro dia, por exemplo, vi dois vídeos de pastores conhecidos respondendo se o cristão deve dar o dízimo ou não. Um era o presbiteriano Augustus Nicodemus e outro, Walter Mcalister, bispo da Igreja Nova Vida. O primeiro afirmou que não há, no NT, nenhuma ordenança quanto a dar o dízimo, mas que também não há nada contrário. Uma vez que o principio é válido, pois demonstra fidelidade a Deus e tem valor prático para manter a obra de Deus na Terra, aceita-se como ainda em vigor. Já Mcalister afirma que há um texto em Mateus 23:23, em que Jesus diz que os fariseus deveriam tanto dar o dízimo (algo que faziam até das mínimas coisas) como observar a misericórdia, a justiça e a fé.

A primeira alegação só faz sentido quando não usamos dois pesos, duas medidas. De fato, o conceito de dízimo ainda tem valor prático e não há texto que o desabone. Como ele também é anterior à lei mosaica, é plausível entender que ele não foi abolido junto com os rituais do AT. Mas se eu defendo isso, retirando o dízimo do saco das leis cerimoniais, mas ao mesmo tempo, coloco o sábado (também anterior à lei mosaica) entre os rituais abolidos, estou sendo incoerente. Por que vale para uma lei e não para outra. Neste caso específico, o herético Caio Fábio é mais coerente, pois não crê no sábado, nem no dízimo.

Já a segunda alegação não logra êxito algum. O texto usado por Mcalister apenas demonstra que os fariseus, naquele contexto de antiga aliança, tinham a obrigação de dar o dízimo. Jesus ainda não tinha morrido, a aliança judaica continuava em vigor e o ensino era para o que eles deveriam fazer no presente, não em um futuro distante. Esse texto, portanto, não serve para mostrar as obrigações dos cristãos após a morte e ressurreição de Cristo. O fato é simples: o dízimo só pode ser defendido quando se aceita que a Bíblia, Antigo e Novo Testamento, são uma coisa só. Apenas com esse entendimento, conseguimos entender o que o sacrifício de Cristo tornou obsoleto e o que permanece intacto. Cremos que o sacrifício substitui apenas os cerimoniais que foram criados especificamente para o prefigurar ou para simbolizar especificamente a antiga aliança. O sábado e o dízimo estão fora desse saco, embora tenham tido importância dentro da Antiga Aliança também. São princípios que transcendem a lei mosaica, no entanto.

As razões de 13 a 15 serão expostas na terceira (e última) parte do texto.

Por Davi Caldas

Fonte: Reação Adventista

Sobre Weleson Fernandes

Escritor & Evangelista da União Central Brasileira

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