Um dos argumentos que costumamos a utilizar para defender a guarda do sábado como válida ainda nos dias de hoje é que o mesmo foi instituído por Deus antes da queda do ser humano, conforme lemos em Gênesis 2:1-3. Desta forma, a guarda desse dia não apresenta relação direta com mandamentos ritualísticos que foram instituídos após a queda unicamente para prefigurar o sacrifício de Jesus. E não fazendo parte dessa classe de mandamentos ritualísticos pós-queda, sua prática não se finda com o sacrifício de Cristo na cruz, mas permanece como princípio vigente.
Curiosamente, alguns cristãos não-sabatistas vem sustentando que, no referido texto, Deus não instituiu o sábado como dia de guarda. Resolvemos, então, fazer uma análise mais minuciosa da passagem e dos argumentos que se opõem à interpretação de que o sábado foi instituído ali.
O que o texto diz
“Assim, pois, foram acabados os céus e a terra e todo o seu exército. E, havendo Deus terminado no dia sétimo a sua obra, que fizera, descansou nesse dia de toda a sua obra que tinha feito. E abençoou Deus o dia sétimo e o santificou; porque nele descansou de toda a obra que, como Criador, fizera” (Gênesis 2:1-3).
Podemos destacar três atos curiosos de Deus nessa passagem:
1) Após seis dias desenvolvendo o mundo, Deus descansou de sua obra no sétimo dia dessa primeira semana;
2) Deus abençoou esse sétimo dia por conta do seu descanso;
3) Deus santificou esse sétimo dia também por conta do seu descanso.
Cada um desses fatos requer uma explicação. Vamos questionar o primeiro fato: por que Deus descansa no sétimo dia se Deus não se cansa? Certamente Deus não descansou por uma necessidade física, psicológica ou espiritual de seu próprio ser. E o próprio descanso de Deus aqui é relativo. Ele cessa sua obra criativa no mundo, mas não deixa de sustentar todas as coisas. Deus permanece em constante atividade todos os dias. A pausa de Deus, portanto, se refere à obra de criação do mundo apenas. Mas por que isso é enfatizado no relato? Qual a relevância de frisar que após seis dias trabalhando nessa obra, o Senhor descansou dela no sétimo dia? Por que o relato faz questão de dizer o que teve um dia que Deus não fez nada em relação à criação?
Note que depois desse primeiro sábado do mundo, Deus também não realizou nenhuma obra criativa na terra nos demais dias, semanas, meses e anos. A criação desse mundo terminou no sexto dia. Por que o descanso de Deus no sétimo dia da semana da criação é enfatizado no relato, se todos os outros dias depois não contaram com obra criativa de Deus? O leitor percebe que há um claro destaque sobre o que Deus fez no sétimo dia, após sua obra criativa? O relato claramente aponta que isso é relevante. Mas por quê?
A explicação mais plausível é que Deus criou um modelo de contagem de tempo. Ele criou não só o mundo, mas a semana. É por isso que o relato faz questão de informar o que foi criado em cada dia. E é por isso que o relato não termina no sexto dia de obra, mas se estende ao sétimo, informando que no sétimo houve descanso. Se a intenção do relato fosse só narrar a criação em detalhes, não teria mencionado um sétimo dia de inatividade. Se quero contar para alguém como fiz determinada obra de arte, eu falo sobre meus dias de atividades, não sobre meu dia de descanso. A não ser que meu dia de descanso da obra tenha importância vital no relato, por alguma razão, eu vou omiti-lo, pois são os dias de atividade que interessam.
Da mesma maneira, se a intenção do relato fosse criar um modelo de semana no qual há apenas obras (ficando o descanso por conta de quem queira), não teria se referido ao dia de inatividade, mas relataria apenas os seis dias de criação. Ao narrar sobre um dia em que nada foi feito em relação à obra, o relato confere a esse dia relevância. Ele é posto ali porque é importante.
Evidentemente, a importância desse dia diz mais respeito a nossa relação com Ele do que a relação dEle conosco. Para Deus, um Ser intrinsecamente atemporal, a contagem do tempo, a administração de prioridades, o descanso, os memoriais, etc. não são fundamentais para seu emocional/espiritual/físico/psicológico. Da mesma forma, Deus não precisa de comida, bebida ou qualquer outra coisa, como nós. Isso implica que um modelo de tempo só tem relevância porque nós precisamos disso. Nas palavras de Jesus: “O sábado foi feito por causa do homem” (Mc 2:27). Deus cria uma semana de sete dias, com um para descanso pela mesma razão que cria árvores com frutos e água corrente: porque nós precisamos disso, não Ele. Essa é a razão pela qual um dia sem atividade criativa é enfatizado ao lado dos dias da criação. Trata-se de um modelo de tempo. Deus criou a semana.
Vamos ao segundo fato: por que Deus abençoou esse dia? Devemos manter em mente que não se abençoa ou se amaldiçoa algo à toa. No antigo Israel, por exemplo, quando um pai velho estava para morrer, chamava os seus filhos para abençoá-los (Gn 27:1-41, 49:1-33). Essas bênçãos se baseavam no perfil de cada filho e eram proféticas. Era um momento muito solene. De modo semelhante, as bênçãos ou maldições de Deus surgiam de sua satisfação ou insatisfação em relação a alguém ou algo (base no perfil do objeto) e também eram proféticas. Assim, a benção ou a maldição implicavam efeitos práticos, concretos, em relação ao objeto da benção/maldição. Um exemplo, também em Gênesis, é quando Yahweh promete uma benção a Abraão, sua descendência, todas as famílias do mundo e aqueles que tivessem uma postura positiva em relação à descendência do patriarca (Gn 12:1-3).
Quando, portanto, Deus abençoa o sétimo dia, está expressando sua satisfação em relação a esse dia, revestindo-o de importância e favorecendo-o. Mas o que significa tudo isso? Por que esse dia recebe essa benção especial e não os outros? Se o relato quer apenas enfatizar a criação, por que o único dia abençoado na narrativa é um dia em que não houve atividade criativa? Por que Deus não abençoou o sexto dia, que foi o último da criação, ou o primeiro, que iniciou tudo? Ou ainda: por que não abençoou de maneira especial a semana inteira? Por que justamente o único dia sem atividade? Parece estranho narrar toda uma obra magnífica de criação em seis dias para no fim das contas abençoar de modo especial o dia em que não houve nada.
Note que ao mencionar essa benção especial, a narrativa destaca o sétimo dia, dando ao leitor a certeza de que há algo de especial, de diferente nesse dia. E sabemos que o dia é especial não porque Deus precisa dele, já que Deus não precisa de pausas, descansos, contagem de tempo e memoriais. Ao que tudo indica, portanto, o dia foi abençoado por causa do ser humano.
Finalmente, chegamos ao terceiro fato: por que Deus santificou o sétimo dia? Tenhamos em mente que o termo “santificar” significa “tornar santo”. Já a palavra “santo” quer dizer “separado”, “distinto”. Então, o que Deus fez ali foi tornar o sétimo dia distinto, separado, diferente dos demais dias. Sabemos também que a palavra “santo” engloba uma dimensão espiritual, religiosa. Santo está sempre em oposição a profano, secular, mundano, ordinário, comum. Assim, Deus estava transformando o sétimo dia em um dia com caráter religioso, espiritual. Era um dia distinto dos demais porque possuía esse elemento de santidade.
Em Êxodo 3:5 temos um exemplo interessante da implicação básica de algo ter sido considerado santo (santificado) por Deus. Yahweh, em forma de fogo na sarça ardente, diz a Moisés: “Não te chegues para cá; tira as sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é terra santa”. Fica claro, portanto, que a santificação de algo por parte de Deus implica necessariamente que devemos ter uma postura distinta em relação ao que foi santificado. No caso do texto citado, Moisés deveria tirar as sandálias dos pés e manter certa distância. Assim, estaria considerando a santidade do lugar.
A ideia que muitos sustentam de que todos os dias são iguais para Deus cai aqui. Não é o que a Bíblia diz. Deus faz clara distinção entre o sétimo dia e os demais. Ele é distinto e sua distinção é de caráter espiritual. Mas por que Ele faz isso? Mais uma vez ressaltamos que não é por que Ele precisa disso. Há aqui no texto um forte apelo para que o ser humano veja o sábado como um dia diferente, santo, santificado por Deus.
Explicando o texto
Tudo bem. Vimos que o texto claramente reveste o sétimo dia de importância. Ele é incluído no relato mesmo sendo um dia de inatividade. Ele é escolhido para fechar o período de seis dias de obras e o relato dá uma estranha relevância a isso. Ele ainda é abençoado em detrimento dos outros e santificado por Deus. Sabemos que essa relação com o tempo é humana, não divina. Nós é que precisamos de contagens, memoriais, meios de organizar o tempo e descanso. Então, fica claro que há, nesse sétimo dia, algo de especial que Deus quis dar para o ser humano.
Entretanto, o texto é um pouco obscuro. Se a única informação que houvesse sobre o sétimo dia estivesse nesse texto, teríamos dúvida sobre o que realmente Deus quer que façamos ou deixemos de fazer nesse dia. Felizmente, a Bíblia Sagrada sempre lança luz sobre si mesma. Esse texto de Gênesis é explicado em detalhes em diversas passagens da Bíblia, através de histórias e de repetições de mandamentos. Talvez a passagem que melhor explique esse texto esteja em Êxodo 20:8-11. Lá nos é dito:
“Lembra-te do dia de sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o sábado do SENHOR, teu Deus; não farás nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o forasteiro das tuas portas para dentro; porque, em seis dias, fez o SENHOR os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o SENHOR abençoou o dia de sábado e o santificou” (Êx 20:8-11).
Aqui tudo é esclarecido e todas as conclusões às quais chegamos apenas com a leitura de Gênesis 2:1-3 se mostram verdadeiras. De fato, vemos que Deus ao criar o mundo em seis dias e cessar sua obra criativa no sétimo, Deus instituiu também um modelo de tempo, a semana, composta de seis dias de trabalho e um de descanso. E, de fato, esse dia deveria ser distinto, um dia santo, voltado para atividades espirituais. Assim, toda a atividade ordinária deveria ser pausada neste dia e a razão para isso era que Deus não só fez isso, como também abençoou e santificou o sétimo dia.
O mandamento, da forma como descrito aqui, também não deixa dúvidas quanto ao dia chamado sábado. Ele é o sétimo dia no qual Deus descansou na primeira semana. Assim, a passagem de Êxodo 20:8-11 pode ser considerada um comentário inspirado sobre a passagem de Gênesis 2:1-3. E podemos estar certos de sua interpretação, já que é a própria Bíblia quem diz.
Rebatendo objeções
Tendo analisado o texto, vamos rebater algumas objeções. A primeira delas foi feita por irmão que sempre comenta nossas postagens sobre o sábado. Ele diz em determinado comentário:
“O que NÃO encontramos nessa passagem? NÃO encontramos na passagem da criação sobre o sétimo dia a fórmula ‘e houve tarde e houve manhã, o sétimo dia’, como ocorre nos outros seis dias da criação”.
Mais adiante explica:
“O relato de Gênesis não menciona um fim para o descanso de Deus no sétimo dia. É apresentado como um estado permanente pela omissão da frase “e houve tarde e houve manhã, o sétimo dia”. O fato de que o relato de Gênesis é tão cuidadosamente construído indica que essa omissão não foi acidental”.
Esse argumento está errado porque distorce completamente o texto e seu sentido. A expressão “houve tarde e manhã”, presente entre um dia e outro é omitido do sábado porque o relato está se referindo apenas a uma semana. A expressão cumpre a função de elo entre o dia que finda e o outro que se inicia. Uma vez que não há interesse em falar sobre a segunda semana, mas apenas sobre a primeira, não há razão lógica para se pôr uma expressão com função de ligação depois do dia de sábado. A omissão meramente indica que o relato não quis incluir na semana o início do dia de outra semana.
Ademais, como já demonstrado, o texto faz questão de diferir o sábado dos demais dias, o que explica de modo satisfatório a escolha do autor de não repetir a mesma fórmula ao fim do sábado. A quebra é proposital. Ele não quer terminar com um elo para outro dia, que dá a ideia de dia normal, de continuidade da semana. Em vez disso, ele prefere terminar afirmando que o sábado foi abençoado e santificado. Isso fecha o relato, dá ideia de fim da semana e coroa a criação. Trata-se de um desfecho linguístico. A semana da criação acabou ali e o sétimo dia é importante porque é o dia do descanso.
O irmão alega que o relato não põe um fim ao descanso do sétimo dia, o que indicaria um estado permanente. Isso distorce o sentido do texto, que contrasta o descanso do sétimo dia ao trabalho nos outros seis. Em outras palavras, há um trabalho nos seis dias e um descanso desse trabalho no sétimo. Não faz sentido dizer, por exemplo, que a partir da segunda semana os dias de trabalho se tornaram, ao mesmo tempo, os dias de descanso (pois o descanso era permanente). Descanso não é trabalho e o sentido que o texto traz é justamente o de separar os dias de um dos dias de outro.
Além disso, como também já dito, o texto de Êxodo explica o texto de Gênesis. Lá vemos que o dia de descanso do homem era baseado no dia que Deus descansou após a criação, o que quer dizer, naturalmente, que estamos falando de dias literais com começo, meio e fim. Se assim não fosse, o texto de Êxodo não faria qualquer sentido, já que estaria se baseando em um estado permanente de descanso para fixar um dia e não em um dia literal instituído por Deus como modelo. A argumentação do irmão carece de lógica e peca contra princípios básicos de interpretação.
O irmão continua:
“NÃO encontramos nenhuma menção da palavra ‘Sábado’, no livro de Gênesis; NÃO encontramos nenhum mandamento para a humanidade descansar no relato de Gênesis” (A Bíblia relata que a primeira vez que alguém foi ordenado a guardar o Sábado foi em Êxodo 16:23-30.); Nada é mencionado expressamente do homem em relação ao descanso do sétimo dia da criação”.
O irmão se utiliza nesse trecho do “argumento do silêncio”. Funciona assim: se Gênesis não menciona o sábado durante o livro, isso significa que não havia um mandamento nesse sentido. Esse tipo de argumento, quando pretende ser uma prova cabal de alguma alegação, é classificado pelos manuais de lógica formal como uma falácia, isto é, um argumento ilógico. Nunca se pode argumentar cabalmente apelando para o silêncio, pois o silêncio em relação a algo não necessariamente suporta a conclusão almejada. Todo o bom debatedor e conhecedor das regras básicas da lógica sabe disso.
Perceba que se levarmos o argumento do irmão à sério, enfrentaremos graves problemas na interpretação da Bíblia. Por exemplo, não encontramos o mandamento “não matarás” antes de Caim matar Abel. Pelo argumento do silêncio que o irmão usa, então não o mandamento não existia. Logo, Caim não pode ser culpado de seu pecado. Também não encontramos o mandamento “não adulterarás” antes de Lameque tomar duas esposas para si. Logo, Lameque não pode ser culpado de pecar. E por aí vai. Como podemos ver, não faz sentido. É absurdo.
Algo importante a ser enfatizado é o seguinte: embora Gênesis contenha relatos sobre Adão, Eva, Caim, Abel, Sete, Enoque, Matusalém, Noé, Abraão, Isaque, Jacó, José, etc., o livro não foi escrito na época dessas pessoas ou para essas pessoas. Foi escrito centenas de anos depois por Moisés e para o povo hebreu. Moisés, evidentemente, fez um resumo daquilo que julgou importante para o povo hebreu. A ausência de alguns detalhes não prova nada a não ser que Moisés não os julgou relevantes.
No que tange a questão do sábado, a ausência desse termo durante o livro de Gênesis e de relatos falando sobre a prática de guardá-lo pode ter ocorrido, por exemplo, em função de Moisés ter escrito cinco livros. Nos demais livros, Moisés fala fartamente sobre o sábado. Pode não ter visto necessidade de falar dele em Gênesis. Lembremos ainda que Gênesis cobre cerca de dois mil e quinhentos anos de história. É óbvio que muita coisa ficou de fora e isso é perfeitamente compreensível. Gênesis, na verdade, é um resumo bem sucinto de um grande fluxo de eventos.
Ademais, Gênesis, o primeiro livro de Moisés, tem objetivo muito mais histórico do que legal. É nos quatro demais que Moisés vai tratar extensivamente de leis. Assim, ele pode ter estruturado Gênesis para apenas citar sutilmente alguns pontos que ele abordaria em detalhe nas outras obras, com foco na legislação. Uma vez que os livros são integrados, como a Bíblia também o é, não há problema algum em um livro explicar e ampliar o outro. É o que se espera. E é o que ocorre em vários livros da Bíblia.
Outra questão que pode explicar a ausência de menção ao sábado durante o livro de Gênesis é uma noção de estratégia. Perceba que durante mais de dois mil anos não houve um povo de Deus específico sobre a terra. Isso não deu certo. Os povos acabaram se desviando do Deus verdadeiro, motivo pelo qual o Senhor formou um povo exclusivo para si. Por esta razão, Deus é frequentemente chamado de Deus de Israel e Israel é chamado de povo de Deus. Ora, mas isso não significa que Deus seja apenas uma divindade nacional pertencente apenas a Israel, com poder e jurisdição apenas sobre essa nação. Também não quer dizer apenas os israelitas poderiam adorar a Deus e os demais povos não fossem igualmente pertencentes a Deus no sentido mais amplo da palavra. O foco é colocado sobre Israel porque Deus estava criando um povo exclusivo para guardar as suas verdades e preparar o caminho para o Messias. Isso não muda em nada o fato de que Deus era (e é) Deus sobre todos.
O que isso tudo quer dizer é que Deus forjou um povo exclusivo com um sentimento de povo exclusivo de Deus, justamente para separá-los do paganismo. De certa forma, tudo passou a girar em torno deles. Dentro desse prisma é perfeitamente plausível entender que princípios que todos os homens deveriam seguir, mas não seguiam, estavam sendo dados aos israelitas, como se isso fosse exclusivo. Quando a Bíblia afirma solenemente, por exemplo: “Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor” (Dt 6:4), não está restringindo Deus a Israel; está dando a Israel algo que todos os homens deveriam seguir, tornava-se como se fosse exclusivo. Quando a Bíblia se refere a Deus como “o Deus de Abraão, Isaque e Jacó”, não quer dizer que Deus pertencia apenas a eles ou à sua descendência, mas apenas que eles o seguiam a quem todos os homens deveriam e poderiam seguir, embora não o fizessem, criando a aparência de exclusividade por parte do povo hebreu.
A questão do sábado não é diferente. Quando a Bíblia afirma que o sábado foi dado a Israel e enfatiza as histórias de Israel em relação ao sábado, isso ocorre apenas porque o que todos os homens deveriam fazer, mas deixaram de lado, Deus deu a Israel, seu povo exclusivo para manter suas verdades e preparar o caminho ao Messias.
O irmão continua:
“Por outro lado, Em nenhuma passagem o texto bíblico afirma que os homens devam guardar o sábado judeu, para comemorar o antigo descanso da criação. O sábado era para comemorar o livramento do Egito (Deuteronômio 5.15), que os judeus deveriam “lembrar-se” (Êxodo 20.8).
Acho curioso quando usam esse argumento. A tática é simples. Ignora-se que a razão dada em Êxodo 20:8-11 para a guarda do sábado é o descanso de Deus na criação. E logo depois se utiliza a passagem de Deuteronômio 5:15, que elenca como razão o livramento do Egito. A desonestidade consiste no fato de que não se pode escolher uma passagem bíblica e descartar a outra. Eu poderia usar o mesmo argumento no caminho oposto, respondendo o texto de Dt 5:15 com o de Êx 20:8-11. E então? Ficamos em um impasse. Tanto eu quanto o irmão precisamos explicar por que existem essas duas razões? Ignorar uma delas é desonestidade.
Existem pelo menos três explicações para Deus oferecer essas duas razões. A primeira delas é a seguinte: a razão básica para todo o ser humano guardar o sábado é porque Deus, o Criador, descansou nesse dia e o fez símbolo da reverência ao Criador. Mas como as nações se desviaram de Deus, nenhuma delas guardava mais o sábado e Deus elegeu uma nação própria para obedecer seus mandamentos, então ele oferece uma razão específica para Israel guardar esse dia: a libertação dele do Egito. Isso não anula a primeira razão, mas soma. O hebreu deveria guardar o sábado porque (1) Deus descansou nesse dia e porque (2) seu povo foi liberto do Egito. É evidente que para quem não era hebreu, a segunda razão não faria muito sentido. Mas a primeira continuava valendo, pois era uma razão global.
A segunda explicação é: os hebreus eram escravos no Egito. Escravos não tem liberdade para dedicar um dia inteiro a Deus. Nesse sentido, o sábado passava a ter uma forte relação com a libertação, pois a partir de agora o povo poderia guardar o sábado. Em suma, o sábado é para quem é livre. O escravo não tem liberdade para guarda-lo. Essa era uma razão que impactava muito os hebreus, já que essa era a história deles. Uma vez que Deus tinha uma missão a ser cumprida por Israel, fortalecer esses laços entre os preceitos divinos e a história/identidade do povo/não era uma estratégia importante para o êxito da missão.
A terceira explicação é: conquanto Deus tenha dado o sábado no Éden, ao fim da criação, é fato incontestável que ele foi esquecido no mundo inteiro, incluindo os hebreus. Não sabemos, mas o povo hebreu pode ter perdido o hábito de guardar o sábado no Egito por cem, duzentos, trezentos anos. A escravidão certamente consolidou isso. Então, quando o povo sai do Egito, vê Deus restaurar um mandamento antigo que há muito não era mais guardado. Isso mais uma vez se relaciona à libertação. É a saída do Egito que torna isso possível. Assim, o sábado, instituído como memorial do Criador, assume uma relação, para os hebreus, com o Êxodo. O Egito passa a representar escravidão e esquecimento dos mandamentos de Deus e o sábado, em contraponto, a liberdade de adorar a Deus e o resgate dos preceitos divinos. O povo agora estava livre para ter o seu dia de descanso e cumprir o mandamento esquecido.
Mais uma vez devemos dizer, então: essa segunda possível razão não anula a primeira para guardar o sábado, mas sim a confirma. O hebreu deveria lembrar que antes ele não podia descansar no sábado, como Deus descansou, porque era escravo em terra estranha e seu povo havia perdido o costume. Agora, porém, com a saída do Egito, ele estava livre para cumprir a ordenança de Deus. A explicação do irmão, no entanto, não é satisfatória, pois ele não procura harmonizar os dois textos, mas apenas escolher a razão que o agrada, desfazendo-se da outra.
Um exemplo de que o sábado não estava apenas relacionado ao povo hebreu é que em Isaías 56:1-8, os estrangeiros são convidados a guardar o sábado também. E não só convidados. Isso é colocado como requisito para servir ao Senhor, juntamente com não fazer o mal. Ora, se o sábado fosse guardado apenas para comemorar a libertação do povo hebreu do Egito, não faria sentido estrangeiros tomarem parte nessa comemoração, uma vez que não fazem parte do povo hebreu. E não faria sentido Deus exigir isso como requisito para se achegar a Ele, já que a questão era exclusiva dos hebreus. O esperado seria que Deus aceitasse estrangeiros sem impor a eles a questão do sábado.
Da mesma maneira, o texto de Êxodo 20:8-11 inclui os estrangeiros que porventura estejam hospedados na casa de um israelita na celebração do sábado. Isso não faria sentido se o sábado fosse mero festival judaico que intentasse comemorar a fuga do Egito. A comemoração não ser vedada os estrangeiros pode até ser compreensível, mas ser imposta é ilógico. A não ser, é claro, que além da razão específica dos hebreus, houvesse também uma razão global. Bom, de fato, essa razão está explícita em Gênesis 2:1-3 e em Êxodo 20:8-11.
Um adendo: em Ezequiel 20:12 e 20:20, Deus afirma que deu os sábados dele como sinal para Israel. Longe de isso significar que o sábado foi dado apenas aos hebreus, o texto pode ser tranquilamente interpretado da seguinte forma: os sábados que já eram de Deus, pois ele os estabeleceu no Éden para a humanidade, Ele resolveu dar aos hebreus como sinal. Por quê? Porque como ninguém mais seguia, o dia passou a ser um sinal, uma marca, um selo capaz de distinguir o povo que seguia o Deus verdadeiro dos que serviam a deuses falsos. Isso não exclui ninguém da obrigação de guardar o sábado, apenas criou um sinal visível para diferir os povos.
Analogia do casamento
Fizemos um texto em que comparamos a natureza do sábado com a do casamento. O irmão não compreendeu o sentido do texto. Explicamos aqui: levando em conta que o Senhor instituiu o sábado no Éden, antes da queda, sua guarda nada tem a ver com rituais passageiros que prefiguravam o sacrifício de Cristo. Ele está relacionado com o descanso de Deus em coroação à obra da criação, o que nos remete a Deus como O Criador. A cruz não desfaz este fato. Não haveria lógica nisso. A cruz tornou obsoletos apenas as figuras do sacrifício de Cristo, como o sangue de animais, as festas/feriados relacionados aos serviços sacrificais no templo, a circuncisão e os preceitos ligados à teocracia israelita. É o que a Bíblia diz.
Da mesma forma, o Senhor instituiu o casamento no Éden, antes da queda. Ele nada tem a ver com rituais passageiros que prefiguravam o sacrifício de Cristo. Está relacionado com o símbolo da união entre Cristo e a Igreja, Deus e seu povo, e serve também, nesta terra, para a procriação. A cruz também não desfaz este fato. Não haveria lógica. Assim, tendo uma natureza semelhante a do casamento, o sábado não deve ser incluído como uma instituição obsoleta anulada pela cruz.
Ritual x Moral
Em um dos comentários feitos pelo referido irmão, ele alegou que o sábado não pode ser considerado uma instituição moral, pois se trata de um ritual. Sustentou ainda que os princípios morais nunca possuem início, sendo de natureza eterna. Como não é esse o caso do sábado, ele não pode ser considerado moral.
O irmão está errado. Para começar, o fato de um mandamento ter um caráter ritualístico não implica que ele não deva ser observado. O Senhor nos ordena à prática de diversos rituais como o batismo, a santa ceia e o congregar com os irmãos. Também incentiva outros como o ritual do jejum. Nenhum bom cristão faria pouco caso desses rituais só porque são rituais. Um bom cristão se guia pelo “Assim diz o Senhor”. Se o Senhor diz para observar uma prática, pouco importa a sua natureza, ela deve ser cumprida. Então, se o sábado pode ser considerado um ritual, tal como o batismo, a santa ceia, a reunião com os irmãos e o jejum, isso não é razão para que nos desfaçamos dele.
Um segundo ponto a comentar é que nem todos os princípios morais são eternos. Nós demos alguns exemplos em um dos comentários que fizemos, mas o irmão parece ter nos ignorado. Então, oferecemos os exemplos novamente. O casamento entre irmãos e irmãs, tios e sobrinhas, não era proibido nas primeiras gerações do mundo. Deus tornou isso uma abominação depois. Por quê? Podemos supor pelo menos duas razões: (1) a degeneração física do ser humano tornou esse tipo de relação prejudicial do ponto de vista biológico; (2) a degeneração moral do ser humano tornou esse tipo de relação perigosa do ponto de vista moral e familiar, e prejudicial do ponto de vista psicológico, emocional, mental e espiritual. Visando a saúde do homem em todas as áreas, Deus tornou, então, a relação proibida, já que ela se tornou ruim em si mesma. Aqui temos um exemplo de princípio moral que teve início no tempo.
O mandamento de honrar pai e mãe é outro exemplo. Esse princípio só começa a existir quando passam a existir pais e mães. O mandamento não existiria se Adão e Eva não tivessem filhos e fossem os únicos habitantes da terra. O mandamento não existe entre os anjos. O mandamento não existirá quando formos para o céu, já que não haverá mais relação de maternidade e paternidade. Alguém poderia tentar fugir ao óbvio aqui com o argumento de que, nesses casos, Deus é nosso pai e mãe. Mas isso é uma clara fuga da discussão. Já há mandamento em relação a honrar a Deus. O mandamento de honrar pai e mãe se refere a progenitores físicos: é o pai e a mãe que conhecemos no mundo. Esse mandamento teve início no tempo e terá fim.
Não adulterarás também é um mandamento que só passa a existir quando temos dois gêneros sexuais, a instituição do matrimônio, a estruturação psicológica e física do ser humano como alguém que precisa ser fiel ao cônjuge, o conceito natural de casal e, claro, mais que duas pessoas no mundo, já que não se pode cometer adultério sem que haja, no mínimo, outra pessoa para cobiçar além do seu cônjuge. Podemos dizer, assim, que não havia adultério quando só Adão e Eva estavam no mundo, mesmo depois o pecado. E não haverá o princípio moral “não adulterarás” quando estivermos no céu e na nova terra, já que não seremos seres sexuais.
O leitor percebe? Todos esses princípios morais surgiram em algum ponto do tempo. E não há qualquer razão para crer que eles não devem ser seguidos por conta disso. Não há na Bíblia, aliás, nada que nos oriente a seguir princípios ditados por Deus apenas se eles forem eternos. Ao contrário, a Bíblia nos orienta a seguir tudo o que o Senhor nos manda. Lembremo-nos que o mundo se tonou cruel e sofrível como é por conta de um mero fruto proibido que Deus ordenou que o ser humano não comesse. Ser obediente a Deus é sempre a melhor opção.
Desonestidade
Num dos últimos comentários do referido irmão, ele nos acusou de não ter qualquer base bíblica para sustentar que o sábado é uma instituição pré-queda, mas de defender essa concepção com base nos escritos de Ellen White. É triste que o irmão tenha sido tão desonesto. Nossas doutrinas se baseiam na Bíblia e temos demonstrado isso de modo detalhado e consistente ao longo de nossos posts. Temos escrito longamente sobre o sábado, sempre utilizando a Bíblia, as regras básicas de interpretação de texto e o raciocínio lógico. Jamais utilizamos Ellen White para sustentar uma doutrina que não tenha embasamento bíblico, o que, aliás, seria fortemente criticado por ela, se viva.
Nenhuma doutrina fundamental da Igreja Adventista é baseada em visões da Sra. White e ela rechaçava com veemência que seus escritos fossem usados para vencer rixas teológicas. Durante toda a sua vida, a Sra. White exortou as pessoas a se dirigirem à Bíblia e sua vasta obra reflete exatamente isso. O que fizemos nesse post foi seguir os conselhos de Ellen White, indo à Bíblia e somente à Bíblia. Uma vez que nenhum de seus escritos foi citado aqui para embasar qualquer coisa, pedimos ao irmão que se concentre na Bíblia. Sola Scriptura.
Por Davi Caldas
Fonte: Reação Adventista