Você realmente sabe o que é capitalismo?

Pouca gente sabe definir, de fato, o que é capitalismo. Para muitos, a palavra virou sinônimo de exploração, consumismo, egoísmo e direita política. Nada disso, contudo, é definição, mas apenas juízo de valor e associação simplista. Alguns ainda afirmam ser o capitalismo uma ideologia, tal como o socialismo, o fascismo, o nazismo e outras – o que também é um equívoco. Sem a definição correta, não há como discutir, por exemplo, se o cristão deveria defender o capitalismo ou não. O objetivo desse breve texto, portanto, é definir o termo, entender o conceito evocado pelo mesmo e analisar de que forma o cristão deve se relacionar com o capitalismo.

O sistema natural de trocas

O que comumente chamamos de capitalismo é, na verdade, um sistema natural de produção e trocas, baseado na existência de propriedade privada, em uma fase amplificada pela industrialização, globalização, uso do dinheiro e relativa liberdade econômica. Isso significa que um protocapitalismo ou capitalismo embrionário existiu durante milênios desde que os primeiros homens começaram a produzir e trocar coisas uns com os outros de maneira comercial.

Explicando de maneira mais simples: eu tenho uma plantação de milho. Um conhecido meu tem uma plantação de trigo. Eu quero trigo, ele quer milho. Efetuamos a troca de algumas quantidades de acordo com o que julgamos justo. É algo natural. Trata-se de uma solução óbvia, prática e legítima que surge de uma necessidade real. A extensão dessas trocas entre vários agentes diferentes cria o comércio ou mercado.

Tão logo uma sociedade cresce e, por consequência, seu mercado, surge a dificuldade de saber qual é a equivalência entre vários itens distintos. Por exemplo, quanto de milho vale quanto de trigo? Quanto de trigo vale um cavalo? Quantos cavalos valem uma casa? Quanto de trigo vale quanto de arroz? Quanto de arroz vale quanto de milho? Essa dificuldade óbvia gera  a necessidade de um denominador comum, de algo que sirva para fazer todas essas equivalências de modo simples. Então, surgem os primeiros tipos de dinheiro. O dinheiro torna as trocas mais viáveis e amplas.

Esse cenário bem primitivo, que pode surgir (e surge) em qualquer pequeno povoado em toda a terra e há vários milênios, possui as sementes do que entendemos hoje como economia de mercado. Amplifique todos os elementos com industrialização e comércio global e o que temos é o capitalismo.

A propriedade privada dos meios de produção

Tal como o comércio surge naturalmente da necessidade de produção e trocas, a propriedade privada dos meios de produção também. Ela é uma decorrência lógica de uma série de outras propriedades privadas fundamentais que se inicia com a propriedade de nossos pensamentos e nosso corpo.

Cada indivíduo possui personalidade, unicidade, autoconsciência, perfil, mentalidade, responsabilidade pessoal, em suma, individualidade. Assim, ele é, sob o ponto de vista humano, dono de suas próprias ideias e seu próprio corpo. Por conseguinte, ele também é dono das roupas que se esforça para conseguir, a fim de cobrir o seu corpo. E, de igual forma, do fruto de seu trabalho para conseguir comida, abrigo, proteção. O que um homem conquista por esforço próprio e honesto é por direito seu.

Imagine que um homem, há quatro milênios, encontra um local desabitado e passa a plantar ali. Constrói um abrigo, ferramentas para caça, proteção e aragem da terra. Ora, tendo feito tudo isso com suas ideias, seu corpo e seu esforço, nada mais justo que essas coisas lhe pertençam. Seria injusto que alguém que não teve esse trabalho todo viesse e se apossasse de tudo o que é desse homem sem seu consentimento.

Note que é tão injusto violar a propriedade material externa desse homem (suas roupas, ferramentas, casa, bens), quanto a propriedade de seu corpo e de suas ideias. Qualquer um que valorize sua mente e corpo deverá valorizar também aquilo que produz para si usando sua mente e corpo. A propriedade de nós mesmos leva à propriedade do fruto de nosso esforço, seja este roupas, abrigo, plantação, ferramentas, máquinas, objetos de lazer, armas, etc.

É óbvio que em nosso mundo de pecado, haverá distorções na natureza das coisas. Alguns obterão propriedades de modo injusto. Haverá gente sem propriedade enquanto outros terão muitas. Mas essas distorções não servem para demonstrar que a prioridade privada é imoral, não é natural, é a raiz dos problemas sociais e morais em si. Serve apenas para enfatizar que o pecado distorce o que é natural e bom (ou neutro). Não há, contudo, razão lógica, muito menos bíblica para supor que a prioridade privada é má e a causa das injustiças do mundo.

A Bíblia Sagrada elenca como razão de todas as injustiças sociais a queda do ser humano e a consequente inclinação ao mal que todos os descendentes de Adão e Eva passaram a ter. O problema, então, está na própria imperfeição interna do ser humano, que é inerente à nossa (nova) natureza pós-queda. Qualquer análise da realidade que despreze ou diminua esse fato é antibíblica e falsa.

Os empregados do mercado

Com o crescimento das sociedades e, por conseguinte, dos comércios, outro elemento que surge na equação são os empregados. Isso também se dá de forma bastante natural. Certo homem precisa de ajudantes para manter seu comércio, atender mais pessoas e expandir. E há pessoas que precisam de empregos. O homem, então, emprega algumas dessas pessoas.

Essa dinâmica existe por uma razão óbvia. Pouca gente produz tudo aquilo o que precisa e deseja. Pense em nós hoje. A maioria de nós não planta arroz, feijão, trigo, alface e tudo o mais para prover nosso almoço e janta; não tosquia ovelhas para fazer as próprias roupas; não tem dezenas de árvores com diversas frutas; não cria bois, galinhas e vacas; não caça animais; não faz as próprias ferramentas; não constrói os próprios carros e computadores; não fabrica o próprio papel higiênico; não cria os tijolos para fazer sua casa.

A lista do que precisamos e desejamos é gigantesca. A maioria, não fabricamos. Apenas compramos de quem faz. Os agentes da sociedade se especializam em um, dois ou três ramos e passam a ofertar o produto ou serviço. Compramos de cada um desses agentes e pagamos com o dinheiro ou os bens produzidos pelo nosso próprio trabalho no ramo em que nos especializamos. Veja que não há nada de errado nesse arranjo. Ao contrário, é um arranjo óbvio, eficaz e necessário.

O comércio, a propriedade e as riquezas na Bíblia

O arranjo formado pela propriedade privada dos meios de produção, as livres trocas, os empregados e o dinheiro como equalizador não só nos acompanha a milênios como é relatado na Bíblia Sagrada sem condenação por parte de Deus. Grandes homens fieis a Deus tiveram propriedades, comércios, empregados, riquezas e exerceram atividades de mercadológicas, tais como Abraão e Ló (Gn 13:1-9), José (Gn 41:55-57), Jó (Jó 1:1-22 e 42:10-17), Boaz (Rt 2:1-20), José de Arimateia (Mt 27:57-61), Nicodemos (Jo 19:39) e outros. E longe de ser uma atividade reservada aos homens, o empreendedorismo é incentivado pela Bíblia Sagrada para as mulheres virtuosas (Pv 31:10-27). Com grande probabilidade, aliás, o ministério de Jesus foi sustentado pelos ganhos de comércios, já que algumas mulheres bem abastadas contribuíam ativamente com seus bens materiais para a obra de Cristo (Lc 8:3).

Paulo, conquanto não tenha sido (pelo menos, a Bíblia não relata) proprietário de terras e comércios, se engajou na atividade comercial por algum tempo. Em Atos 18:1-4, nós lemos que Paulo conheceu em Corinto um casal judaico-cristão, Priscila e Áquila, que trabalhavam fazendo tendas. E por um tempo, o apóstolo passou a morar com o casal e fazer tendas também, dedicando apenas o sábado (dia santo de descanso) para se dedicar totalmente à pregação do evangelho nas sinagogas. O relato dá a entender que o casal era empreendedor. Assim, Paulo se tornou uma espécie de empregado ou sócio. Ele só volta a trabalhar integralmente na pregação do evangelho (largando o ofício com o casal amigo) quando Silas e Timóteo vão ao seu encontro, presumivelmente com provisões advindas de dízimos e ofertas (vs. 5).

O texto de Atos 18:1-4 demonstra não só a legitimidade do comércio, da propriedade privada e do empreendedorismo como também a importância de pessoas que trabalhem em serviços seculares normais, a fim de auxiliarem no sustento dos que pregam o evangelho integralmente. Na falta dessas pessoas, missionários e pastores precisam se dividir entre trabalho secular e missão, como fez Paulo durante um tempo. Assim, para que haja missionários em tempo integral é preciso que haja empregados e empregadores em ofícios seculares normais. E Deus pode ser glorificado tanto por todos esses, cada qual em sua função.

A propriedade privada, um dos pilares desse arranjo comercial natural, é pressuposta e defendida por toda a Bíblia. No decálogo, por exemplo, os mandamentos “não furtarás”, “não cobiçarás”, “não adulterarás” e “não assassinarás” (Êx 20:3-17) estão ligados à noção de que existe propriedade privada. Só se pode furtar e cobiçar aquilo que não é seu, mas de outros. Se há coisas de outros e não suas, então há propriedade privada e os mandamentos de Deus legitimam isso. O mandamento contra a cobiça é bem claro nessa legitimação: “Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença ao seu próximo” (Êx 20:17).

Da mesma forma, a proibição contra o adultério legitima a ideia de que a esposa é dona do marido e o marido é dono da esposa. Não no mesmo sentido em que somos donos de objetos, é claro. Mas no sentido de pertencer maritalmente apenas ao cônjuge. É essa ideia mesmo de propriedade privada um do outro que Paulo vai usar em I Coríntios 7:4, ao falar de relação conjugal. Já o assassinato consiste em dois ataques à propriedade, a do indivíduo em relação à própria vida e a de Deus, que é dono de nossas vidas acima de nós mesmos (em relação a Deus somos apenas administradores da vida que Ele tem nos permitido ter, não donos).

O mandamento do sábado também pressupõe e legitima a propriedade privada, embora de um modo mais indireto. Ele afirma:

“Lembra-te do dia de sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o sábado do SENHOR, teu Deus; não farás nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o forasteiro das tuas portas para dentro; porque, em seis dias, fez o SENHOR os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o SENHOR abençoou o dia de sábado e o santificou” (Êx 20:8-11).

Perceba que o trecho confirma que todos os indivíduos podem ser proprietários privados de seis dias (para trabalhar e fazer toda a obra pessoal), de sua própria vida, de seus filhos (no sentido patriarcal), empregados (no sentido trabalhista) e animais. Contudo, estabelece-se que essa propriedade não é absoluta. O homem tem um dia que deve ser completamente do Senhor. E nesse dia até aqueles sobre os quais ele tem autoridade diária devem se dedicar exclusivamente a Deus, queira o homem ou não. Isso demonstra que a propriedade privada do homem existe, mas é limitada pela soberania de Deus, que é dono máximo de tudo e pode requerer o que quiser de volta para si (como um dia santo exclusivo por semana).

Em suma, o mandamento do sábado reforça que tudo o que nós temos (tempo, dinheiro, bens, habilidades, trabalho, estudos, lazer, ideias, esforços, cônjuge, filhos, empregados, amigos, animais e qualquer coisa, incluindo nossa própria vida) pertencem a Deus. E é precisamente isso que nos provê base (pelo menos deve prover) para administrar o que é temporariamente nosso com responsabilidade, humildade, fidelidade e amor a Deus e ao próximo. Um patrão, por exemplo, que não permite que seus funcionários trabalhem aos sábados, fechando seu comércio, está exercendo amor para com Deus e com o próximo, além de reconhecendo que Deus é soberano sobre sua empresa, tempo e dinheiro.

A propriedade privada de cada homem, conquanto esteja subordinada a Deus, não deve ser subordinada aos interesses de governantes, poderosos ou ladrões mais pobres. É o que a Bíblia ensina. Em I Reis 21:1-19, o rei Acabe oferece ao cidadão Nabote, que morava ao lado do palácio, uma vinha em troca da sua ou o valor dela em dinheiro. O dono da vinha negou o pedido, pois era herança de seus pais. Acabe se voltou para casa chateado e não faria nada quanto a isso, respeitando à contragosto o direito de Nabote em não querer se desfazer da vinha. Contudo, a esposa pagã de Acabe, Jezabel, instigou o rei a condenar Nabote à morte sob (falsa) acusação de blasfêmia e, assim, se apossar de sua propriedade. Foi o que Acabe fez. Imediatamente, Deus envia mensagem ao rei mensagem do profeta Elias condenando veementemente o ato. O rei, mesmo tendo grande poder, não deveria ser soberano sobre a propriedade dos outros.

Repreensão semelhante recebeu o rei Davi quando tomou a esposa de um soldado e ao perceber que a engravidara, armou para que o mesmo fosse colocado na linha de frente de uma guerra e morresse. Deus enviou o profeta Natã que lhe contou uma parábola sobre um homem rico que tendo muitas ovelhas tomou a única que um homem pobre tinha. Davi se irou contra o homem da parábola e Natã revelou que se tratava do próprio rei, informando como Deus traria condenações sobre ele futuramente (II Sm 12:3-14).

Em Êxodo 22, a lei civil hebraica previa que ladrões deveriam restituir em duas, quatro ou até cinco vezes mais aqueles que foram roubados. Nos versos 2-3, a lei não imputava culpa sobre alguém que matasse um ladrão arrombando sua casa à noite. O assassinato, o sequestro e o adultério são punidos com a pena de morte em diversas passagens da lei civil dos hebreus, demonstrando o caráter sagrado que a propriedade privada da vida, do corpo e do cônjuge possuíam (Gn 9:6 e 21:12-16; Dt 19:11-13; Dt 22:22 e 25-27). Em Lucas 19:8-10, Zaqueu, ao se converter a Cristo, resolve dar metade de seus bens aos pobres e restituir em quatro vezes a quem pudesse ter defraudado, reconhecendo que deveria devolver o que não era seu e ser abençoador com o que Deus lhe dera.

Fica claro, portanto, que todos os elementos desse arranjo econômico natural que se transformaria no capitalismo a partir dos séculos 16 e 17, nunca foram descritos pela Bíblia como intrinsecamente ruins ou como causadores das injustiças do mundo.

O que a Bíblia condena

O que a Bíblia condena nesse arranjo milenar e, consequentemente, no capitalismo não são os elementos do arranjo em si, mas suas distorções. As Escrituras veementemente falam contra a ganância e o amor ao dinheiro (I Tm 6:8-11 e 17-19; Tg 4:1-3), contra a exploração e a corrupção de poderosos (Jr 22:11-19; Tg 5:1-6), contra a distração de muitos pelas suas riquezas, deixando que a Palavra seja sufocada (Mt 13:22), contra a confiança nos bens (Sl 20:7 e Mc 10:23-27), contra o julgamento injusto que favorece o poderoso (Lv 19:15), contra a opressão às classes desfavorecidas (Zc 7:8-14).

Algumas passagens que falam sobre comércio e possuem condenações divinas nunca se referem ao sistema de compra/venda e à propriedade privada. Por exemplo, em Neemias 13:15-22 e Jeremias 17:19-27, lemos sobre ocasiões em que o povo de Israel estava fazendo comércio com vendedores de outras nações em dia de sábado, um dia que não é para comércio, trabalho e diversões seculares. Os textos condenam apenas a profanação do sábado, não o comércio em outros dias. Já o texto de Ezequiel 28:1-19, que também menciona comércio, conta com uma condenação à arrogância do rei de Tiro, de seus cidadãos e, por tabela, de Satanás (cuja história se entrelaça com a do rei soberbo dos tirenses nesse relato). Tiro recebe a mesma condenação em Isaías 23:17-18.

Jesus, por sua vez, condena o comércio no templo não por achar o sistema econômico errado ou por ser contra comerciantes, mas por discordar da ganância daqueles vendedores e de que as suas negociações fossem feitas no templo, local de adoração e reflexão espiritual (Mt 21:12-13; Mc 11:15-17; Lc 19:45-46; Jo 2:13-17). Profanação do sábado e do templo, arrogância, ganância, exploração, injustiça, amor e confiança nas riquezas, falta de amor a Deus e ao próximo. São esses elementos que Deus condena quando existem em comércios, nunca o comércio e as propriedades privadas em si.

Capitalismo: um sistema neutro

Tudo o que vimos até agora demonstra que o capitalismo não é, como muitos acham, sinônimo de exploração, consumismo, egoísmo, direita política. Trata-se de um sistema natural de trocas baseado na propriedade privada e amplificado por fatores modernos. A índole de cada pessoa dentro desse sistema é irrelevante para a existência do mesmo. Há quem, dentro do capitalismo, será explorador, consumista e egoísta. Há quem será justo, filantropo e altruísta. Haverá pessoas boas e pessoas más, tanto dentre os ricos, quanto dentre os pobres. Teremos grandes empresários bastante ricos, médios empresários com pouco poder e pequenos empresários com recursos bem limitados. O dono da padaria da esquina que trabalha com a família e três empregados, de domingo a domingo, mora num bairro pobre e anda de chinelo e bermuda, é um empresário também. O pipoqueiro é tão empreendedor quanto Bill Gates.

Na política, haverá gente de direita, centro e esquerda aceitando o capitalismo. Não se trata de um sistema defendido só pela direita. É comum que se confunda esquerda com socialismo ou comunismo, que são sistemas anticapitalistas. Embora o comunismo e os variados tipos de socialismo sejam sistemas de esquerda (extrema-esquerda, para ser mais exato), nem todos os esquerdistas são socialistas/comunistas. Sempre houve gente de esquerda que não intentava a destruição do capitalismo, mas apenas um capitalismo com empresas privadas fortemente reguladas e tributadas, muitas empresas estatais e um forte controle estatal da vida social em determinadas áreas. Mesmo entre os comunistas e socialistas, isso foi se tornando cada vez mais comum conforme a estatização total da economia se demonstrou insustentável e até inconveniente para a manutenção do poder do partido e seus líderes. Obviamente, no entanto, quanto maior o grau de socialismo de um país, menor será o grau de capitalismo.

Essa capacidade do capitalismo de abrigar diversas posições e intenções se dá pelo fato de o sistema não ser uma ideologia. Há pelo menos duas definições possíveis para a palavra “ideologia”. Uma é a de ideário, sistema de ideias. Nesse sentido popular, todas as pessoas tem uma ideologia e qualquer conjunto de ideias é uma. Porém, num sentido mais crítico e acadêmico, ideologia é um projeto amplo de sociedade terrena, sempre com pretensão de prover interpretação, explicação e solução para a realidade. Toda ideologia, portanto, é uma contrafação da religião tradicional (do cristianismo, do judaísmo e do teísmo em geral). Elementos como a queda do homem, pecado original, Diabo, Deus, bem, mal, juízo final, redenção, paraíso, condenação são plagiados pelas ideologias e distorcidos. Nas ideologias o problema do mundo deixa de ser o pecado original, a redenção deixa de vir de Deus, o inimigo deixa de ser espiritual e o paraíso futuro passa a ser terreno.

Conforme escrevi em outro texto, as ideologias são religiões seculares ou políticas. Elas surgem principalmente depois do iluminismo, todas com suas fórmulas terrenas de uma nova sociedade. A antropologia de Jean Jacques Rousseau, o hegelianismo, positivismo, darwinismo social, socialismos, anarquismos, comunismos, sindicalismo revolucionário, nazismo, fascismo, feminismos de segunda e terceira onda, movimentos negros radicais e outros sistemas são ou, em algum momento se tornaram, projetos de engenharia social com uma finalidade geral para a sociedade.

O capitalismo, conquanto possa ser ideologizado, tornando-se um messias redentor da sociedade (muitos anarcocapitalistas o fazem), não é uma ideologia em sua essência e origem. É sim apenas um sistema neutro de trocas sem pretensão geral nenhuma. Nele as intenções cabem apenas a cada agente da sociedade. Estados, governos, empresas e indivíduos podem usar bem ou mal esse sistema. Depende da índole individual e do arranjo das leis da sociedade, não do sistema econômico em si. Indivíduos maus e leis más gerarão uma sociedade má, que por sua vez formarão um capitalismo mal. Pessoas boas e bons arranjos legais gerarão uma sociedade melhor (não perfeita), que por sua vez formará um capitalismo mais saudável.

Um capitalismo com princípios judaico-cristãos

Uma vez que o capitalismo é um sistema neutro em sua essência e de origem natural, o cristão pode e até deve apoiá-lo. Deve ainda defender a propriedade privada, a liberdade de troca, a boa administração financeira e um Estado que não afronte indivíduos que trabalham honestamente, sejam patrões ou empregados. São princípios bíblicos. Pode também escolher uma vida de empreendedorismo e empregar pessoas. Nada disso é pecado. E nada disso obriga o cristão a defender algum partido político, candidato ou governante, tampouco ser de direita (como muitos supõem). Estamos falando de lógica, bom senso e princípios bíblicos, não de posições político-partidárias.

O que é obrigatório ao cristão, contudo, é que ele faça defesa de um sistema capitalista com leis justas e que se mantenha sempre preocupado com os necessitados. E é muito interessante notar como a Bíblia não vê nenhuma contradição entre o sistema natural de trocas baseado na propriedade privada (atual capitalismo), as leis justas e a beneficência social. Por exemplo, a Bíblia prevê o descanso no sábado por todos, até empregados, pois Deus se preocupa com o bem-estar espiritual, mental e físico do ser humano (Êx 20:8-11). O direito a um descanso semanal, portanto, pode e deve ser defendido numa sociedade de livre mercado. E o cristão deve zelar por descansar e dar descanso a seus empregados no sábado, já que esse é o dia que o Senhor separou para isso (Gn 2:1-3), antes mesmo de existir Israel – um benefício/mandamento para o homem no geral.

O cuidado de Deus com os necessitados é evidente em toda a Bíblia. Em diversos textos, o Senhor ordena aos israelitas e, posteriormente aos cristãos, que cuidem bem dos pobres, órfãos, estrangeiros, viúvas, servos e do próximo em geral, não fazendo acepção de pessoas (Lv 19:33-34; Dt 10:16-19, 16:10-19, 27:19; II Cr 19:7; Jó 29:12-16, 31:16-22, Jó 34:19; Sl 9:18, 12:15, 41:1, 68:5, 82:3, 94:1-23, 146:7-9; Pv 14:31, 15:25, 22:22-23, 29:7, 31:9; Is 1:17-23, 10:1-4, 56:1-6, 57:6-10; Jr 7:5-7, 22:3; Ez 22:1-8; Zc 7:8-14; Ml 2:9, 3:5; Mt 23:14; At 6:1-7, 10:34 e 11:27-30; Rm 2:11; Gl 3:26-29; Ef 6:9; Cl 3:8-17 e 4:1; I Tm 5:3; Tg 1:26-27, 2:15-20).

Em Israel, no Antigo Testamento, colheitas deveriam ser deixadas nos caminhos da ceifa para essas pessoas se alimentarem (Dt 24:17-22) e havia um dízimo especial, separado ao fim de cada três anos, para servir de sustento a elas (Dt 14:28-29 e 26:12-15). A cada sete anos todos os empréstimos feitos a hebreus pobres eram perdoados (Dt 15:1-2). Também a cada sete anos os campos não deveriam ser semeados. Era o descanso da terra. E nesse descanso, os pobres, servos, estrangeiros e demais necessitados podiam se servir livremente dos frutos dessas plantações (Êx 23:10-11 e Lv 25:1-7).

Os servos recebiam salário (Dt 15:18) e após seis anos de trabalho deveriam ser libertos e receber alguma coisa (Dt 15:12-15). Diferente dos servos em outras nações, os servos em Israel não podiam ter partes de seus corpos mutiladas (Dt 21:26-27). Se um servo fugisse de seu senhor, quem o encontrasse não poderia devolver, mas deveria abrigá-lo em proteção (Dt 23:15-16). Deus, em uma cultura mundial extremamente escravagista foi desfigurando a escravidão através de direitos protegiam e davam dignidade a quem era servo. E assim modificou a cultura e a sensibilidade moral dos hebreus ao longo dos séculos, alcançando o ápice nos primeiros séculos de cristianismo.

Novo Testamento, sem qualquer ajuda do Estado (nem o israelita, que estava dominado por Roma, nem o romano, que era antijudeu e anticristão), os cristãos se mobilizaram por livre e espontânea vontade para suprirem as necessidades uns dos outros a partir dos próprios recursos. Eles dividiam suas posses e muitos vendiam propriedades para ajudar quem estava precisando (At 2:44-45 e 4:32-35).

Muitos afirmam que essa postura da Igreja primitiva de dividir bens materiais teria sido uma forma de socialismo primitivo. Mas isso é um grande erro. Socialismo é uma forma de governo e, como tal, exige a distribuição de renda através da cobrança de impostos e da coação física por parte de um Estado. O indivíduo é obrigado a “contribuir” e não o faz diretamente aos necessitados ou à liderança da Igreja, mas “contribui” ao Estado, que pode ou não redistribuir. O socialismo marxista vai mais longe e exige, pela força, a estatização de todos os meios de produção e o fim da propriedade privada.

Não é isso que vemos em Atos e no restante do Novo Testamento. O estado não se intromete na equação. Não há coação estatal. As divisões são feitas pela vontade dos indivíduos a partir de uma associação privada, a Igreja. Os comércios e as propriedades não são condenadas, mas os verdadeiros cristãos passam a usar seus ganhos para a obra de Deus. Tal postura é perfeitamente possível dentro de um sistema capitalista. Não o é, contudo, dentro de um sistema comunista, onde a “justiça” social deve ser feita apenas pelo Estado e não por associações privadas; e onde a religião é considerada falsa, uma entidade opressora e um ópio para o povo.

Essas observações nos levam a duas importantes reflexões. A primeira é que o sistema capitalista pode contar com leis que auxiliam pessoas muito pobres e que garantam a dignidade humana. Defender o sistema capitalista não implica defender qualquer tipo de capitalismo. Não é cristão defender algo como crianças pequenas trabalhando horas em fábricas insalubres, por exemplo. E ninguém que defenda o capitalismo está obrigado a apoiar esse tipo de coisa.

Até a ICAR, que em sua doutrina oficial condena o comunismo, não defende um capitalismo extremo, laissez-faire. Ela possui a sua Doutrina Social, que busca frear as distorções que podem existir no sistema capitalista. Hilaire Belloc e G. K. Chesterton não defendiam nem o capitalismo extremo, nem o comunismo, mas o distributismo, um sistema baseado na pequena propriedade privada. Há os que defendem o Estado de bem-estar social (como é nos países escandinavos). Alguns são mais protecionistas. Outros são mais liberais. Uns defendem mais estatais, outros menos, outros nenhuma. Essas já são questões que se distanciam do campo teológico. São discussões que devem ser travadas nos campos da economia e da política. E cada um pode ter sua própria opinião, desde que não abrace ideias antibíblicas.

Nenhum modelo econômico, político e social será perfeito ou próximo a isso aqui nessa terra. A perfeição que esperamos ocorrerá apenas no paraíso que Jesus Cristo prepara para nós. Mas podemos, enquanto aqui, escolhermos os modelos menos ruins dentro das limitações desse mundo de pecado. E essa é nossa obrigação como cristãos.

A segunda observação é que a Bíblia demonstra estar mais interessada em cristãos que colocam a mão na massa por si mesmos. Podemos até defender um Estado que ajude aos mais necessitados de alguma forma, mas nunca deveríamos enxergar o Estado como sendo o principal responsável pela assistência social. Se Cristo afirmou que a marca de seus discípulos e seguidores é o amor ao próximo (Jo 13:35), então cabe a cada um de nós tomar a iniciativa para aliviar o sofrimento de nossos semelhantes; para fazer a diferença em nossa casa, rua, bairro, cidade.

O cristão deve entender que é ele, não um governante ou partido, que tem a responsabilidade primária de fazer algo pelos outros e por sua sociedade. Não tomando recursos dos outros por coação, mas fazendo uso dos seus e de quem quiser ajudar. Por conseguinte, a responsabilidade primária de fazer algo se estende do cristão à Igreja (conjunto de cristãos). É desses, não do governo, que Deus espera algo. Foi a esses que Cristo designou e sobre eles colocou o seu Espírito.

Os adventismo e o capitalismo

Tendo compreendido que um cristão pode e até deve defender o capitalismo (dentro dos princípios bíblicos), também vale muito destacar como que o adventismo em específico se coaduna com a economia de mercado. A Igreja Adventista do Sétimo Dia possui hoje uma vasta rede de empresas privadas, tais como colégios, universidades, seminários, hospitais, fábricas de alimentos naturais, estações de rádio, emissoras de TV, sites, blogs, editoras, jornais, gravadoras, além dos próprios templos de cultos (que não são empresas, mas são instituições privadas). Por meio dessas instituições, a IASD tem alcançado muitas pessoas com o evangelho, formado ótimos profissionais, enviado missionários pelo mundo, curado doentes, transmitido esperança, plantado igrejas e instruído gente do mundo inteiro. É, portanto, evidente que a IASD, bem como tantas igrejas, tem operado legitimamente dentro do capitalismo para cumprir sua missão.

Não há qualquer razão para que um adventista rechace o sistema capitalista e, em seu lugar, adote a fé em algum modelo socialista ou comunista. Aqueles que assim têm procedido, não estão, como pensam, apenas escolhendo uma posição política. Estão sim condenando o que a Bíblia não condena (como a propriedade privada e o comércio), desprezando as instituições de sua própria Igreja e flertando com ideologias que negam ou diminuem o pecado original, a redenção em Jesus Cristo e o paraíso vindouro. Este não é um problema político, mas teológico.

Por Davi Caldas

Fonte: Reação Adventista

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Escritor & Evangelista da União Central Brasileira

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