O comunismo até hoje é visto por muita gente como uma teoria político-econômica bem intencionada que só não deu certo porque foi deturpada. Durante décadas, a ditadura e o autoritarismo dos governos comunistas ao longo do século XX foram maquiados por muitos marxistas com o rótulo de regimes legitimamente representantes do povo, de modo que, suas ações aparentemente autoritárias eram da vontade do proletariado e, portanto, democráticas. Na medida em que esta maquiagem foi se tornando cada vez mais insustentável, muitos marxistas passaram a sustentar que estes regimes comunistas autoritários não foram comunistas de verdade; eles deturparam o verdadeiro marxismo.
Mas a verdade é que o comunismo é autoritário e ditatorial por natureza. Não houve uma deturpação. Ele se tornou, na prática, o que foi projetado para ser na teoria. A obra marxista mais famosa do mundo (“Manifesto do Partido Comunista”), que apresenta um passo a passo bem objetivo do que os comunistas pretendiam fazer, comprova isso. O objetivo desse texto é analisar alguns trechos da obra que demonstram isso claramente. A tarefa, como veremos, não é difícil.
Comunismo, ditadura e autoritarismo
Aqui começa nossa jornada. Sobre o que é a revolução operária, Marx e Engels afirmam:
“Vimos acima que o primeiro passo na revolução operária é a elevação do proletariado a classe dominante, a conquista da democracia. O proletariado utilizará seu domínio político para arrancar pouco a pouco todo o capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, ou seja, do proletariado organizado como classe dominante, e para aumentar o mais rapidamente possível a massa das forças produtivas.
“Isso naturalmente só poderá ser realizado, no princípio, por uma intervenção despótica no direito de propriedade e nas relações burguesas de produção, isto é, por medidas que parecem economicamente insuficientes e insustentáveis, mas que, no curso do movimento, ultrapassam a si mesmas e são inevitáveis para revolucionar todo o meio de produção” [1].
Esse texto começa traçando um objetivo: dar ao proletariado o poder político, de modo que ele se torne classe dominante. Mas é óbvio que Marx e Engels, ao escreverem isso, não achavam que cada um dos proletários existentes iria receber literalmente uma parte do poder político. É claro que nenhum marxista achava que todos os proletários em cada país iriam se tornar políticos e se reunirem todos os dias, aos milhões, em uma câmara maior que dez estádios do Maracanã para discutir propostas políticas e econômicas. Isso é inviável! Da mesma forma, seria inviável que cada país comunista adotasse um modelo federalista e descentralizado de Estado, a fim de que em cada pequena região do país todos os proletários pudessem participar ativamente das decisões políticas. Afinal, o comunismo tinha que seguir um único rumo para vigorar.
Então, o que o texto na verdade pressupõe é que o proletariado alcançará poder político de modo indireto, através da ascensão de uma parte dele, isto é, de alguns representantes da classe, que terão a incumbência de fazer a sua vontade. Esses representantes formam o partido. E é evidente que o partido terá um líder, que fatalmente acabará se tornando o líder da nação quando o partido alcançar a hegemonia política. Em resumo: o poder político concentrado nas mãos do proletariado significa o poder político concentrado nas mãos do partido político, da sua cúpula central e, sobretudo, do seu líder.
Marx e Engels não eram idiotas. Sabiam disso. Só que eles acreditavam (ou fingiam acreditar) que um partido proletário, uma vez no poder, iria inevitavelmente fazer a vontade de sua classe. É por isso que eles diziam que isso era democracia: se o partido faria a vontade do povo, o povo estaria no poder.
Se você entendeu essa relação, então agora entende que quando Marx e Engels dizem que o proletário tiraria pouco a pouco o capital da burguesia, centralizaria os meios de produção nas mãos do Estado, aumentaria a massa das forças produtivas, interviria de maneira despótica e tomaria medidas que “parecem” economicamente insuficientes, estão dizendo, de maneira velada, que o sujeito de todas essas ações é o partido.
Lenin, o teórico e dirigente soviético, foi um dos que entenderam isso perfeitamente. Em um trecho do livro “O Estado e a Revolução”, ele afirma:
“O proletariado precisa do poder político, da organização centralizada da força, da organização da violência, para reprimir a resistência dos exploradores e dirigir a massa enorme da população – os camponeses, a pequena burguesia, os semiproletários – na ‘edificação’ da economia socialista.
“Educando o partido operário, o marxismo forma a vanguarda do proletariado, capaz de tomar o poder e de conduzir todo o povo ao socialismo, capaz de dirigir e de organizar um novo regime, de ser o instrutor, o chefe e o guia de todos os trabalhadores, de todos os exploradores, para a criação de uma sociedade sem burguesia, e isto contra a burguesia” [2].
Destaco mais dois trechos de outra obra de Lênin:
“A arte do político (e a justa compreensão dos seus deveres no comunista) consiste, precisamente, em saber aquilatar com exatidão as condições e o momento em que a vanguarda do proletariado pode tornar vitoriosamente o Poder; em que pode, por ocasião da tomada do Poder e depois dela conseguir um apoio suficiente de setores bastante amplos da classe operária e das massas trabalhadoras não proletárias; em que pode, uma vez obtido esse apoio, manter, consolidar e ampliar seu domínio, educando, instruindo e atraindo para si massas cada vez maiores de trabalhadores” [3].
“[Na ditadura do proletariado] será preciso reeducar milhões de camponeses e pequenos proprietários, centenas de milhares de empregados, funcionários e intelectuais burgueses, para subordiná-los todos ao Estado proletário e extirpar-lhes os hábitos e tradições burgueses […]” [4].
Voltando ao “Manifesto do Partido Comunista”, logo após falar sobre o que era a revolução operária, o documento começa a enumerar as ações autoritárias que colocaria em prática gradualmente, quando o partido estivesse no poder, até conseguir estatizar toda a economia. Vejamos o passo a passo por partes [5]:
“1. Expropriação da propriedade fundiária e emprego da renda da terra nas despesas do Estado.
2. Imposto fortemente progressivo”.
A expropriação de terras dos ricos já é, por si só, um roubo. O fato de um proprietário ser rico não dá direito ao Estado de tomar aquilo que lhe pertence. Mas ainda que nós concordemos, para o bem do argumento, que esta ação se justifica, pois visa o bem estar dos pobres, perceba que o governo pretendia usar a renda das terras nas despesas gerais do Estado e taxar, progressivamente, os trabalhadores. Ou seja, o trabalhador, no fim das contas, seria marionete do Estado, que é o partido.
Os países em que estas duas medidas foram aplicadas de maneira mais rigorosa foram a Ucrânia, entre 1931 e 1933, a China, entre 1958 e 1960 e o Camboja, em 1975. O resultado foi aterrador: cerca de 36 milhões de pessoas morreram vítimas de repressão, fome forçada, miséria causada pela ineficiência do sistema.
“3. Abolição do direito de herança.
4. Confisco da propriedade de todos os emigrados e rebeldes”.
Olhe que legal: você não tem mais direito de deixar o que conquistou na vida para quem você ama. Se você morre, seus bens vão para o Estado, que é o partido. Isso se você conseguir juntar alguma coisa em um regime comunista, o que é bem difícil, diga-se de passagem. Os emigrados também saem perdendo. Mas o que me impressiona mais aqui é o confisco da propriedade dos chamados “rebeldes”. Neste ponto, Marx e Engels estão dizendo o seguinte: se você discordar do regime, o Estado vai tirar tudo o que você tiver. Amigos, se isso não é a total legitimação da opressão estatal, então eu sou o Napoleão Bonaparte e tomei vinho com Platão ontem, no Planalto Central.
“5. Centralização do crédito nas mãos do Estado, por meio de um banco nacional com capital do Estado e monopólio exclusivo”.
Quando chegamos neste momento, percebemos que o proletário já não tem para onde fugir da presença do Estado. Ele trabalha para manter os altos custos do governo, é taxado de maneira cada vez mais forte e o pouco dinheiro que lhe resta fica em um banco estatal, que pode, evidentemente, usurpar seu salário na hora que bem entender.
“6. Centralização dos meios de transporte nas mãos do Estado.
7. Multiplicação das fábricas nacionais e dos instrumentos de produção; cultivo e melhoramento das terras segundo um plano comum”.
Quando Marx e Engels disseram que as medidas tomadas pelo governo pareceriam economicamente insuficientes e insustentáveis, eles sabiam muito bem do que estavam falando. É preciso muita confiança na capacidade administrativa do governo para crer que o Estado pode gerir todas as empresas e setores da sociedade, conduzindo milhares de segmentos e pessoas com necessidades, intenções, situações, caráter e características diferentes segundo um único e gigantesco plano administrativo. É como crer que uma cozinheira poderia conduzir, de longe, todas as cozinhas do Estado de São Paulo segundo um mesmo plano. É loucura!
Pedagogia Comunista
Pulo para o passo número 10 para mudar um pouco de assunto e falar sobre a pedagogia comunista. Observe o que Marx e Engels afirmam:
“10. Educação pública e gratuita de todas as crianças. Eliminação do trabalho das crianças nas fábricas em sua forma atual. Combinação da educação com a produção material, etc”.
Na edição que tenho de “Manifesto do Partido Comunista”, há alguns anexos interessantes na obra. Um deles é o texto “Os princípios do comunismo”, escrito por Engels no final de outubro de 1847 em uma reunião da Liga dos Comunistas, onde se discutia um projeto de “Confissão de fé comunista”. Sobre a educação pública para as crianças, Engels afirma que ela deve ocorrer “a partir do instante em que [as crianças] possam prescindir dos cuidados maternos, em estabelecimentos nacionais e a cargo do Estado” [6]. Em outras palavras, elas deveriam ser doutrinadas pelo Estado desde bem pequenas.
Um trecho interessante de “O Manifesto” afirma o seguinte sobre a doutrinação das crianças pelo Estado:
“Mas dizeis que abolimos as mais sublimes relações ao substituirmos a educação doméstica pela educação social. E vossa educação, não é ela também determinada pela sociedade? […] Os comunistas não inventaram a influência da sociedade sobre a educação; procuram apenas transformar o seu caráter, arrancando a educação da influência da classe dominante” [7].
Quer dizer: a educação estatal é importantíssima para o comunismo, nem tanto por uma preocupação com o acesso das crianças aos estudos, mas muito porque o Estado comunista precisa se certificar que você não estará dando uma educação burguesa ao seu filho. Então, você não tem o direito de educar seu filho em casa, mas deve deixá-lo aos cuidados do Estado desde a mais tenra idade.
Não é à toa que O Manifesto também afirma que uma das medidas básicas do regime seria instituir o trabalho obrigatório igual para todos. Ou seja, a mãe não tinha a opção de só ficar em casa, educando o filho. Ela deveria trabalhar como qualquer outra pessoa e o filho, assim que desmamasse, deveria ser introduzido à educação estatal. Isso é curioso, porque logo em seguida Marx e Engels criticam a burguesia por romperem os laços familiares dos proletários através da exploração que empunham aos mesmos (sobretudo às crianças). O que se está propondo aqui, portanto, é substituir seis por meia dúzia.
A verdade é que Marx e Engels estavam pensando mais em uma estratégia para manter o regime comunista do que nas relações familiares. Então, pouco importava se o regime comunista acabaria mantendo os pais tão longe dos filhos quanto no capitalismo da época (ou até mais). A questão principal não era resolver este problema. A questão principal era que as crianças precisavam ser doutrinadas pelo Estado desde pequenas.
E o que as crianças aprenderiam na educação estatal obrigatória dos comunistas? Bom, elas iriam aprender principalmente a ter uma concepção materialista da história. Afinal, os comunistas sabiam que os maiores empecilhos para que o próprio proletariado aceitasse o comunismo eram as ideias provenientes dos questionamentos filosóficos e religiosos. Essa era a “educação burguesa” que os comunistas não queriam que o proletariado passasse para seus filhos. Veja o que Marx e Engels dizem:
“As acusações contra o comunismo feitas de pontos de vista religiosos, filosóficos e ideológicos em geral, não merecem uma discussão pormenorizada. Será necessária uma profunda inteligência para compreender que, com a modificação das condições de vida dos homens, das suas relações sociais, da sua existência social, também se modificam suas representações, suas concepções e seus conceitos, numa palavra, sua consciência? O que demonstra a história das ideias se não que a produção intelectual se transforma com a produção material? As ideias dominantes de uma época sempre foram apenas as ideias dominantes da classe dominante” [8].
Aqui Marx e Engels querem que compremos as seguintes ideias:
(1) objeções religiosas e filosóficas são tão idiotas e desprezíveis que não precisam ser avaliadas pelos seus leitores;
(2) o homem não é um ser inclinado ao mal por natureza. Sua consciência é moldada de acordo as condições materiais da sociedade;
(3) o materialismo é uma obviedade tão grande que seus leitores também não precisam avaliar e é inadmissível que alguém discorde;
(4) as ideias filosóficas e religiosas são pura e simplesmente expressões das relações materiais existentes no interior da luta entre as classes. Por isso, não valem a atenção do leitor.
A dupla continua:
“Fala-se de ideias que revolucionam uma sociedade inteira; com tais palavras exprime-se apenas o fato de que, no interior da velha sociedade, formam-se os elementos de uma sociedade nova e a dissolução das velhas ideias acompanha a dissolução das velhas condições de existência” [9].
Se as ideias não têm valor, antes são apenas meras abstrações que expressam a condição material da sociedade e as relações opressor/oprimido, sendo dissolvidas cada vez que alguma coisa muda no contexto material, então questionamentos filosóficos e religiosos não podem jamais fazer frente ao comunismo. Como se torna claro, a importância do materialismo residia nisso: em destruir argumentos contrários sem muito trabalho.
O leitor atento vai perguntar: “Ora, mas o comunismo também não era uma ideia? A crítica ao valor das ideias é um tiro no pé”. Ah, mas Marx e Engels sabiam disso. E é por isso que eles fazem questão de dizer:
“As proposições teóricas dos comunistas não se baseiam de forma alguma em ideias, em princípios inventados ou descobertos por esse ou aquele reformador do mundo. São apenas a expressão geral das condições efetivas de uma luta de classes já existente, de um movimento histórico que se desenrola sob nossos olhos” [10].
Notou a estratégia? Nossos amigos pregavam que o comunismo não era uma ideia, nem era composto por elas. O comunismo era como uma ciência exata, para Marx e Engels; algo como “2 + 2 = 4”. Era uma doutrina baseada em fatos brutos e concretos, que poderiam ser perfeitamente conhecidos através do empirismo.
Marx e Engels ensinavam que o comunismo era um “socialismo científico”. Isso significa que com as lentes do comunismo você conseguiria olhar claramente para a história do mundo, observar “fatos incontestáveis” da história e prever “cientificamente” o que exatamente iria acontecer (da mesma forma como, por exemplo, um cientista observa objetos distintos caindo milhares de vezes, em tempos e lugares diferentes, e conclui que há uma força que puxa os objetos para baixo, e que, se ele jogar uma pedra agora do quinto andar de seu prédio, ela também será puxada para baixo por essa força).
Com essa estratégia, a dupla podia criticar todas as ideias contrárias ao comunismo, taxando-as de expressão material e, ao mesmo tempo, afirmar o comunismo como uma ciência exata, e a revolução proletária como uma inevitabilidade. O comunismo, assim, tornava-se uma profecia e todas as outras ideias, heresias da burguesia.
Eram essas coisas que Marx e Engels desejavam que todas as crianças aprendessem na escola. A preocupação com a educação estatal para crianças pequenas se justificava por um fato incômodo: muitos proletários tinham crenças e hábitos que se constituíam empecilhos para a aceitação plena do comunismo. Essas crenças e hábitos encontravam-se, por vezes, arraigadas naqueles que passaram décadas de sua vida aprendendo-os, reproduzindo-os e cultivando-os.
A crença na religião cristã, por exemplo, fazia com que o proletário visse o ser humano como um ser pecador, o paraíso como uma esperança extraterrena e Deus como sendo mais importante do que o partido, o Estado e a revolução. E o que dizer das restrições morais, do maior apego à família do que a sindicatos, do respeito à autoridades eclesiásticas, da visão espiritual da história mundial e etc.
Esses hábitos e crenças travavam o comunismo, que via o ser humano como um ser perfectível, o paraíso como uma inevitável realização terrena, o partido, o Estado e a revolução como o sentido máximo da vida, a moral como subordinada aos interesses da revolução, a vida como fruto de materialismos históricos e dialéticos. É por isso que Marx e Engels afirmavam, por exemplo, que a religião é o ópio do povo. Eles sabiam que se não convencessem os proletários de que a religião era um ópio com que o povo se drogava para aguentar a pressão da vida, teriam dificuldades de pôr em prática um regime comunista.
A doutrinação estatal para crianças, portanto, era algo primordial para que o comunismo lograsse algum êxito. O que Marx e Engels não conseguiram perceber é que essa doutrinação deveria começar antes mesmo do partido subir ao poder. Mas o que eles não perceberam no século XIX, ideólogos como Antônio Gramsci, Herbert Marcuse e Theodore Adorno perceberiam no século XX, entre os anos 20 e 60. Eles seriam os precursores de uma nova estratégia comunista: uma guerra cultural. Tal estratégia pretendia doutrinar crianças e jovens dentro das escolas e faculdades de modo sorrateiro, com linguagem simples e cotidiana, introduzindo no senso comum ideias que pudessem corroer a imagem do cristianismo, da moral judaico-cristã, da vida familiar, da cultura tradicional do ocidente e tudo o mais que pudesse afastar as pessoas do comunismo.
Marx e Engels podem não ter enxergado tão longe no que se refere à doutrinação de crianças e jovens, mas enxergaram muito bem. Eles entenderam que era preciso criar uma cultura comunista nas crianças, para que as novas gerações de proletários não se prendessem a nenhum tipo de crença conflitante com os interesses do Partido/Estado.
Em suma, no regime comunista que Marx e Engels projetavam, seu filho aprenderia na escola que Deus não existe, que todas as grandes religiões são histórias da carochinha, que objeções filosóficas ao comunismo são indignas de crédito, que ideias são fruto das relações materiais, que muito da nossa moral e cultura são invenções burguesas, que o comunismo é uma ciência exata, que o ser humano é perfectível, que o mundo pode ser transformado em um paraíso, que isso efetivamente irá acontecer, que o sentido máximo e único da vida é buscar esse paraíso terreno, que isso inevitavelmente irá acontecer, que o Partido/Estado é o representante supremo do nosso sentido da vida e que devemos apoiá-lo incondicionalmente na transformação do mundo. Tudo isso seria obrigatório na educação estatal.
A destruição da sociedade
Aqueles que acreditam que o comunismo pretendia apenas mudar o sistema econômico do mundo e, consequentemente, a vida econômica das pessoas, ainda não entenderam nada sobre o comunismo. Esta doutrina, na verdade, jamais objetivou tão-somente fazer uma reforma econômica. Seu objetivo era destruir todas as bases dessa sociedade que conhecemos e construir uma sociedade inteiramente nova e diferente. Há pouco nós líamos sobre o que Marx e Engels achavam das “ideias”. A continuação daquele texto desemboca no objetivo comunista de destruir tudo. Eles começam descrevendo uma acusação pertinente feita ao comunismo já àquela época:
“’Sem dúvida’, dir-se-á, ‘as ideias religiosas, morais, filosóficas, políticas, jurídicas, etc., modificaram-se no curso do movimento histórico. Entretanto, a religião, a moral, a filosofia, a política e o direito sempre sobreviveram a essas mudanças. Além disso, existem verdades eternas, como liberdade, justiça, etc., que são comuns a todas as condições sociais. O comunismo, porém, acaba com as verdades eternas, acaba com a religião e a moral, ao invés de lhes dar uma nova forma, e isso contradiz todos os desenvolvimentos históricos anteriores’” [11].
Exposta esta acusação, a dupla inicia uma resposta baseada na concepção da luta de classes, uma resposta que se torna aterradora conforme chegamos ao seu final:
“A que se resume essa acusação? A história de toda a sociedade até os nossos dias movimentou-se através de antagonismos de classe, que assumiram formas diferentes nas diferentes épocas. Mas qualquer que tenha sido a forma assumida por esses antagonismos, a exploração de uma parte da sociedade por outra é um fato comum a todos os séculos passados. Portanto, não é de se espantar que a consciência social de todos os séculos, a despeito de sua multiplicidade e variedade, tenha-se movido sempre dentro de certas formas de consciência que só poderão se dissolver completamente com o completo desaparecimento dos antagonismos de classe” [12].
Deixe-me ver se entendi. Quer dizer que as formas de consciência social comuns a todos os séculos, que englobam a religião, a moral, as noções de liberdade e justiça e etc., se dissolverão completamente quando a revolução comunista alcançar seu objetivo supremo? Vamos continuar lendo para ver se é isso mesmo:
“A revolução comunista é a ruptura mais radical com as relações tradicionais de propriedade; não é de espantar que no curso de seu desenvolvimento ela rompa da maneira mais radical com as ideias tradicionais” [13].
É isso mesmo! Marx e Engels realmente estavam dizendo que as ideias mais tradicionais sobre a moral, a religião, a justiça e etc., iriam ser destruídas pela revolução juntamente com a propriedade privada! O mais incrível é que depois de dizer isso descaradamente, a dupla dinâmica ainda acrescenta a frase: “Mas deixemos de lado as objeções da burguesia ao comunismo”. Como se o que eles acabassem de falar fosse uma objeção bobinha e que dizia respeito apenas aos interesses de uma pequena parcela da sociedade!
A corrosão das ideias tradicionais de moral, religião e justiça não poderia ter resultado em outra coisa que não opressão, perseguição e genocídios décadas mais tarde. Vários livros dão conta das atrocidades que foram infligidas ao mundo pelo comunismo. Um dos melhores e mais completos é “O Livro Negro do Comunismo”, que indico ao leitor para mostrar o resultado prático (e inevitável) dessas ideias loucas de Marx e Engels.
Ademais, as concepções revolucionárias, intervencionistas e materialistas do marxismo também serviriam de inspiração (juntamente com outras ideologias como o sindicalismo de Georges Sorel e as concepções de autores como Bombacci e Sombart) para movimentos como o fascismo e o nacional socialismo. Três livros interessantes que fazem esse mapeamento são “O Caminho da Servidão”, de Friedrich Hayek, “Marxism, Fascism, and Totalitarianism: Chapters in the Intellectual History of Radicalism”, de Antony James Gregor e “Revolutionary Fascism”, de Erik Norling.
A destruição da religião
A destruição da religião merece um tópico à parte. Certa vez ouvi uma professora dizer que Marx não tivera muito interesse em falar contra a religião na sua vida. Quando ouvi isso pela primeira vez, achei que, para ele e seu amigo Engels, a religião era algo indiferente, que eles apenas não acreditavam, mas respeitavam. Assim, as perseguições religiosas infligidas pelos comunistas teriam sido uma deturpação do marxismo.
Acabei descobrindo mais tarde que não foi bem assim. Já vimos que as crenças e hábitos da religião eram obstáculos para o comunismo, que eles eram tidos como frutos das relações materiais exploratórias e que Marx e Engels pretendiam que eles fossem suprimidos com a revolução. Isso já seria o suficiente para termos certeza de que a religião não seria bem tratada em um regime comunista. Mas na edição que tenho em casa de “Manifesto do Partido Comunista”, há uma informação suplementar. No “Projeto de confissão de fé comunista”, sobre a relação dos comunistas ante as religiões existentes, é dito:
“Todas as religiões até agora foram a expressão de estágios do desenvolvimento histórico de povos singulares ou de grupos de povos. O comunismo, porém, é o estágio de desenvolvimento que torna supérfluas todas as religiões existentes e as suprime” [14].
Exatamente como pensava, por exemplo, o ditador comunista chinês Mao Tsé Tung, que criou e desenvolveu a Revolução Cultural Chinesa, e oprimiu duramente milhares de religiosos, destruindo seus templos e símbolos e condenando-os a penas civis.
Mais autoritarismo
A leitura dos documentos da Liga dos Comunistas é ótima para tornar ainda mais claro como o autoritarismo estava no DNA comunista. No “Estatuto da Liga dos Comunistas”, na seção I, artigo 2, existe uma série de condições para que uma pessoa entrasse na Liga. Entre elas encontravam-se duas bem interessantes: “Profissão de fé comunista” e “Submissão às resoluções da Liga”. Ao fim há a seguinte frase: “Quem não preencher mais essas condições será excluído”. Até aqui, nada demais. Mas vejamos o que é dito adiante, na seção VIII, artigos 41 e 42:
“41. O comitê do círculo julga os delitos contra a Liga e assegura a execução da sentença.
42. Os indivíduos suspensos ou expulsos, bem como todos os suspeitos, devem ser vigiados em nome da Liga e postos em situação de não poderem causar danos. As intrigas de tais pessoas devem ser imediatamente denunciadas à respectiva comuna” (ênfase acrescentada) [15].
O que essas palavras querem dizer? Ou melhor: o que essas palavras poderiam vir a significar em cada situação? É exagero dizer que elas dão margem para todo o tipo de ação contra pessoas que causavam problemas à Liga Comunista? Antes que o leitor responda, vamos ler um trecho do documento “Princípios do Comunismo”, de Engels. Esse trecho responde a seguinte pergunta: “Será possível a abolição da propriedade privada por via pacífica?”. Engels responde:
“Seria desejável que isso pudesse ocorrer e os comunistas seriam, com toda a certeza, os últimos a isso se oporem. Os comunistas sabem muito bem que todas as conspirações são não apenas inúteis, mas até mesmo prejudiciais. […] Mas vêem também que o desenvolvimento do proletariado é reprimido com violência em quase todos os países civilizados e que, com isso, os adversários dos comunistas nada mais fazem do que trabalhar com todas as forças para uma revolução. E se, nessas condições, o proletariado oprimido for finalmente impelido para uma revolução, nós, comunistas, defenderemos a causa do proletariado com a ação, do mesmo modo como agora a defendemos com a palavra” [16].
Em outro trecho, respondendo a outra pergunta, Engels ressalta:
“A democracia seria inteiramente inútil ao proletariado se não fosse imediatamente empregada para obter toda uma série de medidas que ataquem diretamente a propriedade privada e assegurem a existência do proletariado” [17].
As medidas das quais Engels fala aqui são aquelas medidas despóticas listadas em “Manifesto do Partido Comunista”, que nós analisamos há pouco. Ele volta a listá-las em “Os Princípios do Comunismo”. Ou seja, a democracia dos comunistas é inútil se não for uma ditadura que tome uma série de ações despóticas, supostamente em nome da vontade do povo. Prévias desse despotismo são expressas na própria confissão dos comunistas de que a força poderia ser usada para alcançar seus objetivos políticos e na atitude em relação aos suspensos, expulsos ou suspeitos da Liga dos Comunistas, de vigiá-los e colocá-los “em situação de não poderem causar danos”.
Considerações finais
Qualquer pessoa que se proponha a ser honesta perceberá que não houve exageros ou distorções nessas análises. Limitei-me a descrever o pensamento comunista da forma como expresso em “Manifesto do Partido Comunista” e em documentos da Liga, além de destacar os pontos autoritários de sua teoria, mostrando como esses pontos formam a essência mesma do comunismo.
A conclusão é que o comunismo não se tornou ditatorial e opressivo nos países que se instaurou por mera série de acidentes históricos ou por uma enorme distorção da teoria. Ele se tornou ditatorial e opressivo porque foi projetado para ser uma ditadura. Ainda que Karl Marx e Friedrich Engels acreditassem que essa ditadura seria democrática (por fazer aquilo que o povo queria) e benéfica – se é que realmente criam mesmo nisto -, isso não muda em nada o fato de que o comunismo foi inteiramente projetado para ser uma ditadura.
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Referências:
1. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; tradução de NOGUEIRA, Marcos Aurélio e KONDER, Leandro. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 65 e 66.
2. LENIN, Vladmir Ilitch Ulianov. O Estado e a Revolução, 1917. Disponível em: https://pcb.org.br/portal/docs/oestadoearevolucao.pdf
3. LENIN, Vladmir Ilitch Ulianov. Esquerdismo, doença infantil do comunismo, 1920. Disponível em: https://pcb.org.br/portal/docs/esquerdismo.pdf
4. IBDEM, p. 62.
5. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; tradução de NOGUEIRA, Marcos Aurélio e KONDER, Leandro. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 67-68.
6. IBDEM, p. 102.
7. IBDEM, p. 62.
8. IBDEM, p. 64.
9. IBDEM, p. 64.
10. IBDEM, p. 57.
11. IBDEM, p. 65.
12. IBDEM, p. 65.
13. IBDEM, p. 65.
14. IBDEM, p. 154.
15. IBDEM, p. 115.
16. IBDEM, p. 99-100.
17. IBDEM, p. 101.
Por Davi Caldas
Fonte: Reação Adventista