Por que Jesus não condenou a mulher adúltera? Uma análise jurídica de João 8:1-11

A passagem de João 8:1-11 é, sem dúvida, uma das mais famosas do Novo Testamento e da Bíblia no geral. Para muitos crentes e até descrentes, a história de Jesus deixando de condenar uma mulher adúltera ao apedrejamento é um dos melhores símbolos do amor e da misericórdia de Cristo. E a interpretação padrão de muitas pessoas em relação ao evento é: “Mesmo a Lei de Moisés ordenando a condenação da mulher adúltera à morte e Jesus tendo autoridade moral para fazê-lo, não a condenou. Logo, Jesus contrariou a Lei de Moisés, abolindo-a em favor da misericórdia e do amor”. O que poucos percebem são as incoerências bíblicas dessa interpretação e também suas implicações negativas para a doutrina bíblica.

O objetivo desse artigo, portanto, é avaliar por que a visão de Jesus como um anulador da Lei não é compatível com a Bíblia, expor as implicações desse pensamento e, por fim, explicar porque Cristo não condenou a mulher adúltera, à luz de uma análise jurídica.

Detalhes do texto

Para começar a entender o texto de João 8 corretamente é preciso fazer uma leitura que separe e analise cada ponto da narrativa. Todos esses pontos são curiosos e precisam de uma explicação. Primeiro: os rabinos perguntam a Jesus o que fazer com a mulher que, segundo eles, havia sido pega em adultério (Jo 8:3-5). Segundo: o homem com quem ela teria adulterado não estava presente. Terceiro: Jesus sugere que quem estivesse sem pecado poderia condená-la (Jo 8:7). Quarto: todos os acusadores da mulher vão embora do “julgamento” (Jo 8:8-9). Vamos analisar esses pontos.

Primeiro ponto

Por que os rabinos perguntaram a Jesus o que fazer com a mulher? Embora o texto diga que eles desejavam acusar Jesus de alguma coisa, era preciso uma razão plausível que justificasse a ida deles até Jesus para perguntar. Imagine, por exemplo, que você está conversando com alguns amigos e um juiz interrompa a conversa, trazendo um criminoso arrastado e te perguntando: “O que devo fazer com ele?”. Provavelmente você pensaria: “Ué, ele não é o juiz? Por que está vindo até mim? E por que ele seria julgado aqui e não num tribunal?”. Na verdade, todos os presentes pensariam o mesmo.

Isso indica que havia uma dúvida quanto a se a mulher poderia/deveria ser condenada ou não. Ora, mas se a Lei de Moisés ordenava, qual era a dúvida? O que justificava, para todos, a ida dos rabinos até Jesus? A explicação é simples. A pena de morte não estava sendo aplicada pelos juízes de Israel. Na época, Israel estava debaixo do domínio do império romano e Roma reservava apenas para si o direito de condenar pessoas à morte (ver Jo 18:28-40, 19:10-16; Lc 23:1-24; Mt 27:1-2,15-26; Mc 14:61-65, 15:1-15; At 18:12-15, 21:27-33, 23:26-29, 25:8-12). Os juízes judeus, portanto, não aplicavam mais a pena de morte. Pelo menos, não oficialmente. A questão que se levantava é: seria correto deixar de aplicar a Lei de Moisés por causa da lei romana? Seria correto, aliás, seguir a lei romana? Isso não seria contrariar a Deus?

A justificativa para ir a Jesus, portanto, era que uma parte da Torah não estava mais sendo aplicada. Todos sabiam. Como Jesus era reconhecido pelo povo como um grande intérprete da Lei, havia sentido nos juízes fazerem tal consulta. E então? Lei de Moisés ou lei romana? A questão era realmente interessante. Mas também era uma questão perfeita para ter algo de que acusar Jesus. Se ele dissesse para obedecer a lei romana, os rabinos o acusariam de transgredir a Lei de Moisés. Mesmo os juízes também não aplicando a pena de morte, ainda se poderia alegar que Jesus, como Messias que ele insinuava ser, deveria ter autoridade para restaurar a Lei. Por outro lado, se Jesus dissesse para obedecer a Lei de Moisés, os rabinos o acusariam de se levantar contra as leis de Roma. Ele seria visto como um zelote e condenado pelos romanos. Para quem assistia, a questão toda era bastante pertinente.

Mas como os próprios rabinos viam a questão no dia a dia? Há algumas pistas na Bíblia e na história. Em primeiro lugar, embora os judeus não fizessem divisão formal da Lei de Deus em três partes (moral, cerimonial e civil) – algo que muitos cristãos fazem –, eles tinham noção de que os mandamentos não tinham a mesma natureza, podendo não se aplicar a todas as situações. Os judeus sabiam, por exemplo, que deveriam guardar os dez mandamentos em qualquer país e tempo que estivessem. Por quê? Porque esses mandamentos tinham a ver com o trato com Deus e com o próximo. Além disso, eles eram o âmago da Lei de Deus, “as dez palavras”, escritas pelo próprio dedo de Yahweh, em tábuas de pedra, por duas vezes, e postas na Arca da Aliança (Êx 32:15-16, 34:1-4,28-29; Dt 10:1-5; Êx 25:16-21; Dt 10:1-5; I Rs 8:9; II Cr 5:10).

Não obstante, os judeus também sabiam que estando fora de Israel, mandamentos referentes à organização e as relações dos israelitas enquanto estado/nação (o que chamamos de leis civis hoje) já não tinha aplicação. Fora de Israel valia a lei do país em que se estava. Isso não equivalia a negar a Torah, mas a reconhecer que algumas leis só tinham aplicação em Israel.

Entender a questão da aplicabilidade da Torah é muito importante. Existe um mito de que todo o israelita estava obrigado a seguir os 613 mandamentos da Torah. Mas a verdade é que muitos desses mandamentos se aplicam a uns e não a outros. Há algumas regras só para mulheres na Torah, outras só para homens, outras só para estrangeiros, outras só para sacerdotes, outras só para juízes, outras só para tempos de guerra, etc. O erro de muitos intérpretes é olhar todas as ordenanças da Torah como aplicáveis para todos, em qualquer lugar, tempo e contexto. Essa pressuposição, além de estar errada, não era endossada pelos judeus. Seguir “toda a Lei” sempre foi sinônimo de “seguir toda a Lei aplicável no contexto”.

Esse tipo de raciocínio levou os judeus a adotarem, por exemplo, um princípio chamado “pikuach nephesh”, que significa “salvar uma vida”. Segundo esse princípio, diversos mandamentos da Torah podem tornar-se inaplicáveis em situações onde uma vida precisa ser salva. Dois textos normalmente usados para embasar isso são Levíticos 18:5 e Ezequiel 20:11, onde Yahweh diz que deu os mandamentos para que o homem viva neles. Assim sendo, muitos mandamentos perdem seu “espírito” se a implicação de seu cumprimento numa situação específica levar alguém à morte.

Os judeus aplicavam o “pikuach nephesh”, por exemplo, quando precisavam salvar uma vida no sábado. Neste caso, todo o esforço era permitido e tempo gasto era permitido. O princípio, claro, tinha e tem seus limites. Não se poderia evocar o “pikuach nephesh” para blasfemar contra Deus, cometer idolatria, praticar relações sexuais ilícitas ou matar alguém sem ser por legítima defesa. O princípio existe e é conhecido do povo judeu e dos rabinos até hoje.

Por esse princípio, por exemplo, o sacerdote Abiatar deu ao Davi e seus militares os pães da proposição, que só eram permitidos aos sacerdotes (I Sm 21:1-6; Lv 24:9). Ele entendeu que a fome daqueles homens e a importante atividade que estavam desempenhando tornava inaplicável aquele mandamento que nós, cristãos, chamaríamos de “cerimonial”.

Jesus usa essa história para argumentar contra fariseus em Mateus 12:1-8. A acusação era de que os discípulos transgrediram o sábado ao catar espigas para comer enquanto passavam por um campo. A verdade é que não havia pecado ali. Os discípulos não estavam com pás e inchadas fazendo uma colheita. Eles apenas estavam passando, enquanto seguiam o mestre, e saciando uma necessidade física. Ora, se Abiatar não foi condenado por dar pães da proposição para Davi e seus militares, mesmo isso sendo pecado numa situação normal, como os discípulos de Jesus poderiam ser condenados por matar a fome no sábado e numa situação que nem se configurava trabalho? Faltava honestidade por parte daqueles fariseus. Jesus, porém, permanecia fiel à interpretação correta da Torah.

Outro exemplo interessante tem a ver com todo o sistema Levítico. O próprio Yahweh, quando irado contra o povo, anunciava que suspenderia as festas sagradas através de algum contexto de dominação estrangeira (Os 2:11). E há diversas passagens em que Deus diz que prefere misericórdia, obediência e cuidado com o próximo a holocaustos de animais (II Sm 15:22-23; Sl 40:6-10, 50:9-23, 51:16-19; Pv 21:3; Is 1:11-17; Jr 6:19-20; Os 6:4-6 e 14:1-2; Am 5:21-22). Ou seja, os judeus sabiam que os mandamentos de caráter moral tinham aplicabilidade mais abrangente que os mandamentos do sistema Levítico, os quais poderiam ser inviabilizados pelo próprio Deus.

Algumas discussões no Novo Testamento são mais bem compreendidas à luz dessas informações. Por exemplo, quando perguntam a Jesus qual era o principal mandamento da Torah (Mt 22:36-40; Mc 12:28-34; Lc 10:25-37), isso refletia uma tendência judaica de procurar resumir a Torah em um pequeno número de mandamentos básicos. Era algo comum entre os rabinos (como pode ser atestado nos escritos de rabinos famosos do judaísmo dos primeiros séculos, como Hillel e Simlai). Assim, o resumo da Lei nos princípios de amar a Deus acima de tudo e ao próximo como a si mesmo é uma prova de que os judeus tinham sensibilidade para saber que os mandamentos não tinham mesma natureza e aplicabilidade geral.

Apesar disso, o judaísmo nunca produziu unanimidade em muita coisa. É óbvio que existiam discussões a respeito desses assuntos entre os rabinos e escolas diferentes de pensamento. E é claro que os fariseus que odiavam Jesus procuravam impor a ele as interpretações que poderiam condená-lo de alguma forma, independente de eles crerem nelas ou não. Um caso muito semelhante a esse da mulher adúltera é a questão do tributo a César (Mt 22:15-22; Mc 12:13-17; Lc 20:20-26). Os rabinos queriam saber de Jesus se pagar tributo a César seria pecado ou não. O âmago da questão é o mesmo: seguir a Lei de Roma ou seguir a Lei de Moisés? Se o tributo fosse dado a Roma, César estava sendo reconhecido como rei sobre Israel e suas leis como válidas. Se o tributo não fosse dado, os rabinos o levariam diante das autoridades romanas para acusá-lo de insubmissão.

A resposta de Jesus no caso do tributo nos ajuda a entender sua interpretação. Ele diz para ser dado a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Como um bom judeu, Jesus entendia que um israelita só estava obrigado a seguir as leis de caráter civil do país onde vivia. Se um judeu estava em Atenas, deveria seguir as leis de Atenas. Se estava na Etiópia, deveria seguir as leis da Etiópia. Partindo desse princípio, Jesus entendia que se Israel estava sob domínio do império romano, deveria seguir as leis de Roma. Estar em Israel sob domínio estrangeiro era o mesmo que estar em outro país. O domínio estrangeiro fazia a nação de Israel voltar aos status anterior à Lei de Moisés, quando o povo vivia no Egito e seguia suas leis.

Os mandamentos da Torah referentes a vida civil de Israel só tinham aplicabilidade em um Israel independente e com a teocracia em pleno funcionamento. Porém, o Israel da época de Jesus não tinha um juiz geral libertador, nem um rei judeu governando de Jerusalém, nem independência. A própria legitimidade do sistema jurídico dependia de uma hierarquia, já que biblicamente o poder fluía do juiz geral da nação para os demais juízes (Êx 18:13-27; Dt 1:9-18). Sem rei e juiz geral, o sistema dependia de quem dominava Israel, no caso, Roma. O símbolo máximo disso, no caso dos tributos, era a própria moeda corrente entre os judeus, que pertencia a César. Se a face na moeda era de César, o domínio era dele. Então, os judeus deviam tributo a César.

Por outro lado, como bom judeu, Jesus entendia que todos os mandamentos voltados especificamente para a religião de Israel eram mais importantes que os mandamentos referentes ao Estado de Israel. E, dentro desses, tudo o que era voltado diretamente ao trato para com Deus e o próximo, deveriam ser guardados mesmo em um contexto de dominação. Era isso que deveria ser dado a Deus.

Talvez o ponto crucial para confirmar esse mandamento fosse a noção de soberania divina. Jesus, como bom judeu, cria que Deus era soberano. Assim, Israel só estava sob domínio romano porque Deus assim permitiu. E só devia a César porque Deus assim consentiu. Em última instância, estar sob as leis civis de Roma era obra divina. E apenas Yahweh poderia reverter esse quadro. Então, não cabia a um judeu comum, por sua própria iniciativa, tentar retomar a teocracia à força. Esse princípio levaria os apóstolos Paulo e Pedro, por exemplo, a recomendarem respeito às autoridades, independente de serem judias ou não (Rm 13:1-10; I Pd 2:11-17).

As noções usadas por Jesus não eram novidade no judaísmo. Em geral, os fariseus não pensavam muito diferente. Eram os zelotes que nutriam pensamentos mais belicosos e militaristas contra Roma. Os fariseus tendiam a ser mais diplomáticos, aceitando certas restrições civis desde que tivessem liberdade religiosa. E o pensamento majoritário entre os judeus era que quem reverteria essa situação de ser província de Roma era o Messias prometido. Assim como, séculos atrás, Deus sempre levantava um juiz geral libertador quando Israel sofria domínio de uma nação, os judeus esperavam que o Messias viesse libertá-los do domínio romano, restaurando a independência, o trono e a aplicabilidade geral da Torah dentro da nação.

Por essa razão, os rabinos que odiavam Jesus sabiam que era uma ótima estratégia forçá-lo a se colocar contra Roma mesmo quando eles mesmos não se viam obrigados a fazer isso. Ele não era o Messias prometido, descendente de Davi, Rei dos judeus, Filho de Deus? Se sim, então tinha autoridade para restaurar todas as coisas. Cobrar isso dele era colocá-lo numa enrascada. Ou ele assumia um papel revolucionário ou ele seria mal visto por todos. Assumindo o papel revolucionário, ou venceria Roma e assumiria o trono, ou seria morto. Essa é a razão pela qual os rabinos levaram a mulher até Jesus.

Segundo Ponto

Onde estava o homem com quem a mulher teria adulterado? A narrativa deixa claro que apenas a mulher foi levada a Jesus. O homem sequer é mencionado pelos rabinos. O problema é que a Lei de Moisés ordenava a pena de morte para os dois adúlteros, não apenas a mulher (Lv 20:10; Dt 22:22-24).

Há outras questões curiosas aqui. Se a mulher foi flagrada em adultério, é certo que o homem estava junto. Quem era o homem? Por que não o pegaram? Ele fugiu? Se fugiu, como foi que conseguiu fugir? Por que os rabinos não o procuraram antes de levar a mulher até Jesus? E por que não contaram essa parte da história? Como o leitor pode perceber, na ânsia de enredar Jesus, os doutores da Lei não se preocuparam com os detalhes da própria Lei. Pela Lei, a obrigação deles era levar os dois adúlteros para o julgamento.

O erro dos rabinos é um indício bastante forte de que tudo não passou de uma armação com o adúltero. Possivelmente, os doutores tinham combinado com o amante ou cliente da mulher de flagrá-los no ato do adultério e deixá-lo fugir. É pouco provável que o flagrante tenha sido natural. Mas será que os doutores não cogitaram que Jesus poderia apontar essa incongruência? Se sim, devem ter se programado para argumentar que o homem havia fugido e que era melhor condenar só a mulher do que deixar os dois impunes. O argumento é frágil, pois se baseia em uma inferência, não no que de fato está escrito. Jesus poderia responder, por exemplo, que se o adultério envolve dois, não seria justo punir só um. Também poderia dizer que os trâmites de um julgamento formal deveriam ser seguidos de modo cabal para evitar injustiças, não havendo espaço para um julgamento falho nos trâmites. No entanto, ainda assim, o argumento poderia servir para jogar o povo contra Jesus por meio de retórica. Uma vez que o machismo era muito forte, a imagem de uma mulher adúltera sem condenação poderia incitar todo o povo a pressionar Jesus pela condenação.

Terceiro Ponto

Diante da estratégia da cilada dos doutores, Jesus oferece uma resposta que não estava na previsão deles: quem estivesse sem pecado poderia atirar a primeira pedra. O que isso queria dizer? Muitos pensam (eu mesmo já pensei) que Cristo queria dizer que só alguém sem pecado nenhum poderia executar aquela lei. Mas, como notam alguns comentaristas, isso faria da Lei algo contraditório, já que nunca existiu um juiz humano que não tivesse pecado. No entanto, Deus outorgou aos juízes o poder de aplicarem a lei aos criminosos, incluindo a pena de morte. Então, nunca fora necessário ser impecável em absoluto para aplicar a Lei. Se Jesus quisesse dizer isso, certamente seria rebatido pelos rabinos, que diriam com acerto que ninguém jamais foi perfeito.

Jesus, portanto, não estava falando sobre ausência absoluta de pecado. Ele falava da ausência de um ou mais pecados graves, deliberados e/ou constantes. Em suma, Jesus estava exigindo daqueles juízes que estivessem com a vida limpa, a consciência pura, o juízo reto, tal como a Torah também (Dt 16:18-22; Êx 23:6-9). Aqueles homens precisavam ser retos como Jó, de quem o próprio Deus deu bom testemunho (Jó 1:8).

A resposta de Jesus foi extremamente inteligente. Ele concordou tacitamente com a Lei de Moisés, fez lembrar que os juízes precisavam estar limpos diante de Deus e jogou a responsabilidade para eles. No fim das contas, eles teriam de decidir se estavam limpos o suficiente para executar um juízo que Roma nem lhes permitia executar. Eles sabiam não estar limpos. Se optassem por executar o juízo, seriam réus de Deus e talvez de Roma também. Além disso, como a decisão foi colocada nas mãos deles, não poderiam culpar a Jesus nem de transgredir a Torah, nem de se levantar contra Roma.

Há outro ponto relevante aqui. O ato de Jesus jogar a responsabilidade para os doutores da Lei foi totalmente coerente com a Torah e o judaísmo. Jesus, precisamos lembrar, não era um juiz terreno. Ele não fazia parte do Grande Sinédrio, em Jerusalém, nem de algum Pequeno Sinédrio em alguma cidade. Ele era um pregador itinerante que cresceu em Nazaré, cidade não muito importante, e passou os anos da juventude seguindo o ofício de carpinteiro do pai (Mt 13:55; Mc 6:3; Lc 4:22; Jo 6:42). Não foi deixado no templo para ser criado por um sacerdote, como Samuel (I Sm 1:20-28, 2:11,26, 3:1:19) nem recebeu instrução formal aos pés de um rabino famoso, como Paulo (At 22:3 e 5:34). Começou a pregar na Galileia, região de gente considerada xucra por alguns rabinos de Jerusalém. Jesus não era juiz.

A palavra juiz (no grego, krités) é usada poucas vezes no Novo Testamento. Em boa parte delas, o sentido é de alguém que exerce oficialmente a função de julgar causas civis. Em Mateus 5:25 e Lucas 12:58, Jesus aconselha seus seguidores a entrarem em acordo com irmãos a quem devem, a fim de que não sejam entregues a um juiz. Em Lucas 12:13, um homem pede a Jesus que convença o irmão a dividir a herança. Jesus questiona: “Homem, quem me constituiu juiz ou partidor entre vós?” (v. 14). Em Lucas 18:1-6, Jesus conta a parábola do juiz iníquo de uma cidade, o qual julgou a causa de uma mulher por conta de sua insistência. Em Atos 18:15, o procônsul Gálio, procurado por judeus contrários a Paulo que queriam seu julgamento, diz não querer ser juiz dos problemas internos da religião judaica. Em Atos 24:10, Paulo chama o governador Félix de juiz em seu julgamento, dizendo que o mesmo já julgava há anos. Em todos esses casos, vale lembrar, o juiz julgava em um tribunal.

Nenhuma passagem do Novo Testamento coloca Jesus como um juiz terreno julgando casos civis em um tribunal. Na verdade, o próprio evangelho de João descreve Jesus dizendo a Nicodemus que “Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele. Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus” (Jo 3:17-18). Embora o sentido principal dessa passagem seja o de um julgamento divino, é razoável entender que se Jesus não veio a terra com a função de juiz divino, mas de salvador, também não veio com função de juiz terreno.

Jesus era reconhecido pelo povo e até pelos rabinos como um mestre, um professor, um intérprete da Lei. Não por ser “formado” entre os doutores de Jerusalém, mas porque possuía alto nível de conhecimento. Ele era uma espécie de “doutor honoris causa”. E como professor nato, mesmo sem “formação rabínica”, se sentia seguro para acusar alguns rabinos de julgarem pela aparência, não pela “reta justiça” (Jo 7:24) e dizer aos seus seguidores que sua justiça deveria exceder a de escribas e fariseus (Mt 5:20).

Ora, se Jesus não era um juiz terreno, nem os rabinos o viam assim, estava claro que a intenção dos doutores não era propriamente reconhecê-lo como juiz, mas pegá-lo em qualquer contradição que pudesse invalidá-lo como mestre e Messias ou levá-lo a uma condenação pelos romanos. Ao mesmo tempo, se Jesus não era um juiz terreno, sabia que não fazia nenhum sentido ele mesmo aplicar a Lei àquela mulher. Na verdade, se ele fizesse isso, estaria indo contra a Torah, salvo claro, se a interpretação corrente de que o Messias seria um líder militar estivesse correta. Neste caso, Jesus poderia declarar que o tempo de reformar a Torah, assumir o trono judaico e lutar contra os romanos havia chegado. Como os rabinos não criam que ele era mesmo o Messias, isso era o que mais desejavam. Se Jesus, para preservar sua autoridade, iniciasse ali uma revolução, os romanos rapidamente o prenderiam e condenariam à morte.

No entanto, a interpretação corrente sobre a missão e a natureza do Messias estava errada. As profecias indicavam que o Messias, o representante máximo de Israel diante de Deus (e de Deus diante de Israel), viria primeiro para ensinar judeus e gentios sobre a doutrina pura e sofreria rejeição (Is 42:1-9, 49:1-9, 50:1-10, 52:13-15, 53:1-3). As profecias também indicavam que o Messias seria ferido e morreria (Is 53:4-12; Dn 9:24-27; Gn 3:15; Sl 22). Haveria, portanto, um lapso entre o ministério do Messias como mensageiro de Deus e o Messias como rei. Nesse lapso, estava previsto ferimento e morte do pastor. Contudo, influenciados pelo desejo ardente de se verem livres de seus dominadores, os judeus do primeiro século já não conseguiam ver isso e esperavam um Messias revolucionário e vencedor.

Então, voltamos à resposta de Jesus. Ela foi perfeita. Jesus não se arrogou a juiz, não contrariou a Lei de Moisés, não iniciou um debate, nem incentivou uma rebelião contra Roma. Simplesmente colocou as coisas nos devidos lugares, como se dissesse: “Vocês são juízes por direito, não é? O dever de julgar é de vocês. Estão aptos? Se sim, façam como manda a Lei”. Nada ali, no entanto, tornava os doutores aptos a julgar. Aliás, nada ali, como veremos mais adiante, tornava aquele julgamento válido.

Quarto Ponto

Sem ter saída e talvez sentindo dor na consciência, os doutores da Lei vão saindo e restam apenas a mulher e Jesus. O Messias pergunta para a mulher se não havia restado nenhum dos acusadores. Ela confirma que não. E aqui a situação se torna, no sentido jurídico, cômica. Havia ali o julgamento de uma suposta adúltera ocorrendo fora de um tribunal, sem juiz, sem acusadores (já que todos foram embora), sem o adúltero (que não foi levado ao local, nem mencionado), sem investigação minuciosa e num contexto onde as leis civis da teocracia e a própria teocracia não se aplicavam em função do domínio romano.

Em suma, não havia um julgamento de fato ali. A mulher não poderia ser condenada civilmente de maneira alguma. Se Jesus Cristo o fizesse, não estaria apenas incorrendo apenas em falta de amor e misericórdia. Ele estaria quebrando diversos princípios e regras jurídicas da Torah. Mais que isso: Jesus estaria contrariando sua própria missão na terra. Alguns pensam que Jesus não condenou a mulher porque anulou a Lei e o fez porque era Deus. Mas embora Jesus fosse (e é) divino, sua missão na terra não era agir como Deus e resolver as coisas na base do “tapetão”. Veja o que Paulo diz:

“Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz” (Fl 2:5-8).

Em Hebreus, isso fica ainda mais claro:

“Por isso mesmo, convinha que, em todas as coisas, se tornasse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas referentes a Deus e para fazer propiciação pelos pecados do povo. Pois, naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso para socorrer os que são tentados” (Hb 2:17-18).

“Tendo, pois, a Jesus, o Filho de Deus, como grande sumo sacerdote que penetrou os céus, conservemos firmes a nossa confissão. Porque não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb 4:14-15).

Paulo ainda vai enfatizar, em Efésios 4:13, que Jesus Cristo é “homem perfeito” e, em Romanos 8:3-4, que Deus fez por nós o que a lei não poderia fazer por causa da nossa fraqueza, enviando Jesus em forma humano, a fim de vencer o pecado por nós.

Jesus era divino, mas coube a ele descer como homem, enquanto o Pai permanecia na função de Deus do Céu e o Espírito Santo na função de Deus Onipresente. Em função, Jesus veio como submisso ao Pai (Mt 26:42; Jo 5:30, 14:28). Todas as maravilhas que fez não foram porque estava agindo como Deus, mas porque estava agindo como um homem cheio do Espírito Santo e submisso ao Pai. Tanto que ele diz que os discípulos fariam coisas iguais e até maiores em termos de sinais (Jo 14:12). E os apóstolos foram mesmo poderosos em sinais (At 2:43, 5:12, 8:6-13, 9:32-43, 14:1-3, 20:7-12). Como, então, Jesus poderia resolver as coisas com base em uma função que havia deixado temporariamente de lado? Jesus, como homem, precisava ser perfeito na Lei. Não cabia exceção. Não cabia “tapetão”. Se a Lei, de fato, era perfeita como diz o Salmo 19:7, um homem perfeito poderia cumpri-la. E essa era uma das missões de Jesus antes da morte na cruz.

Assim sendo, a não condenação da mulher adúltera estava totalmente de acordo com a Lei e com a missão de Jesus. Fizesse Jesus outra escolha, estaria contrariando a Torah, o judaísmo bíblico, seu ministério e a vontade do Pai. Muitos intérpretes entendem que o foco de João 8:1-11 é falar do amor e da misericórdia de Jesus em detrimento da Lei de Moisés. Mas diante dessa análise jurídica, eu sugeriria que o foco da passagem é falar da superioridade de Cristo na interpretação e aplicação corretas da Lei, em oposição aos mestres hipócritas que queriam enredá-lo. O amor e a misericórdia estão presentes no texto, é claro. Mas, em Jesus, o amor e a misericórdia não estão dissociados da Lei, da interpretação verdadeira, da santidade e da perfeição.

E se o contexto fosse outro?

Alguns podem perguntar: “E se o contexto fosse outro? Jesus condenaria a mulher adúltera?”. Esse tipo de pergunta é muito especulativo. E perguntas especulativas levam a respostas especulativas. Mas podemos imaginar pelo menos dois contextos.

Contexto 1: Israel não estava proibido de executar penas de morte por Roma, os dois adúlteros foram levados para o tribunal, havia um juiz formal e tudo seguiu os trâmites corretos. Bom, neste caso, dificilmente Jesus teria sequer tomado conhecimento do julgamento, já que ele não era juiz. E mesmo que tomasse, dificilmente tomaria alguma providência, pois não se metia nos assuntos das autoridades civis. João Batista, por exemplo, foi preso e morto injustamente pelo Estado (Mc 6:14-29; Mt 11:1-6; Lc 7:18-23). Jesus não foi lá livrá-lo ou interceder por ele. O criminoso na cruz que reconheceu Jesus como Senhor não foi livrado também (Lc 23:39-43; Jo 19:31-32). Foi salvo espiritualmente, porém cumpriu a pena de morte por seus crimes civis. Isso não quer dizer que Jesus não se importava. Apenas significa que sua missão não era ir a tribunais ou prisões para fiscalizar julgamentos e livrar pessoas das condenações civis. Também não quer dizer que essa não seja a missão de muitos cristãos em muitos contextos. Só não era a de Jesus.

Contexto 2: Jesus era juiz formal, Israel não estava proibido de executar penas de morte por Roma, os dois adúlteros foram levados para o tribunal e tudo seguiu os trâmites corretos. Neste caso, a não ser que o Pai enviasse um sinal de que aquela Lei civil deveria ser anulada ou que os dois adúlteros deveriam ser livrados, Jesus certamente iria cumprir a Lei. Mas aqui devemos ponderar: se Deus-Pai, na história real, permitiu que Israel não pudesse aplicar pena de morte, que o adúltero não fosse levado diante de Jesus e que juízes impuros a tentassem julgar, é razoável concluir que Ele não queria que aquela mulher morresse ali. Ele tinha outros planos para ela.

Da mesma forma, Deus não quis que o rei Davi morresse por seu adultério. Ele pode fazer isso? Sim. Ele é o Legislador e o Juiz. Se legisladores humanos podem mudar leis e diversos governantes têm prerrogativa para oferecer perdão jurídico a sentenciados, muito mais Deus também pode fazer essas coisas. A Lei é dele, portanto, está fechada apenas aos homens. Ademais, leis civis são, por definição, contextuais. Elas diferem de lugar para lugar, de tempo para tempo e de contexto para contexto. Elas não são, como as leis morais fundamentais, expressão do caráter de Deus, mas sim expressão do que é apropriado a um contexto.

Assim, se toda a conjuntura da situação permitisse a sentença de morte aos adúlteros, é pouco provável que Deus-Pai permitisse, em sua providência, que a mulher adúltera fosse flagrada em adultério e levada a juízo. Provavelmente, essa situação não existiria e o Pai faria Jesus alcançá-la de outra forma. Não é preciso ir muito longe para pensar nisso. Jesus alcançou a mulher samaritana em João 4, que não tinha uma vida lá muito limpa em termos conjugais. Não foi necessário juízo. Ela se arrependeu dos pecados, aceitou a Cristo e virou sua testemunha na cidade.

Jesus aboliu a Lei?

Aqueles que interpretam Jesus, em João 8:1-11, como um anulador da Lei, retratam um Cristo contraditório. Em um dos seus primeiros discursos, Jesus faz questão de ressaltar:

“Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir. Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra. Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus. Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus” (Mt 5:17-20).

Não podemos contrariar Jesus, nem fazê-lo contraditório. Até o fim desse mundo, nada vai passar da Lei. Mas, então, como entender o fato dos apóstolos desobrigarem os crentes de determinados mandamentos da Lei? E como entender as próprias palavras de Jesus a partir do verso 21, onde Jesus parece contrapor seu ensino à Lei?

Para a primeira questão, a resposta está no já citado conceito de aplicabilidade. A Lei não foi abolida por Jesus. Mas os mandamentos tem aplicabilidades distintas. O rito da circuncisão, por exemplo, foi instituído para os descendentes físicos de Abraão e os que moravam em sua casa (Gn 17:9-14). Em nenhuma passagem do AT Deus impõe o rito para gentios como requisito para o adorarem. E sim, os gentios que queriam adorar a Yahweh eram aceitos por Ele e incentivados a prosseguirem (Is 56:1-8). As leis do sistema Levítico também eram, no geral, específicas para Israel. E sua aplicabilidade como Lei, sabemos, estava ligada ao contexto pré-sacrifício de Cristo (Hb 9:9-28 e 10:1-7. Elas não são abolidas pelo Messias, mas cumpridas nele e, por isso, não mais aplicáveis.

As leis civis/penais, como já mencionamos, estavam ligadas a um contexto de teocracia e independência de Israel. Como Israel estava sob domínio romano, não tinha nenhuma das duas coisas. Logo, valiam as leis romanas, desde que não atentassem contra o trato com Deus e com o próximo (mandamentos morais).

Outras leis, no entanto, tinham caráter geral, como é o caso dos dez mandamentos. A aplicabilidade dessas transcendia o povo judeu. Por isso, não perderam aplicabilidade na Nova Aliança. Já falamos sobre isso detalhadamente em outras postagens.

Para a segunda questão, a resposta está na leitura minuciosa do que Jesus disse. Ele não usa a expressão “Está escrito”, mas “ouvistes que foi dito”. Isso indicava que seu ponto não era se contrapor ao que escrito, mas às leituras rasas e interpretações distorcidas das Escrituras. Por exemplo, Jesus se opõe a ideia de que devemos amar o próximo, mas odiar o inimigo. Por quê? Porque o mandamento “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” existe na Torah (Lv 19:17-18), mas o complemento “e aborrecerás o teu inimigo” não existe. Era uma distorção.

Ao citar a Lei de Talião presente na Torah – “olho por olho, dente por dente” –, a oposição de Jesus também não é à Torah, mas a uma distorção. O princípio em questão não era uma permissão para qualquer um se vingar, mas sim uma regra jurídica que ilustrava uma noção de proporcionalidade. Esta regra só poderia ser aplicada por juízes, após um julgamento formal e para crimes graves (Dt 19:15-21; Lv 24:20; Êx 21:24). A distorção da Lei estava na ideia popular de que ela servia como principio moral pessoal, isto é, como justificativa para vingança e justiça com as próprias mãos.

Para Jesus, não bastava ler e citar as Escrituras. Era preciso interpretá-la de acordo com os contextos corretos e de modo profundo. Satanás, na tentação de Jesus, citou Salmo 91:11-12 para convencê-lo a pular do pináculo do templo. Jesus respondeu com o texto de Deuteronômio 6:16: “Não tentarás Yahweh, teu Deus”. Estava claro que Satanás estava tirando uma passagem do contexto. E um texto fora do contexto contradizia a própria Escritura. A resposta de Jesus demonstrava isso.

Assim, da mesma forma, Jesus vai criticar a interpretação rasa dos mandamentos “não matarás” e “não adulterarás”. Para além de uma leitura superficial, descobrimos que a essência da Lei é não nutrir desejo por outra mulher além da sua, nem ódio no coração por outras pessoas, que são as raízes do adultério e do assassinato. Ao criticar também a simples leitura do mandamento a respeito de cumprir os juramentos, Jesus enxerga mais além: jurar por algo que não se pode pagar é pecado. Logo, é mais válido dar apenas a sua palavra, sem jurar por algo.

Ir no profundo da Lei não era algo que só Jesus fazia. Na verdade, os profetas e escritores sacros anteriores também iam. Quando Jesus ensina a não se vingar, por exemplo, suas palavras fazem eco a Provérbios 25:21-22: “Se o que te aborrece tiver fome, dá-lhe pão para comer; se tiver sede, dá-lhe água para beber, porque assim amontoarás brasas vivas sobre a sua cabeça, e o Senhor te retribuirá”.

Portanto, Jesus não aboliu nenhum mandamento no Sermão do Monte. Ele criticou leituras rasas e interpretações distorcidas, aprofundando o entendimento da Lei. No mais, Jesus praticou os mandamentos que eram aplicáveis ao contexto específico e a todos os contextos, anunciou o que não era aplicável (como um bom intérprete da Lei) e cumpriu em si mesmo os mandamentos que apontavam para a morte do Messias. Não houve abolição. Houve boa interpretação e cumprimento.

Por que as leis civis/penais da Torah eram tão duras?

Respondi essa pergunta detalhadamente no meu livro “Supostamente Cruel: uma análise sobre o caráter de Deus no Antigo Testamento”. Em resumo, os povos do mundo antigo, em especial no antigo oriente, eram mais brutos. A mentalidade geral e a cultura enraizadas não enxergavam as coisas como nós enxergamos hoje, três milênios depois, no ocidente. Eis um brevíssimo panorama.

Escravidão era comum até para os próprios escravos, que muitas vezes escolhiam se vender. Machismo era normal e natural até para as próprias mulheres, que não viam problema no homem ter mais de uma mulher. Era até bom. Sinal de que o homem tinha dinheiro, vigor e autoridade para sustentar uma família grande. Diplomacia global não existia. Direitos humanos era um conceito muito distante. Guerras eram o modo padrão de resolver problemas. Invasões eram comuns. Não havia estados laicos. Religião e política jamais eram pensadas em separado. Existiam cultos a deuses que ordenavam sacrifícios de crianças ou que envolviam ritos orgíacos. Abusos sexuais a estrangeiros eram corriqueiros em muitas cidades. Tanto a Bíblia quanto a história secular testificam desses detalhes.

Em um mundo como esse, de onde Deus resgata um povo contaminado por todos esses pensamentos, as leis civis, em alguma medida, refletiriam esse contexto. E apenas ao longo dos séculos, a cultura bárbara poderia ser gradualmente modificada. É preciso ter em mente ainda que muito do que Yahweh fez no AT foi visando a proteção da religião hebraica como um todo, de modo que ela não sucumbisse a um mundo de imoralidade e politeísmo. O intuito final era só um: preservar o povo e as verdades divinas até a vinda do Messias. Sem isso, não haveria a encarnação. E sem Cristo entre nós, não haveria salvação para o mundo.

Na realidade, a própria nação de Israel foi levantada com esse propósito: proteger verdades em um mundo que esquecera Yahweh, a fim de que os povos tivessem uma chance de conhecer a Deus e o Messias pudesse vir. Assim, a própria teocracia, com todas as suas leis ligadas ao antigo oriente, não foi projetada para ser eterna. O pacto de Deus com o povo de Israel sim era eterno (Is 49:14-16; Jr 31:31-37; Rm 9:1-6, 11:1-32), mas não o sistema teocrático e a aplicabilidade de todas as leis. Assim como a sistema Levítico apontava para Jesus e tornou-se inaplicável após sua morte e ressurreição, o sistema teocrático também. O véu rasgado (Mt 27:51; Mc 15:38; Lc 23:45) indicava o fim do sistema Levítico e, por conseguinte, o fim do contexto teocrático.

Com a teocracia findando seu período de vigência e o Rei de Israel ascendendo aos céus, o sistema jurídico poderia ser qualquer outro. Deus não tem qualquer interesse em um sistema jurídico específico nesta terra. Cada contexto difere um do outro e deve ser pensado de modo distinto por seus cidadãos. Os princípios bíblicos servem, claro, para ajudar e decidir quais sistemas são mais propícios para gerar justiça e bem estar da sociedade. Mas não há um sistema fixo idealizado por Deus para todos. Não nessa terra de pecado. O reino do Messias continua não sendo deste mundo (Jo 18:36).

Conclusão

As análises feitas neste artigo nos levam à conclusão de que Jesus não transgrediu a Lei de Moisés quando decidiu não condenar a mulher adúltera. Israel não estava sob a lei civil judaica, Jesus não era juiz terreno, a interpretação corrente de que o Messias seria um líder militar estava errada, o juízo não estava ocorrendo num tribunal, o suposto adúltero não estava presente, os acusadores estavam em pecado e cometendo erros processuais graves e os mesmos acusadores abandonaram o “julgamento”. Não havia nada mais coerente para com a Lei de Moisés do que liberar a mulher. Concluímos ainda que Jesus jamais aboliu a Torah, mas a interpretou corretamente, cumprindo o que era aplicável.

Uma interpretação que coloque Jesus como anulador da Torah contradiz passagens do próprio Novo Testamento, as quais afirma que Jesus foi perfeito e que veio na função de homem. Jesus, enquanto homem, não era maior que a Lei. Ele era submisso à Lei como o era ao Pai e ao Espírito Santo. Como Deus e Filho de Deus, sim, ele era maior que a Lei. Mas como Filho do Homem, Ele jamais usaria sua autoridade divina para mudar o que todos os homens tinham de cumprir naquele contexto. Isso iria contra sua missão de ser homem perfeito. Seria, de certa forma, legislar em causa própria. Não é esse o Jesus que a Bíblia apresenta.

Por Davi Caldas

Fonte: Reação Adventista

 

Sobre Weleson Fernandes

Escritor & Evangelista da União Central Brasileira

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