“Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque são estes que o Pai procura para seus adoradores. Deus é espírito; e importa que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade.” (João 4:23-24)
Adoração é um tema recorrente no Apocalipse, especialmente nos capítulos 13 e 14, nos quais encontramos oito referências ao assunto.
Em Apocalipse 14:9, a besta e a sua imagem são identificadas com um modelo paralelo de adoração que desafia as prerrogativas de Deus e Seu culto (verso 7). Mediante esse falso sistema de adoração, Babilônia mística seduzirá todas as nações a aceitar suas doutrinas mentirosas, representadas pela imagem do vinho espúrio (verso 8), de tal maneira que “adorá-la-ão todos os que habitam sobre a terra, aqueles cujos nomes não foram escritos no Livro da Vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo” (Apocalipse 13:8).
O chamado divino para a adoração legítima (Apocalipse 14:7) possui três importantes aspectos, aos quais nosso Salvador se referiu durante Seu ministério terrestre: (1) adorar somente a Deus (Mateus 4:10); (2) adorar a Deus no dia que Ele escolheu – o sábado (Lucas 6:5, conforme Êxodo 20:8-11); e (3) adorar a Deus da maneira divinamente revelada (João 4:23-24).
O presente artigo, que será dividido em quatro postagens, se ocupa deste último aspecto, enfatizando a distinção entre a verdadeira e a falsa adoração.
A busca de Deus por verdadeiros adoradores
O Senhor está em busca de adoradores cuja adoração resulte de um profundo relacionamento com Ele; adoradores cujo coração e a mente tenham sido livremente possuídos e transformados pelo poder de Sua Palavra.
A consagração a uma vida de pureza e santidade é o primeiro ato de culto espiritual que o cristão oferece a Deus. Ao sujeitar-se sem reservas à Sua vontade, unindo-se a Ele em seus esforços para alcançar a maturidade espiritual, o cristão experimenta a progressiva restauração de seu caráter à imagem divina, cumprindo-se a descrição que Pedro faz da igreja como “sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo” (I Pedro 2:5).
Este é o culto racional de que fala Paulo em Romanos 12:1 – uma experiência profundamente espiritual embasada na Palavra de Deus -, em que o crente verdadeiramente convertido se apresenta diante do Senhor na melhor condição possível, com todas as energias e capacidades consagradas em pureza e santidade ao serviço do Senhor. No verso 2, o apóstolo exorta:
E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.
O professor de grego e Crítica Textual, Pedro Apolinário, na introdução de seu livro Explicação de Textos Difíceis da Bíblia, esclarece que, no original, a expressão “não vos conformeis” significa: “parai de assumir uma expressão exterior que não vem de vós e que não representa o que sois, mas é posta de fora e é moldada de acordo com este século.” E explica o sentido do termo “transformai-vos” com estas palavras: “Mudai vossa expressão exterior (daquela que veio de vossa natureza totalmente depravada quando não estáveis salvos) por aquela que vem do vosso íntimo (como salvos que estais)”.
Adoradores que experimentam semelhante separação do pecado e renovação íntima do ser pela aceitação do evangelho não são, portanto, moldados pelos padrões externos e mutáveis do mundo. Seu “velho homem” foi sepultado em Cristo (Romanos 6:4), e a mente carnal (Colossenses 2:18), sujeita à mente de Cristo (I Coríntios 2:13-16), dá lugar à mente espiritual e à uma nova vida no Espírito (Romanos 6:3-13; II Coríntios 5:14-17).
Mas antes que a antiga natureza possa ser sepultada, deve o cristão submeter sua vida a Cristo. Todas as inclinações, desejos e paixões carnais devem ser entregues a Ele, e, então, no que diz respeito ao crente, sua velha natureza deve morrer, dando lugar a uma nova natureza em Cristo (Colossenses 2:11-12; Romanos 6:4).
Com efeito, o novo nascimento a que se refere nosso Redentor (João 3:5) é uma experiência dinâmica e contínua que prossegue até a completa renovação da mente, “à medida da estatura da plenitude de Cristo” (Efésios 4:13), no “pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou” (Colossenses 3:10). Uma mente renovada é uma mente capaz de reconhecer, apreciar e cumprir corretamente a vontade de Deus.
Como observa com propriedade Pedro Apolinário: “santos transfigurados, a vida exterior deve encontrar a sua fonte na natureza divina, a vida deve ser a expressão exterior de uma natureza interior, não um disfarce nos trajes do mundo.” A transformação diária do homem interior pelo poder do Espírito Santo certamente se refletirá na mudança progressiva da vida exterior, à medida que o caráter de Cristo se reproduz na vida do crente.
O conceito de adoração no apelo do primeiro anjo
O texto de João 4:23 e 24 é claro: Adorar a Deus em espírito e em verdade é adorá-lO de maneira genuína. Todas as demais formas de adoração são falsas. Quando os princípios da verdade são aplicados ao coração através do Espírito Santo, adoramos a Deus com todas as faculdades de nosso ser, e o fazemos da forma divinamente revelada. Estou enfatizando este ponto porque ele é muito importante.
O mesmo conceito está presente na primeira mensagem angélica. Há três imperativos no apelo de Deus: “temei”, “glorificai” e “adorai”. Note a sequência em que eles aparecem. Esse detalhe é altamente instrutivo. Não é possível adorar a Deus e glorificá-lO sem o temor do Senhor! Temer a Deus é a experiência fundamental do cristão, e significa demonstrar, em espírito de reverência e respeito, submissão à Sua vontade. Por isso, a Escritura diz:
Ensina-me, Senhor, o teu caminho, e andarei na tua verdade; dispõe-me o coração para só temer o teu nome. (Salmo 86:11)
Note como temer o nome de Deus está intimamente ligado a conhecer o Seu caminho e andar na Sua verdade. O salmista ora para que o Senhor o ensine sobre Seu caminho. Esse conhecimento não pode ser obtido intuitivamente. Ele requer a aplicação das faculdades perceptivas de uma mente consagrada. O salmista também pede ao Senhor que disponha o seu coração para temer o Seu nome, ou seja, que o habilite a concentrar todos os seus esforços no sentido de alcançar este elevado propósito – conhecer o caminho do Senhor e andar na Sua verdade. De fato, o salmista roga por uma única bênção!
Se a experiência de temer a Deus não tiver essa dimensão espiritual, ela não passa de forma de piedade (II Timóteo 3:5), de honra aparente, cujo temor a Deus “consiste só em mandamentos de homens” (Isaías 29:13. Ver Mateus 15:7-9). Esse temor forjado nas aparências inverte justamente a sequência da ordem divina em Apocalipse 14:7. E é aqui que nos deparamos com outro grande problema.
De um modo geral, acreditamos que a adoração tem o poder de nos santificar. Adoramos esperando glorificar ao Senhor e, consequentemente, temer o Seu nome. Invertemos a equação divina para nosso próprio prejuízo, ao mesmo tempo em que desonramos o nome do Senhor. O ato de adorar não é em si mesmo um fim. A adoração é o resultado de temer a Deus e glorificá-lO mediante uma vida transformada, não o contrário. E, como já foi observado, temer a Deus é a primeira e mais importante forma de adoração que podemos oferecer ao Senhor.
Assim, não é possível adorar a Deus de modo racional, isto é, em espírito e em verdade, se resistimos à ordem do Senhor. Esse é o ponto que distingue a adoração verdadeira das formas superficiais e tendenciosas de culto. É difícil imaginar que a justificação e a santificação possam estimular a falsidade e a desobediência. Na verdade, o cristão que foi justificado e está sendo santificado estará mais disposto a amar a Deus e obedecer-lhe os ensinos, oferecendo, por conseguinte, um culto segundo o coração de Deus. Ellen G. White escreve:
Religião não é limitar-se a formas e cerimônias exteriores. A religião que vem de Deus é a única que leva a Ele. Para O servirmos devidamente, é necessário nascermos do divino Espírito. Isso purificará o coração e renovará a mente, dando-nos nova capacidade para conhecer e amar a Deus. Comunicar-nos-á voluntária obediência a todos os Seus reclamos. Esse é o verdadeiro culto. É o fruto da operação do Espírito Santo. (1)
Referindo-se aos resultados dessa experiência de adoração, Eurydice V. Osterman afirma com propriedade:
Quando uma pessoa sai de tal encontro com Deus, não só haverá louvor, gratidão e regozijo, mas como está delineado em Isaías 6:1-13, várias outras coisas deverão ter ocorrido também. Primeiro, esse tipo de culto faz-nos conscientes da presença de Deus – Ele é o foco da atenção. Segundo, ele provê a nós a oportunidade de confessar nossos pecados, crendo que Ele nos perdoou conforme prometido em I João 1:9. Terceiro, temos a oportunidade de renovar nosso compromisso em servi-lo. Finalmente, temos ainda a oportunidade de demonstrar-lhe nosso amor, aceitando a comissão de ir e testemunhar a outros. Assim nós O adoramos em espírito (com a atitude correta) e em verdade (inteligentemente). (2)
A necessidade de resgatar o foco
É com base na experiência bíblica de adoração delineada acima que a igreja cumpre o seu papel primário como local de culto. A qualidade da adoração pública é um reflexo de nossa experiência individual com Deus dentro de parâmetros bíblicos expressamente revelados.
Isso significa que a igreja não é um lugar onde buscamos obter qualquer coisa que possa suprir necessidades que julgamos importantes. Não é um local que possa acomodar nosso estilo de vida consumista, ávido por entretenimento e autossatisfação. Em vez disso, comparecemos à igreja para oferecer nossa vida a Deus em louvor, adoração e serviço alegre e voluntário; uma experiência em que Deus – e não o adorador – é honrado e glorificado.
Mesmo uma adoração sincera pode estar sinceramente errada se for oferecida com base em sentimentalismos banais e métodos mundanos. A adoração genuína é sempre uma resposta à revelação que Deus faz de Si mesmo em Sua Palavra. Expressões cultuais (orações, cânticos, leituras bíblicas, dízimos e ofertas, etc.) devem ajudar os adoradores a contribuir para a unidade cristã dentro dos padrões bíblicos, de modo a não confundirem o sagrado com o comum. (3) Não é a nossa opinião, nem as nossas “necessidades percebidas” que contam, mas o “assim diz o Senhor” (Isaías 8:20; Colossenses 3:16; I Tessalonicenses 3:12-13; Hebreus 4:12).
Note-se, de passagem, que transformar a igreja em um espaço de estímulo aos sentidos não é algo que acontece subitamente. Trata-se de um processo sutil, que começa quando percebemos como são vantajosos os espaços de entretenimento do mundo, com as comodidades e sofisticações que o melhor da tecnologia pode oferecer. Fazemos essa leitura tendo em vista a sagacidade do Diabo em atrair para si as multidões, e, então, pensamos: porque não usar esses mesmos recursos para o avanço da obra de Deus?
Como consequência, sob o pretexto de oferecer o melhor para Deus, adornamos Sua casa com os mimos dos grandes auditórios, almofadando os assentos, instalando climatizadores de ambiente e avançados sistemas de iluminação e som. Em nome de um argumento razoável, não nos damos conta de que transformamos a igreja num espaço destinado a alimentar os caprichos de nossa natureza caída.
O fato de vermos a igreja com o mesmo espírito com que assistimos a um espetáculo indica que nos tornamos fortemente dependentes de tecnologias, recursos e estímulos que entorpecem nossos sentidos e excitam nossa natureza carnal. Não importa se ainda pregamos o evangelho. O meio é a mensagem.
O apelo do primeiro anjo opõe-se precisamente a essa natureza pecaminosa, alienada e hostil a Deus, que necessita urgentemente ser redimida e transformada pelo poder de Cristo.
Notas e referências
1. Ellen G. White. O Desejado de Todas as Nações. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2007, p. 123.
2. Eurydice V. Osterman. O que Deus diz sobre a Música. 6ª ed. revisada. São Paulo: Unaspress, 2007, p. 37.
3. Este é um dos maiores desafios para o cristão em uma sociedade profundamente secularizada como a nossa. Samuele Bacchiocchi observa que para muitas pessoas hoje nada é mais sagrado. O Dia Santo tornou-se um feriado. O matrimônio é visto como um contrato civil que pode ser anulado facilmente pelo processo legal, em vez de ser uma aliança sagrada testemunhada e garantida pelo próprio Deus. A igreja é tratada como um centro social para divertimento, em vez de ser um lugar sagrado para adoração. A pregação tira sua inspiração de assuntos sociais, em vez de tirá-los da Palavra de Deus. Pelo mesmo motivo, a música na igreja é frequentemente influenciada pela batida do rock secular, em vez de ser influenciada pelas Escrituras Sagradas. – Samuele Bacchiocchi. “Uma Teologia Adventista da Música na Igreja”. Em
O Cristão e a Música Rock: Um Estudo dos Princípios Bíblicos da Música
. Tradução de Mauro Brandão e Levi de Paula Tavares, p. 171.