Por Davi Caldas
Em maio de 2016, dois casos de estupros coletivos foram muito divulgados pela mídia no Brasil (um ocorrido no Piauí e outro no Rio de Janeiro), causando grande comoção e revolta nas pessoas em geral. Os dois casos, assim como outros, levam a uma reflexão: por que o estupro é algo que incomoda tanto a maioria esmagadora das pessoas? Por que é considerado algo tão hediondo pelas sociedades humanas em geral? Minha intenção não é contradizer esse senso moral. O estupro realmente é abominável, concordo e ratifico. Mas por quê? Note que entre os animais, por exemplo, estupros fazem parte do cotidiano. É coisa bastante normal. E, até onde sabemos, as fêmeas não ficam psicologicamente abaladas após sofrerem tentativas de cópula forçada com algum macho que nunca viu na vida. Tampouco outros machos parecem se importar com o comportamento de seus colegas de espécie. Por que, para os animais, o sexo forçado e com um estranho, não incomoda tanto, não é abominável, não possui o mesmo significado que para nós, humanos?
A resposta é simples. Para o ser humano, a relação sexual não é uma atividade qualquer. Há na relação sexual uma seriedade, uma sacralidade, uma relevância que não existe em atividades comuns do cotidiano. O sexo humano vai muito além de uma mera troca de fluídos corporais, de um mecanismo físico para gerar filhos, de uma atividade prazerosa. Ele requer intimidade, uma intimidade que não se limita ao nível físico, mas a todos os níveis do relacionamento humano. É uma união não apenas de dois corpos, mais de duas mentes, de duas psiquês, de dois espíritos, de duas almas. É o complemento, o selo, a cobertura de todo um processo de conhecimento, de apoio mútuo, de confiança plena, em suma, de amor.
O sexo humano não é algo banal, algo que tenha sido projetado para se fazer com qualquer um, a qualquer hora, em qualquer lugar. Tanto não é que sabemos distinguir as coisas. Você está andando na rua e, de repente, uma pessoa que você não conhece passa por você e aperta a sua mão. Estou certo que isso não o abalará psicologicamente. A maioria das pessoas apenas acharia isso estranho. Algumas levariam um pequeno susto. Mas ninguém carregaria essa lembrança com dor e sofrimento por anos e anos. Aliás, não é preciso muito para que aceitemos um aperto de mão de alguém ou até um beijo no rosto. Em culturas mais abertas, como a do Brasil (sobretudo, a carioca) beijamos no rosto até quem conhecemos há cinco minutos. E um beijo roubado, na boca, por mais desagradável que possa ser para quem não queria beijar, jamais será tão horrível quanto um estupro. Preferimos apertar a mão de um mendigo visivelmente sujo a fazer sexo com alguém com quem não queremos ter esta relação. Por quê? Porque sexo não é uma atividade qualquer.
Aqui aqueles que se identificam com o pensamento secularista e pós-moderno se encontram em uma encruzilhada. Se por um lado todos parecem concordar que o sexo humano é algo tão sério e íntimo que transforma o estupro em ato hediondo (e que fere com profundidade as emoções da pessoa violentada), por outro lado, boa parte dessa mesma sociedade enxerga (e prega) que sexo não é algo solene e sacro, mas corriqueiro e profano como praticamente qualquer outra atividade. Uso as palavras “sagrado” e “profano” aqui não no sentido religioso, mas no sentido de relevância ímpar, que requer observação mais respeitosa.
Para estes que veem o sexo com olhos profanos, tal atividade não requer nada mais que pessoas interessadas em praticá-la. Não se enxerga aqui necessidade de vincular o sexo ao amor, ao casamento, à fidelidade conjugal, ao companheirismo, à paciência para com o outro, à intimidade não-física. O sexo humano aqui é rebaixado ao animalesco, com a diferença de que, como seres racionais podemos evitar o fim último do instinto sexual: a procriação. Nesta concepção, não há sacralidade no sexo, tal como não há sacralidade em puxar assunto com o jornaleiro ou comer pizza com um amigo. É coisa boba, comum, que não exige responsabilidade ou sentimentos nobres. Uma diversão como outra qualquer.
Sexo casual, sexo com diversas pessoas ao longo da vida, sexo entre adolescentes, sexo com parceiros temporários… Em todas essas modalidades falta algo de humano na relação sexual, algo que nos distingue dos animais, algo que faz o sexo ser realmente distinta das demais atividades, não apenas em grau de satisfação, mas em natureza, em essência. Aliás, essa é a diferença entre o sagrado e o profano. Pode-se comparar comer chocolate a comer queijo e cada um dirá o que, para si, é melhor em grau de satisfação. Mas não se pode comparar comer chocolate a fazer uma oração a Deus. A diferença não está no grau de satisfação, mas na natureza distinta das duas coisas. Orar é melhor não por grau; é melhor não porque, na mesma lista de atividades comuns, está acima de comer chocolate; é melhor porque está em outra lista, uma lista sagrada. Não há chocolate na lista sagrada. As modalidades elencadas acima não contam com essa diferenciação.
Um colega meu mora com uma moça. Vivem como casados, mas não o são no papel. Não o são porque não desejam fazê-lo. O que essa aliança está dizendo, na prática, é que existe a possibilidade de um dia de haver rompimento. Preferível é para eles não criar burocracias que venham atrapalhar este possível rompimento futuro. Ora, evidentemente, casamento não é a mera assinatura de um papel perante o Estado. Casamento é uma aliança eterna e incondicional firmada entre um casal, a qual não vê problemas em formalizá-la perante o Estado, à Igreja e quaisquer outras instituições, já que a hipótese de rompimento é desconsiderada pelos cônjuges. E é este o ponto: fora do casamento, o sexo perde sua sacralidade. Ainda que no interior de uma relação semelhante a um casamento e com vários anos de duração, ele será uma atividade tão rompível quanto à aliança no qual está inserido. E, por consequência, torna-se atividade passível de ser praticada com um novo parceiro quantas vezes sua aliança com um parceiro antigo der errado. A simples possibilidade de isso ocorrer já retira do sexo seu caráter sacro.
A relação sexual humana só alcança um caráter totalmente humano, isto é, sagrado, solene, respeitoso, importante, quando envolve-se de eternidade; e só envolve-se de eternidade quando se encontra no interior dessa aliança eterna chamada casamento. É aqui, e apenas aqui, que cada uma das duas partes envolvidas na relação sexual será vista pela outra como insubstituível. A partir do momento em que, para mim, relação sexual é sinônimo de relação sexual com uma pessoa específica, essa pessoa específica se tornará mais importante que o próprio sexo, a ponto de que, sem ela, não existe sexo. Ora, nada, portanto, pode tornar o sexo mais solene, sagrado, nobre, esplêndido, importante, belo, elevado, terno do que o casamento. No casamento o sexo torna-se algo único, algo de natureza completamente diferente de quaisquer outras atividades comuns. Não é mais uma mera diversão. É a extensão do profundo amor que se sente por uma pessoa, uma única pessoa, a única pessoa com quem esta atividade vale à pena, com a qual esta atividade tem real significado.
Em outros textos já afirmei que o secularismo nada mais é do que um cristianismo distorcido, esvaziado, desfigurado, onde procura-se retirar dele Jesus e mais tudo o que não convém aos desejos carnais, deixando apenas o que pode ser útil. O secularista é aquele que senta na cadeira com a Bíblia nas mãos e uma navalha, e põe-se a cortar aquilo que não quer seguir, deixando no entanto o suficiente para que dele não se diga: “Você é um monstro moral, hein!”. Do sexo, o secularismo deseja apenas o prazer físico. É conveniente jogar fora toda a responsabilidade e sacralidade envolvida na atividade, a fim de que seja mais fácil divertir-se por aí. A maldição do secularista, no entanto, é que não se pode esvaziar o sexo humano dessa maneira sem fazer com que ele deixe de ser humano. As consequências são desastrosas.
Uma sociedade em que o sexo paulatinamente deixe sua áurea sacra e solene, também paulatinamente deixará de ser humana. Na medida em que o sexo é jogado na lista de atividades comuns e banais, também casamento, família, fidelidade, sacrifício, paciência, negação própria e amor deixarão a lista de coisas sagradas. E quando estas coisas não mais são sagradas, elas não mais são o que são; elas se perdem; elas deixam de existir porque se distanciam de suas essências. Se o amor está no mesmo patamar que o apreço por jogar baralho, não existe mais amor. Ao mesmo tempo, na lista das coisas sagradas, nos lugares antes pertencentes ao que era nobre, passa a figurar as alianças temporárias, as relações espúrias, as famílias desestruturadas, a infidelidade, o egoísmo, o egocentrismo, a impaciência, o hedonismo, a mágoa, a vingança, a falta de limites, o desrespeito, o orgulho, a soberba, a frieza.
O que o secularismo vem fazendo com as pessoas senão isso? Que mensagem o secularismo traz sobre o sexo? “Faça com quem quiser, quando quiser, com a idade que quiser. Apenas preocupe-se em usar preservativos”. Há quem ache a mensagem inofensiva. Será? Músicas como o funk “Baile de Favela” (“E os menor preparado pra f**** com a xota dela”) não surgiram em 1920, de um dia para o outro, contando com diversos ouvintes e defensores. Ninguém aceitaria isso naquela época. As coisas não se mudam tão bruscamente. Não se sobe vinte degraus saltando do primeiro ao último. Assistimos ao longo de décadas a sociedade ser moldada, aceitando a revolução sexual, o incentivo ao divórcio e a destruição dos valores familiares, sempre sob um prisma de liberdade individual, direitos humanos e quebra de “tabus” religiosos infundados. Gradualmente, observamos o sexo ser banalizado e distribuído aos adolescentes e jovens como barras de chocolate, como diversão de fim de semana para todas as idades. E então vimos as músicas, filmes e até mesmo aulas de escolas e universidades incentivarem a promiscuidade, transformando o sexo em algo animalesco, desprovido de toda a humanidade que deveria ter. Mas tudo com a máscara da diversão saudável. Um degrau de cada vez.
Falei de universidades. Isso me lembrou algo. Acompanhei, dia desses, uma amiga que passou em medicina num tour pela nova faculdade dela. Juntamente com um grupo de calouros, nós seguimos uma veterana por corredores, pátios e salas, enquanto ela falava da faculdade. Num dado momento, a veterana apontou um muro pintado pelos alunos do “coletivo de mulheres”. Era uma pintura tosca, bastante malfeita, com palavras de ordem e uma denúncia ao fato de que há muitos casos de assédio e estupros no Brasil. A guia do grupo explicou que nas festas dadas pelo centro acadêmico, muitas alunas estavam reclamando de assédio e que aquele muro pintado foi uma forma do coletivo chamar a atenção para o caso.
Ora, estes que acreditam poder vencer os problemas do mundo fazendo pinturas rústicas nas paredes, estão entre os propagadores (e coniventes) da profanação do sexo. As suas festas estão repletas de pessoas com princípios líquidos, hedonistas, extasiadas por músicas altas e indecentes, com pensamentos libidinosos e muito, muito álcool no cérebro. No caso daquele curso em específico, futuros médicos. E a pergunta que fica é: num contexto desses como se espera frear os instintos mais abjetos do ser humano? Eis a pergunta que o secularismo não responde. Para os jovens secularistas, revolucionários, progressistas, pintar paredes e gritar palavras de ordem é menos embaraçoso que enfrentar a realidade e perceber que seus coletivos apenas agigantam os problemas que dizem lutar contra.
Volto-me para os estupros coletivos mencionados no início do texto. Será que os homens que cometeram tão hediondo crime possuem uma concepção eterna de casamento? Será que eles entendem a relação sexual humana como sagrada, solene e de natureza diferente de todas as demais atividades comuns? Será que são casados? Será que para eles sexo é sinônimo de sexo com suas esposas? Será que amam profundamente suas esposas? Será que apreciam a noção de fidelidade conjugal? Casaram-se virgens? Entenderam a importância de se guardarem castos para a pessoa com a qual compartilhará até a alma? Sabem o que é amar uma mulher? Sabem qual é a importância de uma família sólida? Estão acostumados a colocar de lado o egoísmo, a negar-se a si mesmo, a sacrificar-se por alguém que ama? Reconhecem a família e os princípios morais como provenientes de um Deus bom e santo? Ou será que são pessoas acostumadas a sexo casual, a lugares promíscuos, a músicas indecentes, a hábitos e pensamentos egoístas? Sabemos a resposta.
O secularismo não percebe que ao jogar fora a sacralidade do sexo e assim ensinar à sociedade, joga fora também limites morais. Não é um salto para o vigésimo degrau. Sobe-se um degrau de cada vez. Para quem está no degrau 17, o degrau 20 não está distante. Então, eu pergunto: quão distante está o assédio sexual e o estupro para alguém que, desde pequeno, aprendeu que sexo é apenas uma atividade como qualquer outra? Quão distante está o estupro para alguém que desde pequeno foi estimulado por músicas, filmes e bailes a amar mais o prazer sexual do que a pessoa escolhida para fazer sexo? Quão distante está o estupro para alguém que vive em lugares onde negar seus instintos é a última coisa que se ensina, e onde estar em êxtase é a única regra? Quão longe está o estupro de quem aprendeu desde cedo a tratar pessoas como objetos e relacionamentos amorosos como momentos? Quão longe está o estupro de uma pessoa que não vê o sexo e a própria vida das pessoas como elementos sagrados? O que é o relacionamento amoroso pregado pelo secularismo senão uma associação temporária entre pessoas que querem se tratar mutuamente como objetos? Que tipo de defesa contra instintos sexuais perversos pode ter uma pessoa que despreza o casamento, a família, o amor e os limites?
O fato bruto e inescapável é que se nada disso é sagrado, o assédio e o estupro nada profanam. Não se pode profanar o que não é sagrado. O que se chama por aí de cultura do estupro na verdade é a cultura da permissividade. Trocamos a sacralidade do sexo, e de tudo o mais que com ele se relaciona, pela sacralidade do prazer próprio. “Faça aquilo que te faz feliz”. O secularista não pensa estar dando o aval, com isso, para que os mais permissivos se tornem estupradores. Julgam que quem já subiu dezenove degraus não subirá vinte. Eu não possuo essa fé.