A invenção do catolicismo e do protestantismo – Parte 7

No artigo anterior da série, iniciamos uma análise à respeito da doutrina reformada da predestinação, uma das mais importantes das primeiras igrejas protestantes. Vimos que ela possui incoerências lógicas, morais e bíblicas. Apesar disso, existem alguns textos bíblicos que aparentam ensinar a doutrina e costumam a ser muito utilizados por reformados, sobretudo calvinistas, na sustentação de suas teses. O foco desse artigo será analisar algumas dessas passagens mais relevantes, demonstrando que as interpretações feitas pelos defensores da predestinação estão equivocadas. Os textos analisados serão: Romanos 9, Êxodo 4:21, Filipenses 2:12-13, Atos 13:48, Romanos 8:28-39 e I Pd 2:9-10. Comecemos.

7. A predestinação nos textos bíblicos

7.1. Análise de Romanos 9

À primeira vista, o texto de Romanos 9 realmente parece ensinar que Deus predestina uns para a vida eterna e outros para a morte eterna, não havendo qualquer liberdade de escolha para o ser humano. Vejamos: nos versos 11-14, Paulo faz uma analogia com os gêmeos Esaú e Jacó, dizendo que antes que eles nascessem e praticassem qualquer obra, Jacó já havia sido eleito e Esaú desprezado. Nos versos 15-16, Paulo diz que Deus tem misericórdia de quem Ele deseja, não dependendo de quem quer ou de quem corre. Nos versos 17-18, o apóstolo menciona a história de Faraó para endossar a ideia de que Deus tem misericórdia de uns e endurece o coração de outros. Nos versos 19-20, ele rebate um questionamento de que Deus seria incoerente ou injusto por isso. Nos versos 21-24, Paulo faz uma analogia com um oleiro e vasos de barro, para defender a ideia de que o oleiro tem soberania sobre os vasos.

Mas embora a interpretação reformada pareça verdadeira à primeira vista, ela possui um grande problema: não se coaduna com o contexto do capítulo. Paulo não está discutindo eleição divina para a salvação nesse pedaço da epístola. Ele está discutindo uma eleição funcional, isto é, a livre escolha divina de funções distintas para cada povo e pessoa nos seus planos. Isso fica claro quando escrutinamos o texto. Escrutinemos.

Nos versos 1-5, Paulo se mostra triste pela descrença dos seus compatriotas judeus. Trata-se de um tema que já havia sido abordado na primeira sessão da carta (capítulos 2-3) quando Paulo explica que (1) não há vantagem do judeu sobre o grego e que (2) apesar do povo judeu ter uma eleição funcional (passagem dos oráculos), o judeu verdadeiro é o que faz a vontade de Deus (passagem).

O apóstolo resolve retomar esse tema após uma longa sessão defendendo o evangelho como sistema de salvação/santificação plenamente eficaz (capítulos 3-8). O capítulo 9, portanto, inicia a terceira sessão da carta, que procura ampliar e explicar melhor o que fora dito na primeira.

Note que nos versos 4 e 5, Paulo realça seu sentimento de tristeza pelos judeus falando sobre sua eleição funcional. A nação, no sentido étnico, fora escolhida por Deus para receber dele às maiores bênçãos da humanidade. E apesar disso, a maior parte do povo estava perdida. É no verso 6 que entendemos porque Paulo volta ao assunto. Ele afirma que essa situação dos judeus não era uma prova de que a Palavra de Deus falhou. Esse é o tema central do capítulo. Paulo precisava explicar como Deus poderia ter elegido Israel para cumprir seus planos (eleição funcional) e a maioria dos israelitas acabar se perdendo. Se havia uma eleição funcional que tornava Israel o povo de Deus, isso não deveria implicar a eleição de cada israelita para a salvação? Era o questionamento que todo judeu descrente em Jesus ou judaizante iria fazer.

A explicação de Paulo é simples. Ele afirma que nem todo o que nasceu em Israel é realmente israelita (passagem). É uma referência ao conceito do judeu espiritual já abordado na primeira sessão (passagem). Para deixar claro que seu conceito não é  um absurdo, um malabarismo retórico, Paulo inicia algumas analogias. Primeiro, ele lembra que nem mesmo por ser descendente de Abraão todos são filhos da promessa, já que o filho da promessa de Deus era Isaque e não Ismael (passagem). Depois lembra que o mesmo ocorre na geração seguinte. O filho da promessa é Jacó, não Esaú (passagem). Então, note que alguém poderia descender de Abraão, mas não de Isaac (o prometido). E poderia descender de Abraão e Isaac, mas não de Jacó.

Repare que o texto não está falando de salvação, mas sim de eleição funcional. O verso (x), por exemplo, fala de como Deus já havia escolhido Jacó antes do nascimento para dele criar o seu povo. Trata-se de uma eleição para uma função, não para a salvação. Em nenhum momento é defendido que Ismael e Esaú não foram salvos ou que seus descendentes não poderiam alcançar a salvação. Paulo apenas usa os dois casos como analogia para explicar que quando Deus deseja e elege uma pessoa ou povo para uma função, essa função será cumprida por quem Ele elegeu, não por outros. Trata-se de vontade final, a qual não pode ser frustrada, visto que Deus estruturou toda a realidade para o cumprimento desse propósito e já sabe do resultado desde sempre.

O raciocínio de Paulo é que assim como ter por ascendente Abraão e Isaque não inclui necessariamente uma pessoa entre os eleitos para a função de nação escolhida, o fato de ser filho de Israel não garante um coração para Deus.

Explicado isso, o apóstolo começa um segundo nível de argumentação. Ele cita a passagem de Êxodo 33, onde Deus diz que tem misericórdia de quem Ele quer. No contexto dessa passagem, Moisés está pedindo a Deus a garantia de que Ele está com o povo como nação. Ou seja, Moisés queria saber se a função de povo de Deus havia sido mesmo dada a eles e Yahweh guiaria o seu povo. Deus afirma que sim e então expressa a sentença sobre a sua misericórdia, demonstrando que aprouve a Deus fazer de Israel o seu povo, não outro, e a escolha é soberana. Paulo resgata essa passagem porque o contexto é o mesmo. Fala-se da soberania de Deus para eleger Israel àquela função.

Em seguida, o apóstolo usa o exemplo de Faraó, que foi levantado por Deus para ser derrubado, tendo o coração endurecido pelo próprio Senhor. Para os reformados, esse exemplo comprova que Deus manipulou a vontade de Faraó, levando-o à perdição sem que o próprio pudesse escolher seu destino. E a escolha desse exemplo por Paulo prova, para os reformados, que o assunto tratado por ele é a eleição para a salvação. Há, porém, duas falhas nessa interpretação. Em primeiro lugar, o contexto precisa ser respeitado. Se Paulo está no meio de uma argumentação sobre a eleição funcional de Israel, não faz sentido supor que o exemplo de Faraó é sobre salvação. Em segundo lugar, as passagens de Êxodo sobre o endurecimento do coração de Faraó se referem única e explicitamente à decisão de não permitir a saída do povo. Interpretar que esses textos também falam sobre salvação é extrapolar o que eles realmente dizem.

Deus realmente endureceu o coração de Faraó. Está na Bíblia. Mas não está na Bíblia que Ele o fez no intuito de determinar sua perdição eterna. O intuito de Deus, segundo a Bíblia, era fazer o rei do Egito não permitir a saída do povo. Isso significa que, à priori, é perfeitamente possível que Deus tenha dado oportunidades de conversão ao Faraó durante anos. Nesta hipótese, o endurecimento para não deixar o povo ir não foi a causa da perdição do rei. Ele já estava perdido antes.

Fica claro, portanto, que o assunto de Paulo continua sendo eleição funcional. É fácil entender a analogia. Da mesma maneira como Isaque e Jacó são eleitos para formar o povo prometido de Deus, em detrimento de Ismael e Esaú, o homem que nasceu, cresceu e ascendeu ao cargo de Faraó na época de Moisés foi eleito por Deus desde antes do seu nascimento para desempenhar essa função de Faraó. Onisciente, Deus já sabia desde sempre que aquele homem não atenderia aos seus apelos. Poderia não tê-lo permitido nascer ou criado um conjunto de circunstâncias que o impedisse de subir ao trono. Poderia ter levantado outra pessoa para o posto, alguém que liberaria o povo mais facilmente. Mas a livre escolha divina foi levantar exatamente esse homem, no intuito de, após receber negativas aos seus apelos por conversão, o derrubasse da maneira mais humilhante, a fim de se fazer conhecido e respeitado entre os povos. A questão do endurecimento do coração de Faraó será explicada mais detalhadamente no próximo tópico.

O exemplo de Paulo sobre Faraó é o mais forte e chocante de todos. Sabendo disso, ele antevê uma objeção provável que um judeu incrédulo poderia fazer: “Tu, porém, me dirás: De que se queixa Ele [Deus] ainda? Pois quem jamais resistiu à sua vontade?” (v. 19). Ou seja, se Deus poderia endurecer corações para que as pessoas cumprissem funções determinadas por Ele, então a própria descrença dos judeus deveria se atribuir a Deus. Se Ele quisesse a crença dos judeus, eles creriam, pois mudaria seus corações. Se os judeus não creram, Ele não quer. Se Ele não quer, por que motivo reclama? A ideia dessa provável objeção judaica é concluir que o evangelho pregado por Paulo é falso, já que a maioria dos judeus não creu. Em suma, Jesus não poderia ser o Messias porque o povo escolhido de Deus não o reconheceu.

O apóstolo poderia explicar que o endurecimento do coração de Faraó não tirava dele a sua responsabilidade de se converter dos maus caminhos. Poderia também mostrar que Deus oferece a cada judeu a possibilidade de escolha. Mas em vez disso, Paulo resolve combater a arrogância por trás do argumento judaico. Na mente judaica, a veracidade do evangelho dependia de Israel aceitá-la. Mesmo a nação sendo tão falha, era entendida como juiz. Assim, se ela julgava o evangelho falso, ele era falso. A simples hipótese de que Israel estivesse errada nesse julgamento faria do próprio Deus um imoral. Por isso, Paulo afirma: “Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?! Porventura, pode o objeto perguntar a quem o fez: Por que me fizeste assim?” (v. 20).

Note que a intenção de Paulo não é responder a pergunta. Ele apenas expõe a arrogância mesmo. Pode ter escolhido assim por diversas razões. Talvez não achasse necessário explicar como se dá a interação entre a soberania divina e a liberdade/responsabilidade humana. Talvez tenha percebido que entrar nesse assunto o tiraria do tema principal e entraria numa discussão que não era a real preocupação judaica. A pergunta do judeu incrédulo não demonstra curiosidade numa discussão “livre arbítrio x determinismo”. O questionamento apenas é feito para “provar” que o evangelho é falso e Israel não pode errar nesse sentido. Assim, entrar nessa discussão seria jogar o jogo do incrédulo.

Há ainda a possibilidade de que Paulo não tivesse uma resposta definida para discussão “livre arbítrio x determinismo”. O processo de sistematização da doutrina cristã a partir da ascensão de Jesus ao céu foi bastante lento. Algumas demoraram alguns séculos para se concretizar. Sistematização é a organização de uma crença (ou corpo de crenças) em um sistema mais definido de explicação, incluindo também termos formais que expressem apropriadamente a essência da crença e suas implicações. Isso quer dizer que antes das crenças cristãs serem sistematizadas, algumas delas se sustentavam com termos vagos, não fixos e ineficazes para explicar de modo completo e plenamente coerente os conceitos representados. Também quer dizer que nem todas as implicações da crença eram conhecidas a fundo e que, no caso de algumas pessoas, ela não conseguia ser bem explicada.

Tal fato não significa que a crença não existia, mas apenas que estava sem conceituação clara. É mais ou menos quando sabemos de algo, mas temos dificuldade de explicar, de colocar em palavras, de estruturar. É algo perfeitamente normal. Nesse esquema de coisas, as primeiras tentativas de sistematização gerarão métodos, abordagens e termos diferentes por cada escritor ou locutor. O processo de sistematização abarca justamente a reunião dessas tentativas e as análises para achar o sistema que melhor expressa a crença ou ainda um denominador comum entre as tentativas que possa gerar um acordo formal. São exemplos de crenças que passaram por esse processo a divindade de Jesus, a Trindade e a relação entre a Torá e o Evangelho.

Pois bem, é possível que Paulo não tivesse ainda um sistema fechado que explicasse da melhor maneira, abarcando todas as nuances, a relação entre a soberania divina e a responsabilidade humana. Ele sabia que Deus era soberano e sabia que o ser humano tinha liberdade de escolha/responsabilidade. Mas como exatamente explicar essa relação talvez fosse um mistério que Paulo não estava muito disposto a resolver. Para os seus propósitos missionários, bastava saber que Deus era soberano e que o homem precisava se arrepender para ser salvo pela graça divina, mediante a fé possibilitada pelo próprio Deus. Seja como for, fica claro que Paulo escolheu não responder a pergunta, mas expor e combater a soberba dos judeus incrédulos.

Nos versos seguintes, o apóstolo recorre à imagem do oleiro fazendo vasos de barro (vs 22-23). Essa imagem é usada em passagens de Isaías e Jeremias. Em Jeremias 18:1-10, Deus afirma ao profeta que possuía autoridade sobre o destino de Israel assim como o oleiro possuía autoridade sobre o destino do barro e que, portanto, poderia dar um bom ou um mal destino para qualquer nação, dependendo de seu proceder. O texto enfatiza, ao mesmo tempo, a soberania de Deus e a possibilidade de arrependimento da nação e, consequentemente, de mudança no destino. Em Isaías 29:15-16, o profeta repreende aqueles que cometem perversidades como se Deus não visse, usando a figura de uma obra de barro que nega a criação e a ciência do oleiro. Em Isaías 64:8, representando os arrependidos, o profeta compara o povo ao barro e o Senhor ao oleiro, reconhecendo que todos são obras de suas mãos. Já em Isaías 45:9, após uma profecia a respeito da relevância funcional de Ciro, rei da Pérsia, Deus demonstra ter autoridade para dar a cada pessoa a função que desejar, usando a mesma imagem do oleiro e dos vasos.

Em todas essas passagens que, provavelmente serviram de base para Paulo, Deus afirma sua soberania, mas também a liberdade de escolha entre o bem e o mal que Ele oferece ao seu povo. Também é enfatizada em todos esses textos a eleição funcional. Não se discute, como podemos averiguar claramente, a salvação individual. Então, é lógico que o apóstolo continua na mesma linha de argumentação. A massa é Israel e os vasos são pessoas. Da mesma massa, Ele pode separar pessoas para a perdição e pessoas para a salvação, de acordo com a escolha que Ele oferece ao povo, conforme os textos do AT deixam claro.

A linguagem usada por Paulo reforça o ponto de que ele reconhece a soberania divina e a liberdade humana, mas não possui interesse em discutir e sistematizar a questão. Seu alvo é destacar a soberania de Deus, a fim de destruir a presunção dos judeus incrédulos. Assim, Ele usará de uma linguagem própria para exaltar o poder de escolha divino. Essa linguagem de exaltação da soberania divina não exclui a possibilidade de livre arbítrio, apenas não explica a relação entre uma coisa e outra. Mas ela pode ser inferida. Veja: ainda que Deus restaure o livre arbítrio de um homem, Ele já sabe de antemão a sua escolha. Isso implica que todos os que irão se perder, Deus já os conhece, e só vieram à existência porque Ele quis. Ou seja, todos estão debaixo da vontade divina. Portanto, para alguém usar uma linguagem de exaltação divina nesse sentido, é perfeitamente plausível afirmar que Deus cria uns para a honra e outros para a desonra, uns para a vida e outros para a morte. É verdade, embora não explique todo o processo.

Essa interpretação é coerente com o que Paulo diz a seguir. Os versos 22-24 afirmam que Deus suporta com muita longanimidade os que irão se perder, a fim de revelar a sua ira contra o mal, mostrar seu poder aos homens e, ao mesmo tempo, a sua misericórdia aos que aceitam o convite de Cristo, mesmo sem merecerem. Ora, se Deus odeia o mal e o pecado, não vai criá-los apenas para mostrar o quanto Ele odeia o mal e o pecado. O próprio Paulo salienta que Deus precisa suportar essas coisas. A ideia subjacente aqui não é que Deus as criou e sim que, por alguma razão, não impediu que elas surgissem e passou a suportá-las para mostrar que as odeia. A explicação não é completa porque esse não é o foco de Paulo. Ele quer, como já foi dito, apenas expressar sua soberania.

Em suma, Deus poderia matar todas as pessoas ruins ou impedir o nascimento delas, evitando assim o mal. Mas resolveu suportá-las e a partir daí mostrar sua grandeza ao homem caído. Devemos lembrar um dos argumentos do artigo passado: Deus, em sua essência perfeita e no interior de uma criação perfeita, não precisa de absolutamente nada para aumentar sua glória ou fazê-la parecer maior. Mas o pecado afeta a percepção que o homem tem de Deus. Assim, o pecado não é algo importante que Deus usa para ser ou parecer maior. É o contrário. O pecado é algo ruim, uma aberração, que Deus quer destruir porque, entre outras coisas, reduz sua glória para a percepção do homem pecador. Assim, Deus suporta o pecado apenas para reverter o problema que o próprio pecado causou. A ira de Deus só se faz necessária por causa disso. É uma obra de restauração da percepção correta de sua glória; uma obra que não precisaria existir se não fosse o pecado. Então, é lógico que Paulo não está dizendo que Deus criou o pecado para sua glória, mas apenas que o suporta por algum tempo, a fim de restaurar a sua glória para o homem.

Mais adiante, Paulo fecha seu argumento, enfatizando que quem define as regras é Deus, não Israel. Por isso, não é absurdo (como supõe o judeu) que os gentios, que não tem etnia israelita, nem a Torá, alcancem a justificação mediante a fé, enquanto que Israel, possuindo sangue israelita e a Torá, não alcance. A busca israelita estava baseada em obras e mérito, o que os fazia tropeçar em Jesus. Apenas Jesus poderia salvar. Mas o mesmo Jesus que é salvação para os que creem, é pedra de tropeço para os que não creem.

Todo o texto de Paulo, portanto, trata de como Deus é soberano sobre Israel, não devendo nada aos israelitas étnicos e seguidores da Torá. Sendo soberano, Ele podia definir como critério para ser um israelita verdadeiro a fé em Cristo. E não incorria em nenhum erro nisso. Por isso, Paulo prefere expor a soberba do argumento judaico do que discutir “livre arbítrio x determinismo”, que nem é o assunto do capítulo e que talvez nem tivesse sistematização completa na mente de Paulo. Conclui-se que nada existe nesse texto, que comprove a doutrina da predestinação. Para afirmar isso, é necessário descontextualizar todo o capítulo.

7.2. Êxodo 4:21

O texto que complica a interpretação de Romanos 9 é Êxodo 4:21. Ele afirma: “Disse o Senhor a Moisés: Quando voltares ao Egito, vê que faças diante de Faraó todos os milagres que te hei posto na mão; mas eu lhe endurecerei o coração, para que não deixe ir o povo”. A profecia de Yahweh feita nessa passagem será relembrada diversas vezes no restante do livro de Êxodo. Tanto críticos do Deus judaico-cristão quanto calvinistas radicais sustentam a interpretação de que Deus manipulou a vontade de Faraó para que o mesmo não deixasse o povo ir, o que comprovaria que não existe livre arbítrio e Deus reclama de indivíduos que são maus porque Ele assim determinou.

A interpretação desse Deus manipulador possui pelo menos dois problemas. Primeiro: a Bíblia equipara textos que colocam Deus como autor do endurecimento (Êx 4:21, 7:3, 9:12, 10:20-27, 11:10, 14:4-17) a textos que colocam o endurecimento como sendo independente (Êx 7:13, 7:22, 8:15, 8:19, 8:32, 9:34-35, 13:15, I Sm 6:6). Isso sugere que Faraó escolhera não se render aos apelos de Deus, resultando numa ação divina para intensificar a dureza do rei. Nesse caso, tanto temos um Deus soberano, quanto um ser humano com capacidade de escolha. A capacidade, no entanto, tem limite e se finda em determinado momento, quando então Deus pode desejar tornar um coração duro ainda mais duro.

Segundo: a ação divina no sentido de tornar o coração de Faraó mais duro não tem o seu processo explicado pela Bíblia. Mas é possível postular três hipóteses. Ela pode ter sido direta, influenciando-o a manter sua posição dura; semidireta, na qual os apelos de Deus seriam usados como forma de irritar a Faraó, já que Ele já estava decidido; ou indireta, simplesmente afastando o seu Espírito Santo do rei, o que acaba com a possibilidade de arrependimento no ser humano e leva naturalmente ao endurecimento.

O processo direto, defendido por alguns calvinistas, não necessariamente destrói a noção de livre arbítrio. É perfeitamente possível que Deus tenha apelado ao Faraó por arrependimento por muito tempo e não obtendo resultado, exerceu juízo endurecendo o coração do homem em relação à saída dos hebreus. Deve-se lembrar que os textos não falam da salvação de Faraó, mas da libertação dos hebreus. Ou seja, não há base bíblica para supor que o endurecimento foi para definir a perdição do rei do Egito. Ela pode ter sido definida por seus atos muito antes disso.

Da mesma forma, os processos semidireto e indireto não destroem a noção de livre arbítrio. Deus, baseado na sua onisciência e na livre escolha de uma pessoa, sabe de que forma pode endurecer ainda mais o coração de alguém que não irá aceitá-lo. No processo semidireto, isso se dá por irritação. Quando estamos obstinados em relação a algo, a insistência de alguém no contrário pode gerar dois sentimentos: ou acabamos nos convencendo de nosso erro e nos arrependemos, ou ficamos irritados com a pessoa que insiste, o que pode servir para nos tornar mais duros. A insistência do Espírito Santo com quem Ele já sabe que não se arrependerá pode implicar esse endurecimento. Uma analogia interessante é a do sol. O mesmo sol que endurece materiais como o barro e o cimento, amolece materiais como a cera e a manteiga. A ação do sol é a mesma. O que muda é a inclinação do objeto a endurecer ou amolecer. Assim, Deus agiria igualmente sobre todos, mas a escolha de cada um definiria seu endurecimento ou amolecimento.

Já no processo indireto, há o extremo oposto. Uma pessoa que nunca irá se arrepender é abandonada pelo Espírito Santo. Na concepção arminiana, que é a que temos defendido, sem a iniciativa e a ação constante do Espírito Santo, o homem não tem o seu livre arbítrio restaurado; sua condição natural é de pecado e, portanto, seu destino sem a ação divina é o endurecimento do coração.

Nos três casos, o coração de Faraó torna-se mais duro por um juízo divino. E esse juízo ocorre como resultado das próprias escolhas de Faraó. Dentro da concepção arminiana, os processos semidireto e indireto de endurecimento parecem se adequar mais ao modo de agir de Deus. Entretanto, o processo direto também pode ser sustentado sem que se caia nos problemas lógicos, morais e bíblicos relatados no artigo anterior.

7.3. Filipenses 2:12-13

Esse texto afirma o seguinte: “Assim, pois, amados meus, como sempre obedecestes, não só na minha presença, porém, muito mais agora, na minha ausência, desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade”. Os reformados alegam que se Deus faz tanto o querer, como o realizar, não existe espaço para livre arbítrio e a salvação ou perdição é totalmente determinada por Deus. Mas a própria passagem destacada não se coaduna com essa Idea. O texto é uma exortação. O apóstolo Paulo incentiva os irmãos a desenvolverem a salvação. Isso implica alguma responsabilidade e alguma escolha.

A passagem se encaixa muito melhor a uma interpretação arminiana: o homem deve desenvolver a sua salvação justamente porque Deus o habilita a isso. Através de Deus, passamos a sentir o desejo de buscá-lo e a ter a condição de segui-lo de fato. Sem Ele, nenhuma das duas coisas é possível. Com Ele, as duas são possíveis, mas podem ser negadas. Por isso, Paulo faz a exortação. Não precisaria fazê-la se o desenvolvimento da salvação fosse inevitável.

7.4. Outras passagens

Há três passagens que podem ser analisadas nesse mesmo tópico, pois possuem uma explicação em comum. A primeira delas está em Atos 13:48. O texto diz: “Os gentios, ouvindo isto, regozijavam-se e glorificavam a palavra do Senhor, e creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna”. A palavra traduzida como “destinados” também pode ser vertida como ordenados, designados ou estabelecidos.

A interpretação reformada é de que as pessoas que creram já tinham sido destinadas por Deus à salvação. Curioso é que mesmo na hipótese de essa interpretação estar correta, isso não endossa a doutrina reformada da predestinação. Explico. É perfeitamente possível que o autor da passagem estivesse descrevendo a conversão daqueles gentios do ponto de vista da onisciência divina. Se Deus dá ao homem possibilidade de escolha, mas, ao mesmo tempo, já sabe o que ele vai escolher, para a visão divina tudo está determinado. Uma vez que Deus escolheu o critério de salvação do homem (a fé em Jesus Cristo), isso implica que Ele escolheu para a salvação os que preenchem esse critério. Assim, de certa forma, do ponto de vista de Deus, já há um grupo de pessoas destinadas à salvação.

Considerando essa hipótese como verdadeira, o que o autor de Atos pretendeu mostrar foi o seguinte: aqueles gentios que aceitaram a Cristo, aceitaram para nunca mais largar, conforme Deus já sabia. Desde antes de nascerem, Deus tinha ciência de que atenderiam ao critério que Ele estabeleceu. Outro modo de dizer a mesma coisa seria: “E os que creram passariam o resto da vida crendo, sendo salvos no final, de acordo com aquilo que Deus, em sua onisciência, sempre soube”.

Explicação semelhante pode ser dada às passagens de Romanos 8:28-39 e I Pd 2:9-10, que falam sobre eleitos. Aqueles que aceitam a Cristo são eleitos não porque Deus os predestinou a aceitá-lo, mas porque, em sua onisciência, já conhecia os que aceitariam o critério de salvação que Ele escolheu. Isso em nada retira de Deus a soberania, nem faz do homem merecedor da salvação.

7.5. Considerações Finais

Há outras passagens que poderiam ser analisadas, mas a exposição delas deixaria esse artigo muito extenso e repetitivo. Basta sabermos que existem alguns erros principais de interpretação. Por exemplo, alguns textos que são interpretados como se Deus fosse o autor até de pecados, na verdade, estão imbuídos de um recurso linguístico hebraico que colocava Deus como autor de todas as coisas, a fim de enfatizar a sua soberania. Esse tipo de texto não deve ser lido de modo estritamente literal. Outro erro comum é o de generalizar o que um texto diz, saindo de seu contexto imediato.

Findas as análises das passagens mais usadas para sustentar a doutrina da predestinação, concluímos aqui a parte de nossa série que se propôs a focalizar o protestantismo. Com esse artigo, começamos a nos aproximar do fim da série. Analisamos os principais erros do catolicismo romano e dos primeiros reformados, demonstrando a ortodoxia não está nem no primeiro, nem no segundo grupo. Isso levanta as seguintes questões: onde nós podemos encontrar, então, a ortodoxia verdadeira? Isso é possível? Há um plano de Deus para resgatar a pureza do evangelho apostólico? Os quase dois mil anos de falhas doutrinárias, católicas e protestantes, não entram em choque com a ideia de um Deus que prometeu estar sempre com a sua Igreja? Há esperança de uma reforma genuína na Igreja e de um movimento ou remanescente que pregue o evangelho verdadeiro? E qual deve ser o lugar seguro dos cristãos conservadores que buscam a ortodoxia cristã? São essas as perguntas que buscarei responder no próximo (e talvez último) artigo da série.

Por Davi Caldas

Fonte: Reação Adventista

Sobre Weleson Fernandes

Escritor & Evangelista da União Central Brasileira

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