O clipe infeliz de Cassiane e o dever cristão de denunciar criminosos

Um clipe da cantora evangélica Cassiane está gerando bastante polêmica. O clipe retrata uma mulher cristã que sofre violência física e verbal do marido. As cenas do vídeo se dividem entre a mulher sofrendo agressões e mostrando-se devota a Deus, sempre orando e lendo a Bíblia. No fim, ela decide ir embora de casa, deixando um bilhete dentro da Bíblia. O marido chega, abre a Bíblia, lê o bilhete (onde ela diz que o perdoa) e resolve ir atrás dela. A narrativa dá a entender que ele se arrepende, se converte e ela volta para casa com ele. A música da cantora fala sobre o poder de Deus em mudar situações.

Ora, por mais que seja verdade que Deus tenha poder para mudar situações, a construção desse clipe foi extremamente infeliz. O vídeo dá uma ENORME margem para se pensar (se é que não ensina mesmo) que a mulher cristã deve aguentar agressões físicas e verbais como uma ovelha levada ao matadouro, sem denunciar o marido agressor à polícia. De fato, algumas mulheres cristãs pensam que é exatamente isso que a Bíblia ensina. E certamente há pastores e líderes religiosos coniventes com esse pensamento. Mas é isso que a Bíblia sustenta? Não, não é.

Em primeiro lugar, a Bíblia concebe a vida de cada indivíduo como sendo preciosa (Gn 1:26, 9:6; Êx 21:22-27; Ez 18:32, 33:11; Jo 3:16; I Co 6:20, 7:23). Por conseguinte, é evidente que podemos defender nossa própria vida e integridade física. Isso não é apenas um direito nosso, mas um dever. A vida é o maior dos atributos que Deus nos deu para administrar, de modo que protegê-la é um imperativo. As únicas exceções a essa regras ocorrem quando (1) a salvação física ou espiritual de outras pessoas depende de nosso sacrifício ou (2) o ato de honrar a Deus está em jogo. No entanto, receber agressões físicas do marido não envolve salvação de outras pessoas, muito menos honra a Deus. Ao contrário, Deus é desonrado por meio dessas agressões e o sacrifício físico e psicológico da esposa em nada importa para a pregação do evangelho. Assim, é direito e até dever da esposa agredida procurar ajuda para sair dessa situação, sobretudo ajuda policial. Deus a quer viva e integra fisicamente.

Em segundo lugar, agressão física à esposa é crime em nosso país e, felizmente, na maior parte do mundo atual. Uma vez que podemos e devemos ser fieis às leis civis de nosso país (Rm 13:1-10; I Pd 2:11-17; Mt 22:15-22; Mc 12:13-17; Lc 20:20-26; At 25:8-10), então é direito e obrigação da mulher cristã entregar seu marido às autoridades por conta de seu crime. Ele deve pagar por isso. Um agressor de mulheres, aliás, não causa mal apenas à sua esposa, mas à toda a sociedade, pois dá exemplo negativo de violência contra os mais fracos, além de pôr em risco a vida de uma cidadã.

Em terceiro lugar, entregar o marido às autoridades e escapar das agressões não faz da esposa menos cristã. É perfeitamente possível ela agir assim e continuar também orando por ele. Aliás, Jesus deixou claro que perdoar o criminoso no nível moral/pessoal não significa livrá-lo da justiça civil (Lc 23:39-43; Jo 19:31-33). Os criminosos devem arcar com as consequências de seus crimes.

Em quarto lugar, a Bíblia cobra uma boa postura do marido. Para Paulo, a obrigação do marido é amar a esposa “como também Cristo amou a Igreja e se entregou por ela” (Ef 5:25) e “como ama o próprio corpo” (Ef 5:28), pois “ninguém jamais odiou o próprio corpo. Ao contrário, o alimenta e cuida dele, como também Cristo faz com a Igreja, porque somos membros do seu corpo” (Ef 5:29-30). Paulo também vai exortar os maridos a não tratar suas esposas com amargura (Cl 3:19).

Pedro aborda ainda outra aspecto interessante. Segundo ele, se o marido não cuidar de sua esposa como vaso mais frágil e, ao mesmo tempo, co-herdeira da mesma graça de vida, suas orações não serão ouvidas por Deus (I Pd 3:7).

Então, se um homem agride sua esposa fisicamente, não está amando-a como a si mesmo, muito menos como Cristo amou a Igreja. Ele está indo contra as ordens de Deus. Ora, se o Estado é um ministro de Deus para punir o mal (Rm 13:3-5) e o marido que agride também está cometendo crime civil, nada mais justo que usar o Estado como ministro de Deus para punir o marido.

Alguns poderiam argumentar aqui: “Ah, mas tem casos em que a mulher casa com um homem que já a agredia antes. Casou porque quis. Agora precisa agüentar”. Mas esse não é um pensamento cristão, nem lógico. O fato de uma mulher errar ao casar com um sujeito que já lhe agredia antes do casamento não implica que a agressão é justa. O erro dela não justifica o crime e a imoralidade do seu marido. Muito menos ameniza o perigo que essa mulher corre.

Há, inclusive, um texto bíblico que nos traz uma reflexão sobre a questão da integridade física. Quando a escravidão/servidão era comum no mundo antigo (a ponto de até as pessoas endividadas optarem por se tornarem escravas para pagar as dívidas), Yahweh se preocupou em criar princípios legais, em Israel, que protegessem os servos de agressões físicas. Uma delas era a de que um escravo fugido não poderia ser devolvido ao seu dono (Dt 23:15-16). Essa lei ia na contramão de códigos legais do oriente como o de Hamurabi e dos Hititas, que não só obrigavam a entrega do escravo fugido ao dono como puniam a pessoa que não entregasse. A Torah, no entanto, intuía salvar o servo de prováveis agressões. Se ele fugiu é porque estava sendo maltratado.

Ora, se o servo em Israel tinha esse e outros direitos garantidos na Torah para que sua integridade física fosse preservada, quanto mais não teria uma mulher no contexto do Novo Testamento? Lembremos que no Novo Testamento, a questão da igualdade diante de Deus para a salvação é radicalmente enfatizada. Paulo vai dizer: “Assim sendo, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vocês são um em Cristo Jesus” (Gl 3:28). Se não há diferença para a salvação eterna, por que haveria diferença para a integridade física? Questão de lógica.

Os pontos aqui trabalhados também se aplicam, evidentemente, ao marido que recebe agressões físicas da esposa. Embora a mulher tenha menos força que o homem, existem casos de homens que são agredidos com objetos pontiagudos, vidro, facas, etc. Além do mais, se uma mulher tem por hábito agredir fisicamente, ainda que com as mãos, pode vir um dia a usar objetos mais letais para isso. Não é sensato, portanto, que o homem se exponha a esse risco. Em resumo, se um cônjuge é agredido pelo outro, deve denunciá-lo às autoridades pelo seu crime e procurar sair de casa, morando em outro lugar. A questão aqui, note-se, não é divórcio e novo casamento (tema que nem está sendo tratado nesse texto), mas a mera autopreservação. O cônjuge tem o direito de preservar a própria vida e a integridade física.

O clipe de Cassiane talvez tenha sido feito com a melhor das intenções. Mas foi infeliz e imprudente. Que Deus é bom e poderoso, não duvidamos. Mas isso não impede o ser humano, no geral, de fazer maldades e cometer crimes. Dar margem para mulheres agredidas pensarem que não devem denunciar seus maridos criminosos (ou que homens agredidos não devem denunciar suas esposas criminosas) é dar a eles maior condição de continuarem cometendo crime. Não deixa de ser algo benéfico para o bandido e maléfico para a vítima. Se defendemos a vida e a dignidade da pessoa humana, devemos também cuidar para que agressores paguem por suas agressões e agredidos sejam postos a salvo. Não se trata de vingança, mas de mera justiça.

Por Davi Caldas

Fonte: Reação Adventista

Sobre Weleson Fernandes

Escritor & Evangelista da União Central Brasileira

Verifique também

A Bíblia não é um Self-Service

“Toda a Escritura é inspirada por Deus, e útil para ensinar, para repreender, para corrigir …

Breve Análise da Unidade Protestante

                Aproveitando o mês de outubro, quando se …

Voltando para casa

Deus criou um dia para si (Sábado), a fim de ser lembrado como Criador e …

Deixe uma resposta

×

Sejam Bem Vindos!

Sejam bem Vindo ao Portal Weleson Fernandes !  Deixe um recado, assim que possível irei retornar

×