Teologia da libertação, a igreja e uma nova perspectiva eclesiológica
Embora as teologias negras e feminista tenham, também, uma visão funcional da igreja, parece que tal conceito não está explicitamente articulado em uma eclesiologia clara.[56] Teólogos da libertação latino-americanos, contudo, têm devotado intelecto e esforço para estabelecer em termos pouco precisos sua noção de comunidade cristã.
Fiéis à sua metodologia teológica, com um compromisso ativo na práxis,[57] os libertacionistas têm tentado redefinir a compreensão da igreja, para superar a tradicional visão eclesiocêntrica e conservadora da presença da igreja no continente. Focando no papel fundamental que deve conduzir sua participação na luta pela libertação e pela justiça, os teólogos da libertação demandam uma completa descentralização da igreja e delineiam uma eclesiologia radical em forte contraste com aquela que tem sido operativa no passado.
Uma nova perspectiva eclesiológica
Para fornecer uma interpretação teológica para o engajamento da igreja em favor dos pobres e sua causa, a teologia da libertação procura, primeiramente, construir uma ponte no enorme buraco entre a vida normal da fé e o compromisso revolucionário defendido por seus proponentes. Gutiérrez, em particular, dirige-se à questão do relacionamento entre a missão da igreja e a práxis social, entre a salvação e o processo de libertação. Ele destaca sua visão da igreja com a afirmação fundamental de que toda eclesiologia deve estar enraizada em uma compreensão adequada da salvação. A noção tradicional de salvação da igreja – que, corrompida com a conotação quase exclusiva de um outro mundo, tornou-se uma espécie de “fuga da realidade”[58] – é radicalmente desafiada pela rejeição da teologia da libertação de qualquer divisão entre o espiritual e o material.[59]
Para a teologia da libertação, a salvação não é mais uma questão quantitativa e extensiva (i.e., uma questão de quantos serão salvos e o papel que a igreja desempenha nesse processo), mas, em vez disso, uma questão qualitativa e intensiva (i.e., uma questão de como exercer a graça salvadora que tem se tornado extensiva a cada um no evento de Cristo). Embora a abordagem quantitativa destaque os aspectos individuais, eclesiocêntricos e futurísticos da salvação, a qualitativa, pelo contrário, enfatiza as suas dimensões corporativas, universais e atuais. Disto emerge a conclusão inevitável: despojada do monopólio dos recursos da graça e da redenção, a igreja deve cessar “de considerar a si mesma como a fonte exclusiva de salvação e orientar-se em torno de um novo e radical serviço para a humanidade”.[60]
Negando qualquer pretensão de universalidade eclesiástica com base em noções espaciais, os teólogos da libertação colocam a questão em um novo contexto. A significância universal de igreja deve ser entendida de forma dinâmica, em termos de missão vocacional e especial, fazendo as obras de amor no mundo, estando a serviço dos homens e se manifestando ao resto da humanidade como quem faz seu caminho para a mensagem do plano de Deus para o mundo.
A igreja é, portanto, essencialmente um sinal visível e sacramental[61] da libertação dos homens na história. Como tal, não existe para si mesma. Ela não tem significado por si só, a não ser na medida em que é capaz de dar significado à realidade em função da qual ela existe. O que esse entendimento da igreja significa para a comunidade eclesiástica em um contexto onde enfrenta lutas pela libertação e por uma sociedade justa? Significa que a igreja deve encontrar sua missão em dar significado à realidade da salvação, tornando-se um sinal visível da presença do Senhor no esforço de romper com uma ordem social injusta, para libertar e humanizar os oprimidos.
A igreja e o mundo
Para os teólogos da libertação, a noção tradicional expressa pela fórmula “a igreja e o mundo” tem funcionado como um dualismo que tem servido para excluir a igreja da história: sobrenatural e natural, história da salvação e história secular, o sagrado e o profano. Assim, rejeitando as respostas tradicionais à questão do relacionamento entre a igreja e o mundo, os teólogos da libertação enfatizam que essa bifurcação se torna uma “frase antiquada que deve ser substituída pela ‘igreja no mundo’ ou pela ‘igreja do mundo’”.[62]
Para Gutiérrez, a igreja não é um não-mundo ou uma “ordem aparte”, a ordem da salvação e da santidade no mundo. Em vez disso, a igreja “deve se voltar para o mundo, no qual Cristo e seu Espírito estão presentes e ativos; a igreja deve se permitir ser habitada e evangelizada pelo mundo. […] a teologia da igreja no mundo deve ser complementada por uma teologia do mundo na igreja”.[63] Desde que para a teologia da libertação, a história é aquela em que[64] “as fronteiras entre a vida de fé e obras temporais, entre a igreja e o mundo, tornam-se mais fluidas em ambas as direções. Participar no processo de libertação já é, em certo sentido, uma obra salvífica”.[65]
Resumindo, consistente com a orientação histórica que permeia seus escritos, os teólogos da libertação enfatizam que não existe uma solidariedade da igreja para com o mundo. A salvação a qual a igreja testemunha está intimamente relacionada com a libertação do homem no plano político. A missão da igreja, portanto, é determinada mais pelo contexto político da sociedade em que está inserida, do que por preocupações intraeclesiásticas. Vivendo em um mundo de revolução social, a identidade da igreja, sua missão e estruturas eclesiásticas, assim como sua abordagem para com a sociedade, deve ser definida em relação à realidade histórica. Onde nisso tudo se encontra a transcendência da igreja? Não há dúvida de que, para teólogos da libertação, é tão-somente tornando-se imanente ao mundo que a igreja, realmente, testemunhará sua transcendência; em contrapartida, o fracasso na imanência só revela uma transcendência inapropriada.
Referências:
[56] Avery Dulles em seu Models of the Church, por exemplo, dificilmente menciona teologias negras ou feministas. [57] Para os teólogos da libertação a ação pastoral da igreja tem chegado a uma conclusão a partir de premissas teológicas. A teologia não guia a atividade pastoral, mas é, em vez disso, uma reflexão sobre ela. Ver Gutierrez, “Notes for a Theology of Liberation”, ThS 31 (1971), p. 144, 145. For this reason, Gutierrez insists that if the church whishes to deal with the real question of the modern world and to attempt to respond to them, it must open a new chapter of theological-pastoral epistemology. Assim “em vez de usar apenas a revelação e a tradição como ponto de partida… ela deve iniciar com fatos e questões derivadas do mundo e da história” (A Theology), p. 12.[58] Sob a influência da filosofia grega dualista, a igreja tradicionalmente interpretou a realidade em duas dimensões históricas, em duas esferas isoladas. Por um lado, o universo não-histórico, o reino superior e exaltado de verdade eterna, espírito, alma e salvação sobrenatural, tudo além do mundo humano da história; por outro lado, a esfera mundana e inferior, usualmente associada ao reino maligno da matéria, corpo e natureza. A opção entre as duas realidades, vistas como irreconciliáveis, parece clara. A igreja tornara-se preocupada demais com o reino sobrenatural, exibindo uma decidida falta de interesse no temporal, no lado empírico da vida humana, que se sente tão somente à parte de seus interesses, mas, também, considerado religioso e moralmente irrelevante.
Como uma correção significativa para esse viés espiritualizador, a teologia da libertação tem exposto a infiltração do dualismo platônico na teologia ocidental tradicional, que fizera do evangelho e da salvação excessivamente individualistas e de outro mundo. Gutierrez, como os teólogos da libertação em geral, defende uma visão mais ampla da salvação, uma “que envolva toda a realidade humana, transforma-a e a conduz a sua plenitude em Cristo” (A theology, p. 153). No entanto, a teologia da libertação oscila o pêndulo longe demais em direção à esfera política da vida. VerCarl E. Braaten, “The Christian Doctrine of Salvation” (Interp, 1981), p. 127-130; ver, também, Orlando Costas, Christ Outside the Gate (Marykoll, NY.: Books, 1982), p. 139-130.
[59] Entendida como uma “realidade intra-histórica”, argumenta-se, a salvação não pode mais se referir a uma outra esfera separada e de forma distinta às condições materiais da vida humana. Salvação, insistem os teólogos da libertação, deve ser orientada para a transformação da realidade humana na história, começa, portanto, na construção do “projeto histórico.” Gutierrez, “Freedom and Salvation”, p. 86. Hugo Assmann, “Theology for a Nomad Church” (Maryknoll, NY.: Orbis Books, 1976), p. 67. Uma vez que a libertação que Cristo oferece é universal e integral, satisfaz-se ao envolver a todos os homens e ao homem como um todo, não sendo sem consequências políticas; portanto, não se limita, puramente, a um “plano espiritual.” [60] Gutiérrez, A Theology, p.261 [61] Ibid., p. 261. O Segundo Concílio Vaticano já concebera a igreja como sacramento de salvação (Lumen Gentium, nº’s 1, 48; Gaudium et Spes, nº 45.). Esta noção é considerada o marco mais importante do Vaticano II no campo da teologia dogmática; ver K. Rahner, “The Christian of the future” (Montreal: Pam Publishers, 1964), p. 82. No entanto, não ganhou a aceitação de todos os teólogos pois temia-se que ela levaria a uma “redução da eclesiologia no estudo de elementos externos”; Jerome Hamer, “The Church Is a Communion” (New York: Sheed and Ward, 1964), p. 88. [62] Assmann, “Practical Theology of Liberation” (London: Search Press, 1975), p. 91. Este entendimento coloca a teologia na trilha de uma nova forma de conceber a relação entre a igreja histórica e o mundo [63] Gutiérrez, A Theology, pp. 260-261.[64] Gutierrez, ibid., p. 53-167. Argumentando-se a partir de um ponto de vista teológico que tenta eliminar todo dualismo, a teologia da libertação afirma que toda a história é unificada. Não há história de salvação separada. Toda a história deve ser entendida como uma história geral da salvação. Esta visão monistica da história tem dado margem a fortes críticas. Ver B. Kloppenburg, The People’s church (Chicago: Franciscan Herald Press, 1974), p. 100-105; ver, também, Peter Wagner, Latin American Theology: Radical or Evangelical? (Grand Rapids, MI.: Wm. B. Eeerdmans, 1970), p. 42. Se tudo é história da salvação, como os teólogos da libertação afirmam, cogita-se a concordar com a observação de Morris Inch que “então, nada é história de salvação e o homem, como um todo, permanece alienado de Deus,” “Doing Theology Across Culture” (Grand Rapids: Baker Book House, 1982), p. 69.
[65] Gutiérrez, ibid., p. 72.(Pastor Amin Rodor, ThD, é professor de Teologia Sistemática na Faculdade Adventista de Teologia, Unasp-EC. Trabalhou em diversos segmentos da IASD no Brasil e no mundo. Artigo originalmente publicado, em Inglês, sob o título “The Impact of Liberation Theologies on the Church” pelo Biblical Research Institute e, posteriormente, revisado e publicado pela revista Kerygma e pelo site Estudos Adventistas, que fez a tradução do texto original)
Leia também a Parte 2 deste estudo (clique aqui).