Considerações sobre Ellen White, Inspiração e Bíblia

No meu último texto (intitulado “Catorze fatos que você precisa saber antes de ter qualquer opinião sobre Ellen White”), eu trabalhei catorze grandes fatos fundamentais para discutir qualquer coisa a respeito de Ellen White. Para quem não leu o texto, os fatos foram os seguintes:

Fato 1: As doutrinas fundamentais da IASD não vem de Ellen White

Fato 2: Ellen White defendia a Sola Scriptura

Fato 3: Ellen White não era inspirada verbalmente

Fato 4: Ellen White não era autoridade em história, interpretação bíblica, etc.

Fato 5: Ellen White fazia muito uso estilístico da Bíblia

Fato 6: Ellen White esperava bom senso dos leitores

Fato 7: Ellen White fez uso extensivo de outros autores

Fato 8: Todos esses fatos foram tratados na Conferência Bíblica de 1919

Fato 9: A liderança da IASD começou a acordar nas décadas de 70 e 80

Fato 10: Há imprecisões nos escritos de Ellen White sobre saúde

Fato 11: Aplicações bíblicas e detalhes marginais não são doutrina nova

Fato 12: A IASD não é tão linear quanto muitos pensam

Fato 13: Crer em Ellen White não é um fim em si mesmo, mas um meio para estimular um fim: crer na (e praticar a) Bíblia

Fato 14: Um extremo muitas vezes leva à outro

Apesar de serem fundamentais para quem deseja ter qualquer opinião sobre Ellen White (seja ela boa ou ruim), esses fatos são desconhecidos para muita gente. Provavelmente, para a maioria esmagadora das pessoas, incluindo adventistas leigos. É por essa razão que há tantos fanáticos por Ellen White de um lado e críticos desonestos (ou ignorantes) do outro, repetindo ambos uma série de besteiras e mentiras. O desconhecimento geral de tais fatos se explica por uma série de motivos que irei abordar em um segundo momento desse artigo. Alerto: esse artigo também será grande!

Nesse primeiro momento do texto, o que eu gostaria de comentar é sobre uma pergunta que certamente muitos leitores se fizeram ao terminar a leitura dos catorze fatos: “Se Ellen White não era verbalmente inspirada, nem infalível em história, ciência e cronologia, nem predominantemente exegeta em seus escritos, nem gerou nenhuma doutrina nova, então para quê serviu a sua inspiração?”. Um leitor mais crítico complementaria: “Esse tipo de ‘inspiração’ é moleza. A pessoa comete vários erros e ainda é inspirada”. Vou começar trabalhando nessa questão e a partir daí, vou puxando outros ganchos.

1. A função da inspiração divina 

Existe aqui uma compreensão errada sobre a função da inspiração. Para esclarecer isso, precisamos primeiro entender que a inspiração divina (bem como revelações por meio de sonhos e visões) teve dois propósitos distintos ao longo da história: (1) criar um registro escrito que servisse como padrão geral e supremo de conduta e conhecimento espiritual; (2) comunicar questões menores e mais específicas.

O primeiro propósito foi cumprido por meio da Bíblia. Deus inspirou homens para escreverem livros e textos sobre verdades gerais. Não necessariamente tudo o que você esses homens que escreveram ou disseram durante toda a vida foi inspirado. Mas Deus preservou, através de outros homens, os escritos inspirados e os mais relevantes; tornou-os conhecidos e impactantes o suficiente para serem vistos como inspirados (por líderes e leigos); e cuidou para que a ideia de um compêndio fechado desses escritos se disseminasse. A despeito de disputas sobre quais livros deveriam compor tal compêndio tenham existido, a maioria dos livros mais relevantes do AT foram aceitos quase que unanimemente pelos judeus (e, por conseguinte, pelos cristãos) e a maioria dos livros mais relevantes do NT foram aceitos quase que unanimemente pelos cristãos. Assim, a mensagem básica conseguiu se firmar.

A postura de ver a Bíblia como norma máxima e autoridade final foi manifesta por Jesus e seus apóstolos de modo claro e condizente com a própria postura dos profetas dessa Bíblia, os quais citavam os escritos um do outro como parte da Palavra de Deus. E assim, cativos a esse padrão, estabeleceram a Sola Scriptura para a Igreja (muito antes de Lutero, Calvino e companhia).

O segundo propósito foi cumprido por Deus a partir de profetas que não se tornaram canônicos. E não se tornaram porque sua obra não consistia em revelar novas doutrinas ou questões espirituais básicas. Sua obra consistia em guiar, exortar e disciplinar pessoas e grupos específicos; aplicar os princípios gerais da Bíblia nas questões de sua época; instigar o retorno às Escrituras; enfatizar verdades gerais esquecidas; etc.

Note que tais profetas já existiam mesmo quando os cânones do AT e do NT não estavam formados. E talvez fosse difícil para a época diferenciar tais profetas daqueles que se tornariam canônicos depois. Provavelmente, o tempo seria determinante para firmar a diferença, já que através tempo Deus operaria nesse sentido. Em todo o caso, com o fechamento do cânone, ficaria claro que qualquer pessoa com dom de profecia não seria usada por Deus para estabelecer verdades gerais, mas para lidar com questões menores, mais específicas e submetidas à luz da Bíblia, a norma geral.

Daqui podemos tirar algumas conclusões iniciais:

Primeira: a inspiração e a revelação dadas a profetas extracanônicos dificilmente contará com algo que já não esteja abordado na Bíblia ou que já não seja conhecido, quer pela lógica, quer pela ciência, história ou senso comum. As informações mais básicas e gerais da vida se encontram nessas fontes. Quem espera muita coisa nova de profetas extracanônicos não entende para que serve um profeta do gênero.

Segunda: pela própria natureza das coisas, é óbvio que as informações mais gerais são menos propensas a possuir erros de qualquer tipo. Elas lidam com o bruto, o fundamental. Não entram em detalhes. Assim, espera-se que a Bíblia seja mais correta mesmo em questões além da moralidade, espiritualidade e plano da salvação do que profetas extracanônicos. Afinal, ela apenas oferece esboços gerais. Vamos exemplificar.

Temos orientação geral da Bíblia Sagrada para cuidar do nosso corpo e mente, para evitar pecados visuais e maus pensamentos, para não fazer acepção de pessoas, para educar bem os filhos, etc. Mas não temos orientação, estudos e análises específicas sobre cigarros, drogas, filmes, novelas, séries, livros, internet, masturbação, pornografia, traumas psicológicos, conflitos no casamento, impotência sexual, açúcar, alimentos industrializados, distúrbios alimentares, câncer, diabetes, hipertensão, doação de sangue, cirurgia cardiovascular, exercícios físicos, fome na África, trabalho infantil, escravidão, tráfico de drogas, resolução de problemas sociais contemporâneos, partidos políticos, dilemas na criação dos filhos, construção de templos, investimentos financeiros pessoais, investimentos financeiros da Igreja, organização empresarial da Igreja, administração de hospitais, escolas e editoras cristãs, faculdades de teologia, etc. A Bíblia apenas oferece panoramas gerais, princípios amplos, que devem ser usados como ponto de partida para trabalhar tais especificidades.

Ora, na medida em que vamos ampliando as especificidades de cada tema, vamos também aumentando a possibilidade de imprecisões. E mais os temas vão aumentando sua relação com outras áreas do conhecimento e diminuindo sua relação com a temática espiritual/moral. Assim, a relevância de ser preciso, do ponto de vista dos objetivos da inspiração, vai se tornando menor. Ou seja, quanto mais próximo a mensagem chega do estudo histórico, científico, psicológico, filosófico especificos, menos é necessário precisão. Deus não inspirou ou deu visões com objetivo de criar compêndios sobre história, filosofia, ciência, psicologia, etc. Quanto a isso, o homem pode usar a própria razão sem carecer de inspiração e revelação.

Terceira: pelo próprio fato de Deus ter projetado a Bíblia para ser base doutrinária do seu povo e autoridade final, é natural que Ele tenha tomado maior cuidado para que os autores e os escritos selecionados para o compêndio fossem mais precisos. Isso não quer dizer que eles foram infalíveis em detalhes marginais como ordem de eventos, números exatos, etc. Por outro lado, Ele pode ter usado pessoas com boas memórias e disposto muita informação a elas, de modo a minimizar muitos erro secundários. O próprio contexto, aliás, ajuda nisso. Muitos escritores falaram do que testemunharam pessoalmente. Outros tinham acesso à testemunhas oculares e/ou documentos oficiais e confiáveis.

Em todo o caso, as informações primárias, isto é, as que possuem relação íntima com o plano da salvação, estas foram, pela inspiração, totalmente protegidas de erros. E aqui visualizamos bem o objetivo básico da inspiração, tanto em profetas extracanônicos, quanto nos autores bíblicos: preservar a verdade espiritual de erros e, por conseguinte, comunicá-la aos homens com perfeição. Isso, evidentemente, não carece de precisão absoluta em todas as áreas do conhecimento. O âmago espiritual pode ser repassado com perfeição mesmo quando acompanhado de imprecisões e erros secundários nos campos da história, ciência, psicologia, geografia, literatura, arqueologia, cronologia, ordem dos eventos, etc.

Quarta: quanto mais específica a mensagem se torna, mais há chance da utilização de exageros na linguagem, seja por método, estilo, estratégia do profeta ou mesmo “imprecisão”. Lembremos: a mente é inspirada, mas as palavras são do profeta, são humanas. Quando o conteúdo é mais geral, é mais difícil exagerar. “Não assassinar”, “não furtar”, “não adulterar” são mandamentos muitas vezes descritos com rigidez. E não vemos exagero nisso. É o que se espera. Porém, nos chocamos quando linguagem igualmente forte é usada para questões como “cuidar da saúde” e “vestir-se decentemente”. São exageros linguísticos. E eles não necessariamente são inspirados.

Note: eu disse “não necessariamente”. Isso quer dizer que em alguns casos esses exageros podem ser fruto de inspiração também. Mas sabendo que a inspiração não é verbal e que o profeta usa suas palavras, devemos nos concentrar mais na essência do conteúdo (e analisá-lo dentro de seus contextos, usando bom senso) do que nos concentrar na forma, na força das palavras usadas, sem levar em conta que podem ser exageros linguísticos do profeta.

Ainda que alguns exageros sejam inspirados, nossa postura não deve ser muito diferente. É comum nos esquecermos que profetas também usam figuras de linguagem. E não há razão para crer que Deus não poderia inspirar algumas, a fim de chocar e gerar reflexão.

O próprio Jesus, por inspiração do Espírito Santo ou não, fazia muito uso de exageros lingüísticos, com o intuito de chocar. Certa feita, ele disse que era melhor cortar um membro do seu corpo que te faz pecar e entrar sem ele no céu do que não cortar e entrar com ele no inferno (Mt 5:29-30 e 18:8-9; Mc 9:43-48). Ele também disse para uma mulher que lhe pediu a cura para sua filha que não era bom tirar o pão dos filhos e dar aos cachorrinhos. Ou seja, a chamou de cachorrinha (Mt 15:21-28; Mc 7:24-30). Em outra ocasião, disse que quem não aborrecer pai, mãe e filhos, não pode segui-lo, e que ele veio trazer discórdia entre familiares (Mt 10:34-39; Lc 14:26-27). Em outra, que devemos dar a outra face quando levamos um tapa, andar segunda milha quando nos obrigam a andar uma e dar não só a túnica a quem te assalta, mas também a capa (Mt 5:39-41; Lc 6:29-30). Ele disse ao jovem para vender tudo o que tinha, e que era mais fácil um camelo passar por uma agulha do que um rico se salvar (Mt 19:16-24; Mc 10:17-25; Lc 18:18-25). Disse ainda que precisamos comer a sua carne e o seu sangue (Jo 6:51-71) e que ele podia destruir e reconstruir o templo em três dias (Jo 2:18-22).

Paulo também sabia usar o recurso. Aos Gálatas ele expressar que queria que fossem castrados os que incitavam aquela igreja à rebeldia (Gl 5:12). João, por sua vez, diz que se tudo o que Jesus fez na terra fosse escrito, não caberia nem no mundo inteiro os livros que teriam de ser escritos (Jo 21:24-25). Já no Salmo 137:9, lemos que é feliz quem atira contra a pedra o rosto dos filhos da Babilônia. Os salmos 12, 35, 58, 59, 69, 70, 83, 109 e 140 também possuem palavras e desejos fortes contra os inimigos.

Obviamente, todas essas passagens são exemplos de exageros lingüísticos, hipérboles, enfim, figuras de linguagem. Seria trágico se fôssemos levados a focar mais na forma da mensagem do que no âmago do conteúdo. Acabaríamos interpretando a Bíblia de modo ridículo. Então, por que razão Ellen White seria diferente?

1.1. O medo do relativismo e do liberalismo teológico

Aqui talvez surja um medo no leitor: o de que essa visão de inspiração seja liberal demais e acabe por criar a postura de relativizar tudo. O receio é legítimo. E como comentei em um dos catorze fatos, foi o que fez boa parte dos protestantes abraçarem forte o verbalismo no início do século XX, incluindo grande parte dos adventistas. Ou seja, o mesmo medo une fanáticos e críticos por Ellen White contra a inspiração conceitual. Mas esse medo não precisa existir. Explico.

Inspiração conceitual não é sinônimo de liberalismo. O liberalismo se caracteriza, em sua metodologia, por um grande pilar: o uso de simbolização e relativização contrárias ao contexto. O liberal mata todo e qualquer contexto que vê pela frente, a fim de chegar onde quer. Daí a negação de milagres e a simbolização dos primeiros capítulos de Gênesis. Liberal não faz exegese, aliás. Faz eisegese. Imputa ao texto o que não existe, o que o contexto não permite. Sua hermenêutica é baseada na descontextualização sistemática. Como resultado, o âmago dos conteúdos é negado. O óbvio ululante é jogado fora.

Não é só isso. O liberal tem por objetivo desconstruir na Bíblia em prol do consenso de naturalistas, evolucionistas, descrentes, relativistas morais, etc. Ele atropela contextos para isso. Logo, seu objetivo é mais se amoldar a este século do que crer no que a Bíblia diz em seus contextos.Ora, seria um espantalho dizer que quem crê na inspiração conceitual tem, necessariamente, essa metodologia e esse objetivo. É perfeitamente possível ser conceitualista e não atropelar contextos, nem objetivar se amoldar ao mundo.

Contexto aqui é a palavra-chave. Sem atropelar contextos, não há como relativizar a Palavra de Deus. Então, a preocupação não deve ser com o conceitualismo, mas com a desconsideração dos contextos.

Eu sugeriria as seguintes perguntas ao se colocar para interpretar um texto bíblico:

(1) Qual é o assunto central da passagem?

(2) Qual o assunto central das passagens anterior e posterior?

(3) Qual o assunto central do livro/carta?

(4) Qual o estilo da obra (histórico, profético, apocalíptico, instrutor, etc.)?

(5) A quem foi escrita a obra? E em que tempo e lugar viviam os destinatários?

(6) Quem escreveu a obra? E em que tempo e lugar vivia o autor?

(7) Qual era o contexto teológico/religioso do autor e de seus destinatários?

(8) Como era a cultura e a conjuntura histórica em que estavam inseridos o autor e os destinatários?

(9) Como a passagem se relaciona com o restante da Bíblia e com o restante dos escritos do próprio autor?

(10) Como a passagem se relaciona com a moral, a lógica e o bom senso?

(11) Como a passagem se relaciona com figuras de linguagem (hipérbole, ironia, sarcasmo, etc.)?

(12) Há na passagem algo que pode ser considerado exagero linguístico?

(13) É possível na passagem separar conteúdo de forma sem ferir o âmago do conteúdo?

(14) A passagem fala sobre uma norma geral e imutável ou sobre um conselho mais específico e sujeito a mudanças pelas circunstâncias?

(15) Os detalhes históricos, geográficos, científicos e cronológicos da passagem fazem diferença no âmago da questão ou são secudários, marginais?

(16) O autor pretendeu ser literal ou simbólico?

(17) Quais as consequências de se interpretar literalmente ou simbolicamente essa passagem?

(18) A interpretação literal ou a simbólica da passagem se coadunam com o ensino geral bíblico, a moral e a lógica?

(19) Sua interpretação foi extraída do próprio texto e de acordo com os contextos? Ou foi imputada e vai contra os contextos?

(20) Qual o seu verdadeiro objetivo nessa interpretação? Aceitar a verdade ou desconstruir a Bíblia?

Se formos ao texto bíblico com essas perguntas, de modo honesto e preparado, não há como relativizar a Palavra de Deus. E o mesmo pode ser dito em relação aos escritos de Ellen White.

Quanto aos escritos de Ellen White, um adendo: uma vez que a maior parte do que ela escreveu é apenas repetição e aplicação de princípios bíblicos e histórias da Bíblia, relativizá-los quase sempre será relativizar a Escritura. Por exemplo, se ela diz que Cristo é nossa salvação, e eu relativizo isso, estou relativizando a Bíblia, pois a Bíblia diz isso antes dela. Ou se ela diz que o fumo faz mal e deve ser evitado, e eu relativizo isso, estou relativizando uma aplicação bíblica (a de que devemos cuidar do corpo), estudos científicos bastante abalizados sobre os malefícios do fumo e a própria experiência cotidiana, já que os malefícios do fumo são muito visíveis a qualquer um. Ora, se relativizo a Bíblia e aplicações bíblicas, meu problema não é rejeitar Ellen White, é rejeitar a Bíblia.

1.2. Trabalhando com o âmago das mensagens

Podemos tomar questões mais polêmicas como exemplo para essa questão do medo do relativismo/liberalismo. Ellen White diz que tomar café é “pecado” e “condescendência pecaminosa”. Por mais que alguém possa relativizar isso, dizendo que essas palavras foram um exagero linguístico; que pecado foi uma palavra forte demais; que café não pode ser comparado à bebida, cigarro, drogas e até mesmo à refrigerantes e açucar em seus malefícios; que a intenção de White não era ser inflexível, mas impactar; que White pode ter exagerado; etc., há uma essência aqui. As palavras podem ter sido exageradas, mas o âmago é que café traz malefícios à saúde e o cristão deve cuidar de sua saúde. Logo, reduzir o consumo e, se possível, tirar o item de seu cardápio é um bom conselho e uma boa forma de aplicar o principio bíblico. O que é interessante aqui é que, sem dúvida, se White usasse essas palavras suaves para desestimular o consumo de café, não haveria qualquer polêmica quanto a esse ponto para todos os protestantes. Por outro lado, tais palavras mais suaves talvez não fossem capazes de gerar uma cultura adventista distante do café.

Quantas vezes não ouvimos médicos e nutricionistas dizerem que dormir tarde, ser sedentário, comer fritura e açúcar fazem mal? E quantas vezes isso não tem força nenhuma para nos impulsionar a parar? Agora, quando alguém usa a frase “isso é pecado”, o coração acelera. Consideramos mais seguir o que é “lei” ao que é apenas “bom”. “saudável”, “recomendável”, “apropriado”, “ideal”. Isso provavelmente explica muitos dos exageros linguísticos de White, quer inspirados, quer não, quer certos ou errados (note que não estou tomando partido nenhum, apenas levando à reflexão).

Tome, por exemplo, o conselho para mudar a alimentação das crianças. Em certa ocasião, ela disse:

“Nem a metade das mães sabem cozinhar ou o que pôr diante de seus filhos. Colocam perante seus filhinhos nervosos essas indigestas substâncias […], de modo que [o estômago delas] não reconhece a comida saudável. Os pequeninos chegam à mesa, e não podem comer isto, ou aquilo. Tomam o controle e comem justamente o que querem, seja ou não para benefício seu. 

Eu recomendaria deixá-los ficar sem comida pelo menos por três dias, até que sintam fome bastante para tomar o alimento bom e saudável. Arriscaria deixá-los passar fome. Nunca pus em minha mesa comidas de que não permitisse que meus filhos participassem. Punha diante deles só aquilo de que eu própria comia. As crianças comiam isto, e nunca pensavam em pedir aquilo que não se encontrava na mesa. Não devemos condescender com o apetite das crianças, apresentando-lhes essas comidas indigestas” (Manuscrito 3, 1888).

Parece bem radical, né? Mas não precisamos entender a forma do conselho como inspirada ou mesmo absolutamente literal. Pode ser só um exagero linguístico, como vários que Jesus usou. Mas há um âmago aqui: a criança é moldável. Se forçarmos bons hábitos, ela muda. Ademais, criança com fome não vai ficar três dias sem comer. Sendo a criança muito pirracenta e mal acostumada, eu diria que com oito horinhas com fome ela já estaria aceitando frutas, vegetais, suco e água.

Agora, olhemos para o conselho sem as palavras fortes. O âmago do que Ellen White diz é muito correto, sobretudo se aplicarmos aos dias de hoje. Os pais não só deixaram de se preocupar com a alimentação dos filhos, dando-lhes tudo quanto não presta, como também deixaram de se impor, dando-lhes tudo o que querem. Os pais de hoje não sabem dizer “não”. Resultado: as crianças crescem mimadas, com péssimos hábitos alimentares e, muitas vezes, com doenças (obesidade, hipertensão, diabetes, etc.). Viram adultos sem saúde e ensinam isso aos seus filhos, num ciclo vicioso. Nos EUA, terra de Ellen White, isso é ainda mais pungente hoje. É quase norma. O conselho dela, portanto, é muito bom e relevante, à despeito das palavras fortes.

Olhar o âmago evita caricaturas. Se White parece inflexível nesse conselho sobre a criação de crianças, ela diz em outra ocasião que não impunha nenhum regime padrão em sua casa (já eram todos adultos) e não queria ser consciência para ninguém:

“Como o alimento mais simples, preparado pela mais simples maneira. Por meses meu principal artigo de alimentação tem sido aletria e tomates em conserva, cozidos juntamente. Como isto com torradas. E então como também frutas cozidas, e às vezes torta de limão. Milho seco, cozido com leite ou um pouco de nata, é outro prato que uso às vezes. Mas os outros membros de minha família não comem as mesmas coisas que eu. Não me ponho como critério para eles. Deixo cada um seguir suas idéias quanto ao que é melhor para si. Não obrigo a consciência de outros pela minha. Uma pessoa não pode ser critério para outros em questão de comida. Impossível é fazer uma regra para ser seguida por todos. Há em minha família pessoas muito amantes de feijão, ao passo que, para mim, ele é veneno. Manteiga nunca é posta à minha mesa, mas há membros da família que preferem usar um pouco desse artigo fora da mesa; estão na liberdade de fazê-lo. Nossa mesa é posta duas vezes por dia, mas se há pessoas que desejem alguma coisa à noitinha, não há nenhuma regra que os proíba de obtê-la. Ninguém se queixa nem sai da mesa insatisfeito. Uma variedade de comida simples, saudável e apetitosa é sempre proporcionada” (Carta 127, 1904). 

O mesmo padrão é seguido por White em outros tópicos. Por exemplo, a uma família que lutava contra os vícios sensuais dos filhos, ela aconselha, entre outras coisas, uma alimentação mais baseada em frutas e cereais, em vez de alimentos cárneos, tortas, bolos e até ovos (Testemunhos para a Igreja vol. 2, p. 400). Já a um médico que entendeu esse conselho como regra geral e estava adoecendo pela falta de comida, ela instigou que ele deveria comer ovos e leite; que ovos tem propriedades nutritivas; que ainda não é a época em que esses alimentos se tornarão muito prejudiciais (devido a animais maltratados); e que os excessos devem ser evitado na busca pela Reforma da Saúde (Conselhos Sobre o Regime Alimentar, p. 203-207). Aliás, todo o capítulo 11 de Conselhos Sobre o Regime Alimentar fala contra excessos e fanatismo nessa área (págs. 196-217).

Quanto à carne, White disse muitas vezes que uma alimentação cárnea estimulava os desejos pecaminosos. Também muitas vezes relacionou o hábito à intemperança e até à idolatria do estômago. Pesado, né? No entanto, ela também disse:

“Quando não posso obter alimento de que necessito, tenho às vezes comido um pouco de carne; mas estou mais e mais apreensiva com isto” (White e White, Christian Temperance, 1890, p. 118).

“Sinto-me feliz em garantir-lhe que, como denominação, somos, no mais amplo sentido da palavra, abstêmios totais no que diz respeito ao uso de bebidas alcoólicas, vinho, cerveja, sidra [fermentada], fumo e outros narcóticos. […] Todos são vegetarianos, muitos abstendo-se do consumo de alimento cárneo, enquanto outros o utilizam apenas num grau bastante moderado” (Carta a um não adventista, em 1894, que queria saber sobre a reforma de saúde; op. Cit. Herbert E. Douglass, Mensageira do Senhor, p. 316).

Não estabelecemos regra alguma para ser seguida no regime alimentar, mas dizemos que nos países onde são comuns as frutas, cereais e nozes, os alimentos cárneos não constituem alimentação própria para o povo de Deus. […] Se a alimentação de carne foi saudável algum dia, é perigosa agora [por causa do estado dos animais]. Constitui em grande parte a causa dos cânceres, tumores e moléstias dos pulmões. Não nos compete fazer do uso da alimentação cárnea uma prova de comunhão; devemos, porém, considerar a influência que crentes professos, que fazem uso de carne, têm sobre outras pessoas” (Testemunhos Selectos, vol. 3, 1909, p. 255; Conselhos sobre o Regime Alimentar, p. 96).

“Nunca julguei ser meu dever dizer que ninguém deveria provar carne, sob quaisquer circunstâncias. Dizer isto, quando o povo tem sido educado a viver de comer carne em tão grande medida, seria levar ao extremo a questão. Nunca senti ser dever meu fazer asserções arrasadoras. O que tenho dito, disse-o sob uma intuição do dever, mas tenho sido cautelosa em minhas afirmações, porque não queria dar ocasião para qualquer pessoa ser consciência para outro” (Carta 76, 1895; CRA, p. 463).

“Entre o povo em geral [da Austrália], a carne é usada largamente, por todas as classes. É o artigo de alimentação mais barato; e mesmo onde a pobreza impera encontra-se em geral a carne sobre a mesa. Por isso, tanto maior a necessidade de usar de prudência ao lidar com a questão do comer carne. Com relação a este assunto não deve haver movimentos precipitados. Devemos considerar a situação do povo, e o poder de hábitos e práticas de toda uma vida, e ser cautelosos em não impor aos outros nossas idéias, como se esta questão fosse um teste, e os que comem carne fossem os maiores pecadores. Todos devem ser esclarecidos neste assunto, mas seja ele apresentado cuidadosamente. Hábitos que foram por toda a vida ensinados como sendo corretos, não devem ser mudados por medidas rudes ou precipitadas” (Carta 102, 1896; CRA, p. 464).

“O levar alguma coisa a extremos é questão que deve ser temida. Resulta sempre em ser eu compelida a falar para impedir que o assunto seja mal compreendido, para que o mundo não tenha motivo de julgar que os adventistas do sétimo dia sejam uma corporação de extremistas. Quando procuramos arrebatar pessoas da fogueira por um lado, as mesmas palavras que então têm que ser proferidas para corrigir males, são usadas para justificar a condescendência, por outro lado. Queira o Senhor guardar-nos de testes e extremos humanos.

Que ninguém avance pontos de vista extremos acerca do que devemos comer e do que devemos beber. O Senhor proporcionou luz. Aceite nosso povo essa luz e ande nela. Precisa haver grande aumento do conhecimento de Deus e de Jesus Cristo. Este conhecimento é vida eterna. O aumento da piedade, da boa, humilde religião espiritual, colocaria nosso povo em posição na qual pudesse aprender do grande Mestre” (CRA, p. 210).

“Não devemos fazer da carne um teste [de fé]. Mas podemos e devemos considerar a influência que os [nossos] crentes professos que usam carne têm sobre outras igrejas” (Pacific Union Recorder, 9 de Outubro de 1902).

Por mais que as palavras pudessem ser fortes e até exageradas às vezes, a intenção era mais instigar que os bons hábitos fossem assimilados e que as pessoas saíssem da letargia. Tome, por exemplo, as mensagens bíblicas dizendo que o reino de Deus, o dia do Senhor e o fim de todas as coisas estão próximos (Is 13:6-9; Jr 46:1-10; Ez 30:3; Jl 1:15, 2:1 e 3:14; Ob 1:15; Sf 1:7-14; Zc 14:1; Mt 3:2 e 4:17; Mc 1:15; I Pd 4:7; I Jo 2:18; Ap 1:3, 3:11 e 22:20). Deus sabia que humanamente falando, o tempo não estava próximo. Mas a advertência servia para tirar as pessoas da letargia. Ademais, se por um lado já se passaram milênios desde que os profetas do AT, Jesus e seus apóstolos proclamaram essas verdades, por outro lado, ninguém está vivo desde lá. No fim das contas, Jesus e o juízo final não terão demorado mais de 120 a 130 anos (o tempo máximo de vida a que as pessoas têm chegado) para cada pessoa que viveu. Então, a linguagem, mesmo que exagerada, possui um âmago verdadeiro e possui um papel importante nos planos de Deus.

O exagero lingüístico pode englobar também o que podemos chamar de “radicalismo próprio para um contexto”. Isso acontece até na Bíblia. Por exemplo, no AT, o ato de comer alimentos sacrificados aos ídolos era entendido como relacionado intimamente à prostrar-se diante dos ídolos e adorá-los, bem como se confraternizar com os demais idólatras em festas pagãs (Êx 34:15-17; Nm 25:1-2 e 31:16). Provavelmente, Daniel e seus amigos não queriam comer das iguarias do rei da Babilônia não só para evitar alimentos imundos proibidos na Torá, mas também para evitar alimentos limpos sacrificados aos ídolos (Dn 1:8). No NT, vemos ainda reflexos desse hábito radical. No Concílio de Jerusalém, os apóstolos escrevem que os gentios se abstenham das coisas sacrificadas aos ídolos (At 15:20 e 29; At 21:25).

O bom senso, no entanto, nos faz perceber que o problema não está na comida, mas na idolatria e na reunião com idólatras. E o apóstolo Paulo, inspirado pelo Espírito Santo, vai explicar exatamente isso. Em I Coríntios 8:1-6, ele concorda com os irmãos que argumentavam que o ídolo não era nada e que, portanto, se um crente verdadeiro só queria comer, não adorar o ídolo, não estava em pecado. Entretanto, ele vai explicar nos versos 7-13 que nem todos tem esse conhecimento e força moral. Assim, um crente fraco poderia ver um forte comendo coisa sacrificada aos ídolos e se sentir tentado a se voltar para os ídolos.

No capítulo 10, ele torna ao assunto, diferenciando o ato de participar de um evento de culto aos ídolos – ainda que só para comer (vs. 18-22) e o ato de comprar algo no mercado ou comer algo da casa de alguém que já estava sacrificado antes (vs. 25-30). O primeiro caso se afigura idolatria, pois há ali uma mesa para demônios e um culto em curso. Já o segundo caso não é idolatria. Mas no segundo caso, o crente forte deveria se abster no caso de causas escândalo para mais fracos (vs. 31-33).

Em suma, os profetas que protestavam contra o ato de comer comida sacrificada apenas estavam usando um “radicalismo próprio para o contexto”. Se o ato frequentemente levava à idolatria, era melhor condenar o ato por inteiro e assim evitar problemas. Uma maior consciência/força moral tornou possível algumas distinções séculos depois.

Muitas vezes um contexto exigirá palavras mais fortes e certo radicalismo por parte do profeta. Ainda que em alguns casos, tais posturas possam ser consideradas exagero, imprecisão e generalização quanto à forma, isso não implica que o âmago da mensagem não é inspirado.

Tenho um primo que antes de ser cristão foi muito promíscuo e infiel. Depois que se converteu, passou a tomar cuidados, como não ir à praia. Em sua visão, cristão não deve ir à praia, pois se sentirá tentado por conta de mulheres em trejes de banho. Ora, ainda que ele esteja errado nesse pensamento (e eu acho que está), há um âmago correto em sua mensagem: um cristão não deve ir a um lugar ou fazer algo que o fará se sentir tentado. A conclusão generalista de meu primo pode não estar certa, mas a base usada está corretíssima. E não é nenhum absurdo considerar que Deus poderia inspirá-lo a emitir essa opinião, a fim de que um público que se sente tentado nas praias seguisse seu conselho e deixasse de ir.

Generalizações e certo radicalismo fazem parte da linguagem humana. E Ellen White também fazia uso delas. Por exemplo, ela chega a dizer que café, por ser estimulante, leva a um temperamento mais nervoso e alteram até as áreas moral e espiritual de uma pessoa. Em algumas dessas descrições, ela dá sequencia falando de pessoas que não desenvolvem interesse pelas coisas espirituais e de quem se reúne em cafés para falar besteiras.

Ora, são claramente generalizações. Há pessoas que bebem muito café e tem vida moral e espiritual elevadas e ainda muito superiores a quem não toma. Há quem bebe café e chá e é super calmo. Há quem bebe café e não se reúne em lugar nenhum para falar besteiras. Há quem bebe café e não é viciado. Isso acontece porque as pessoas são diferentes no caráter, na vida devocional, na criação, no tipo de organismo, no restante da alimentação e dos hábitos, na quatidade de café que toma, etc. Mas a despeito das generalizações, o âmago está correto. O café é estimulante, tem alto potencial de viciar e afetam nervos e organismo, o que, em muitas pessoas, acaba afetando o descanso, o sono, o metabolismo e o humor. Quando esses quatro aspectos são afetados, alguém pode sim ter mais dificuldade para ser mais calmo, mais concentrado, mais disposto, mais paciente, ter a mente mais limpa para aprender e mudar, etc.

Tais efeitos podem não ocorrer em todos, mas não são uma invenção. O que White fez  foi apenas enfatizar os piores efeitos da bebida de modo generalista. Em um contexto de muitos viciados em café, isso pode ter sido uma arma para tornar mais eficaz a mensagem de desestímulo à bebida. Concorde com seu método ou não, se isolarmos as palavras pesadas e as generalizações, o que resta é o que muitos médicos, nutricionistas e o próprio senso comum diria:

“O hábito de beber chá e café é maior mal do que muitas vezes se suspeita. Muitos que se habituaram ao uso de bebidas estimulantes, sofrem de dor de cabeça e prostração nervosa, e perdem muito tempo em conseqüência de enfermidades. Imaginam que não podem viver sem o estímulo, e ignoram seus efeitos sobre a saúde. O que as torna mais perigosas é que seus maus efeitos são freqüentemente atribuídos a outras causas”. (Christian Temperance and Bible Hygiene, 34-36 (1890); CRA, 423).

“O chá atua como estimulante, e, até certo grau, produz intoxicação. A ação do café, e de muitas outras bebidas populares, é idêntica. O primeiro efeito é estimulante. São excitados os nervos do estômago; estes comunicam irritação ao cérebro, o qual, por sua vez, desperta para transmitir aumento de atividade ao coração, e uma fugaz energia a todo o organismo. Esquece-se a fadiga; parece aumentar a força. Desperta o intelecto, torna-se mais viva a imaginação. Em virtude desses resultados, muitos julgam que seu chá ou café lhes faz grande benefício. Mas é um engano. Chá e café não nutrem o organismo. Seu efeito produz-se antes de haver tempo para ser digerido ou assimilado, e o que parece força não passa de excitação nervosa. Uma vez dissipada a influência do estimulante, abate-se a força não natural, sendo o resultado um grau correspondente de languidez e fraqueza. 

O uso continuado desses irritantes nervosos é seguido de dores de cabeça, insônia, palpitação, indigestão, tremores, e muitos outros males; pois eles gastam a força vital. Os nervos fatigados necessitam repouso e quietação em lugar de estimulantes e superatividade. A natureza necessita de tempo para recuperar as exaustas energias. Quando suas forças são aguilhoadas pelo uso de estimulantes, conseguir-se-á mais durante algum tempo; mas, à medida que o organismo se enfraquece mediante o uso contínuo, torna-se gradualmente mais difícil erguer as energias ao nível desejado. A exigência de estimulantes se torna cada vez mais difícil de controlar, até que a vontade é vencida, parecendo não haver poder capaz de negar a satisfação do forte apetite contrário à natureza. São reclamados estimulantes mais fortes e ainda mais fortes, até que a natureza exausta já não pode corresponder” (A Ciência do Bom Viver, 326, 327 (1905); CRA, 425). 

Qualquer um que já tenha sido viciado em café sabe que essas descrições são precisas e verdadeiras. Assim, por mais que alguém não concorde com a forma de Ellen White tratar o tema (com generalizações, palavras fortes, comparações talvez inapropriadas, etc.), o âmago é inquestionável: café traz malefícios à saúde.

Aqui a discussão sobre ela ter acertado ou errado no peso das palavras em algumas citações passa a ser irrelevante. Exagerando ou não na forma de colocar, isso não muda o âmago das mensagens e a origem delas na aplicação bíblica. Assim, o medo do relativismo por conta da crença na insíração conceitual é desnecessário quando nos achegamos à Bíblia e aos escritos de White com sobriedade e respeito aos contextos.

1.3. Reivindicações modestas

Essas considerações nos levam de volta à questão da inspiração. Seu propósito não é criar compendios com palavras e frases perfeitas, com precisão impecável em detalhes secundários, com atenção minuciosa aos meandros da história, geografia, medicina, ciência, etc. A inspiração tem o propósito de enfatizar verdades espirituais gerais e aplicações dessas verdades. Não requer originalidade, nem infalibilidade absoluta (isto é, incluindo a forma e os detalhes marginais), nem a perfeição moral do profeta, nem que o profeta seja inspirado em tudo o que diz durante a vida, nem que as limitações de escrita do profeta sejam anuladas.

No caso da relação entre Ellen White e a Bíblia, isso fica mais claro. A Bíblia foi inspirada para ser Bíblia. Ellen White não. São propósitos distintos. Isso implica que podemos e devemos julgar White pela Bíblia. Na verdade, ela queria isso. Seu objetivo era instigar as pessoas a irem procurar fundamento do que ela falou na Bíblia. De igual maneira, creio que seus escritos servem para nos instigar a pesquisar na ciência os benefícios de seguir o âmago dos seus conselhos de saúde. Se nessa busca, algumas explicações dela não fizerem sentido, isso é secundário. Como eu mencionei nas catorze razões, se eu digo que fumar faz mal e devemos parar, mesmo que eu tenha cometido erros a respeito das consequências do ato ou erros na explicação do que ocorre quando fumamos, meu ponto ainda está certo. Uma pesquisa científica apenas confirmará o âmago de meu conselho.

O mesmo serve para visões. Posso ter visto algo e não ter descrito da melhor maneira possível. Minhas comparações podem ser toscas e revelarem ideias imprecisas minhas sobre outros campos do saber. Mas isso não muda o que eu vi. A revelação é o âmago do conteúdo, não necessariamente a forma que eu descrevo. Na Bíblia, por exemplo, o autor do livro de Josué afirma que “o sol se deteve e a lua parou” (Js 10:12-13). Não há, nessa passagem, intenção cientifica. O autor apenas está narrando o fato de acordo com o que os olhos humanos veem. Se foi uma descrição ruim, ou mesmo se o autor pensava que sol e lua se moviam, isso é irrelevante para o âmago do texto. O âmago do texto não é o detalhe da descrição, mas o fato de que o sol desapareceu do horizonte de visão do homem horas depois do costumeiro. Inspiração não objetiva criar linguagem perfeita ou científica.

Ora, se nós levarmos em conta que Ellen White tinha pouca instrução formal, essas diferenciações se tornam ainda mais importante. Ela não sabia grego, hebraico e aramaico. Ela não tinha uma ótima gramática. Ela não tinha curso superior. Ela sequer terminara o primário. Sem dúvida, sabia muito menos que os discípulos de Jesus, que eram bem instruídos, como a maioria dos judeus da época. Sem dúvida sabia muito menos que Paulo, grande erudito. Por isso usava tanto outros autores. Assim, esperar precisão absoluta e originalidade dela é achar que inspiração transforma pessoas no próprio Espírito Santo. É exigir demais.

Aqui eu me toco que a visão de inspiração de fanáticos e críticos é bastante elitista. Eles entendem inspiração como privilegio de profetas/videntes. Se não recebe visões constantemente, não pode produzir nada inspirado.

É minha opinião de que isso é falso. A Bíblia fala do Espírito descendo até sobre Saul, que não era propriamente um profeta. Isso indica que Deus usa qualquer pessoa que quiser, quando e como quiser, seja profeta ou não. Ora, se isso é verdade com Saul e até com a mula de Balaão, que dirá com crentes cheios do Espirito Santo, no contexto pós-cruz? O Espírito habita em nós. Será que ao longo de nossa vida cristã nada do que dissemos não foi inspirado conceitualmente pelo Espírito, a fim de alcançar alguém? Nenhum insigt? Nenhuma mensagem? Só profeta fala inspirado?

Penso que homens como Lewis, Chesterton, Graham e tantos outros certamente já tiveram imsights advindos do Espírito Santo. Sem dúvida já disseram ou escreveram coisas que o próprio Deus os influenciou a falar, impressionando-lhes a mente. Mesmo considerado que isso deve ter ocorrido algumas vezes na vida desses homens, o fato não implica que tudo o que eles disseram foi inspirado ou que eles possuíam o dom da profecia. E até onde sabemos, nenhum desses homens teve visões.

A intenção aqui não é rebaixar White ao papel de escritora comum, nem elevar tais homens ao papel de profetas extracanônicos. É apenas enfatizar que talvez a ideia de inspiração em voga seja elitista demais para perceber que ela não requer perfeição absoluta e originalidade.

1.4. Uma obra relevante

Então, voltamos à questão do inicio desse artigo: “Se Ellen White não era verbalmente inspirada, nem infalível em história, ciência e cronologia, nem predominantemente exegeta em seus escritos, nem gerou nenhuma doutrina nova, então para quê serviu a sua inspiração?”. Ora, serviu para instigar e reforçar o apego aos principios bíblicos dentro do movimento adventista (em especial os mais esquecidos no mundo protestante em geral), ajudar na estruturação dessa igreja (organização eclesiástica, missão, áreas de atuação, etc.) e aconselhar sobre situações específicas na vida de diversas pessoas de seu tempo e no cotidiano da própria instituição.

Alguém poderá perguntar: “Mas é preciso ser inspirado por deus para isso? É preciso ser um profeta? Tal obra não pode ser conduzida por uma pessoa ‘normal’, sem o dom de profecia e a ins´piração?”. A essa pergunta eu responderia que o seguinte: a obra de Ellen White muito se assemelhou a de um pastor. Pastores não precisam ter o dom de profecia, nem uma inspiração constante e publicamente reconhecida. Mas pelo menos quatro razões fazem com que o dom de profecia e a inspiração tenham sido importantes para a obra dela:

1) ela precisou resolver problemas de pessoas específicas e questões da instituição que só poderiam ser conhecidas por ela a partir de revelação divina;

2) as revelações deram aos seus conselhos mais peso diante da igreja, de modo que as pessoas passaram a estar mais propensas a ouvir suas repreensões e instruções bíblicas;

3) a IASD, desde seu início, correu o risco de concretizar graves erros doutrinários. O antitrinitarianismo, o arianismo e a justificação pela Lei são três dos principais exemplos. Ellen White teve papel importante no combate a esses problemas, levando à congregação aos verdadeiros ensinos bíblicos. Assim, era muito importante que a sua mensagem fosse levada à sério.

4) os principios bíblicos mais esquecidos pela maioria dos protestantes não são tão explícitos e óbvios quanto os mais lembrados. Requerem maior atenção, estudo e sensibilidade. Portanto, as revelações e a insíração seriam úteis tanto para que a própria White se voltasse para o estudo de tais questões e as compreendesse, como para que as pessoas dessem crédito ao que ela falava a respeito.

Levando em conta que o movimento adventista precisava ser lapidado e preparado para poder divulgar as mensagens esquecidas da Bíblia, o dom de profecia e a inspiração se mostram bastante necessários para a instituição. No fim das contas, a missão de White não foi muito diferente dos profetas também extracanônicos Hulda (II Cr 34:21-28; II Rs 22:13-20); Débora (Jz 4:4-9); Natã (II Sm 7:1-17); Aías (I Rs 11:29-40 e 12:15); Semaías (II Cr 11:1-4 e 12:5-8); Ido (II Cr 13:22); Jeú (II Cr 19:1-3); Elias (I Rs 17:1); Eliseu (II Rs 9:1); João Batista (Lc 7:24-30; Mt 11:7-14 e 17:9-13; Mc 11:32); Ana (Lc 2:36-38); Ágabo (At 11:27-30 e 21:10); e as quatro filhas de Filipe (At 21:8-9). Todos esses homens e mulheres foram chamados de profetas pela Bíblia. Eles possuíam o dom da profecia e alguns deles até escreveram cartas e livros, como é o caso de Elias (II Cr 21:12); Natã (II Cr 9:29); Aías (II Cr 9:29); Ido (II Cr 9:29; 12:15; 13:22); Semaías (II Cr 12:15); e Jeú (II Cr 20:34). Mas nenhum desses tiveram seus escritos incluídos nas Escrituras Sagradas. O objetivo da inspíração deles não era criar um padrão geral como a Bíblia, com novas doutrinas e revelações completamente originais. O objetivo foi sim levar as pessoas aos princípios bíblicos, atrair o respeito das pessoas e a atenção das pessoas e trabalhar em questões específicas de suas épocas.

Esse tipo de inspiração “limitada”, sem total originalidade e precisão em linguagem e detalhes (algo que tanto fanáticos, quanto críticos exigem), é exatamente o que se espera de profetas extracanônicos. As palavras dos profetas extracanônicos que sobrevivem ao tempo nos servem como autoridade subsidiária da Bíblia. Na hierarquia da palavra escrita de Deus, a Bíblia foi posta por ele como autoridade absoluta. Todas as demais autoridades são sempre subsidiárias. Elas são autoridade porque sua mensagem advém da Bíblia (quer de principios explícitos, quer de aplicações dos princípios). Assim, não é necessário, nem correto exigir dos escritos de Ellen White (e dela própria) mais do que a sua posição de profetisa extracanônica permite. E, obviamente, não faz qualquer sentido criticar a inspiração conceitual (seja dela ou da Bíblia) por essa não fazer dos autores super humanos, com conhecimento detalhado e perfeito em todas as coisas.

2. O criticismo e o fanatismo por Ellen White: lados de um mesmo erro

Diz um ditado que os opostos se atraem. Eu não acredito nisso em relação à romances conjugais. Mas creio que isso é verdade em relação a algumas discussões filosóficas, teológicas e ideológicas. Tome como exemplo a histórica discussão entre antinomistas e legalistas no âmbito judaico-cristão. Os antinomistas crêem que a Lei foi abolida na cruz de Cristo. Os legalistas não só crêem que a Lei permanece, como dão a ela um papel tão elevado que passam a vê-la como fator de salvação e de santificação. São dois extremos em relação à Lei de Deus. Entretanto, os antinomistas vêem os legalistas como homens que seguem a Lei à risca. E os legalistas pensam o mesmo de si mesmos. Isso implica que tanto antinomistas quanto legalistas possuem essencialmente as mesmas interpretações distorcidas da Lei. A diferença é que para um grupo isso é motivo de continuar seguindo-a. Para outro grupo, isso é motivo para deixá-la. Ora, Jesus, no meio dessa briga, há dois mil anos, recusou os dois extremos. Eram dois lados de um mesmo erro: colocar a Lei no lugar errado e, assim, perder de vista a sua essência.

A meu ver, é exatamente isso o que acontece no caso da maioria dos críticos e fanáticos por Ellen White. Eles representam dois grupos extremos e opostos que compartilham de uma mesma visão errônea: colocam Ellen White onde ela não deveria estar. Eu vou desenvolver mais esse ponto.

2.1. Os críticos

Creio em todo o conjunto de doutrinas adventistas desde 2011. São oito anos crendo nas mesmas coisas básicas. De lá para cá, já tive a oportunidade de conversar e debater com muitos críticos vorazes da IASD. Em grande parte dos casos (talvez mais da metade), esses críticos citavam Ellen White no debate sem que eu tivesse feito qualquer menção a ela. E geralmente não era a citação de um texto dela sobre o assunto, mas apenas algum tipo de comentário como “vocês são idólatras de Ellen White”, “suas doutrinas vem de Ellen White”, etc. O debate podia ser sobre validade da Lei, sábado, mortalidade da alma, alimentos puros e impuros, santuário celestial ou qualquer outra coisa. Em algum momento, o crítico soltava uma dessas frases clichês. Às vezes, um ou outro, puxava um texto descontextualizado de White sobre o tema debatido (ou até sobre um tema que não estava em pauta), a fim de tentar ridicularizar a IASD e a mim. Foi esse tipo de comportamento freqüente que me levou a escrever o texto “Quando Ellen White (e não a discussão bíblica) se torna o centro das atenções dos críticos”.

Ora, em oito anos de adventismo, eu nunca me utilizei de Ellen White para defender as 28 Doutrinas Fundamentais da IASD. Nunca sequer precisei me utilizar. Elas são total e claramente baseadas na Bíblia, podendo e devendo ser defendidas pela Bíblia. Assim, sempre foi frustrante ter de debater com quem se desvia para Ellen White, em vez de focar nos argumentos bíblicos que eu exponho e explico.

A postura desse tipo de crítico é deplorável não só porque eleva Ellen White a um lugar que ela não deveria estar, mas porque, como conseqüência inevitável, acaba rejeitando ensinos bíblicos sob a desculpa de que são invenções da Sra. White. Isso é verdade quanto ao sábado e a mortalidade da alma, que são tópicos muito explícitos na Bíblia, mas também em relação ao cuidado com a saúde, por exemplo – um tópico que exige maior atenção, estudo e sensibilidade.

Esqueça todos os conselhos de Ellen White sobre saúde e se pergunte: eu tenho honrado a Deus cuidando da minha alimentação e do meu corpo? Ou podendo comer melhor e ter bons hábitos físicos, tenho preferido destruir o organismo que Deus me deu? A maneira como tenho tratado minha saúde pode ser considerado uma forma de gratidão a Deus? Eu peço a Deus por saúde, mas tenho feito minha parte para manter meu corpo saudável e evitar doenças? Será que Deus se agrada de eu manter péssimos hábitos alimentares, ser sedentário e dormir tarde sem necessidade? É o ideal de Deus que eu maltrate minha saúde? É útil para a obra de Deus que eu maltrate meu organismo? É útil e honroso a Deus que eu escolha morrer mais cedo e repleto de doenças por conta dos maus hábitos? Ou seria mais útil e honroso que eu cuidasse de minha saúde? Eu sou dono do meu corpo para maltratá-lo com o objetivo de ter prazer nos maus hábitos, em vez de administrá-lo bem, com o objetivo de ter prazer nos ideais de Deus? Meus maus hábitos de saúde se coadunam com os princípios bíblicos? Ou se coadunam apenas com meus próprios interesses pecaminosos?

Quando nos fazemos essas perguntas, percebemos que cuidar mal de nosso corpo sem necessidade não é algo agradável a Deus. Pode sim ser considerado pecado. Aliás, é bom lembrar que a Bíblia condena a glutonaria. Será que ao preferir uma vida de maus hábitos alimentares para o nosso prazer, em vez de bons hábitos alimentares para a glória de Deus, não estamos caindo numa espécie de glutonaria? Note: são questões que não dependem de crer ou não nos escritos de Ellen White. Elas fluem da Bíblia, da visão bíblica de que devemos honrar a Deus em tudo, de que nosso corpo não é nosso, de que fomos salvos da morte por Jesus e transformados em templos do Espírito Santo. Será que é justo adoecermos e matarmos a nós mesmos paulatinamente quando temos condições de honrar a Deus no cuidado do corpo? Será que o Deus que dá instruções quanto à administração do dinheiro, tempo, talentos e intelecto para a sua glória, não dá importância alguma à administração do nosso corpo? Não valemos mais que moedas, dias, dons e conhecimentos? Jesus morreu pelos nossos dízimos ou por nós?

O critico que desdenha desses princípios com a desculpa de que são preceitos de Ellen White, não tem um problema real com Ellen White, mas com a Bíblia. White nada tem a ver com isso. Dei o exemplo da reforma da saúde, mas poderia falar sobre modéstia e divertimentos. O crítico pode não concordar com pormenores dos conselhos de White, com detalhes da linguagem e pontos mais voltados para o contexto dela. Mas jogar fora o âmago é atirar contra princípios bíblicos.

Esse tipo de criticismo não é saudável para as discussões. Ele não só mente ao fazer das doutrinas fundamentais da IASD invenções de Ellen White, como, no âmbito do debate, transforma detalhes marginais, linguagem forte e crenças não fundamentais/doutrinárias dos escritos de Ellen White em doutrinas fundamentais e de maior relevância que o sacrifício de Cristo, a justificação pela fé e a Sola Scriptura, por exemplo. E assim Ellen White toma o lugar da Bíblia.

2.2. Os fanáticos

Ora, se de um lado muitos críticos fazem questão de trazer Ellen White para o centro do debate, de outro lado muitos fanáticos por Ellen White fazem exatamente a mesma coisa. A mulher é colocada como a autoridade final e infalível na exegese de todos os textos bíblicos, de toda a cronologia histórica apresentada em seus livros e de cada detalhe científico, médico, psicológico, pedagógico, geográfico, etc. Assim, se há uma divergência teológica, os fanáticos vão aos escritos dela. Se há uma dúvida bíblica, os escritos dela são a solução. Se vão escrever um texto ou formular um sermão, tem que haver textos da irmã White recheando todo o conteúdo. E se querem condenar irmãos e radicalizar os conceitos de reforma da saúde, modéstia e lazer cristão, catar citações isoladas com as expressões mais fortes da autora é destino mais previsível.

Os resultados dessa distorção são nefastos. Em primeiro lugar, ao recorrer aos escritos de White para interpretação bíblica, os fanáticos acabam correndo o risco de fazerem uso de textos dela que não tinham a menor intenção de fazer exegese do texto.

Em segundo lugar, tanto ela, quanto os demais pioneiros adventistas, a doutrina oficial da IASD até hoje e todos os adeptos da Reforma Radical sempre entenderam que a Bíblia é suficiente em matéria de fé e explica a si mesmo. Não devemos, portanto, fazer de ninguém um Papa na interpretação bíblica. Na própria Bíblia estão as ferramentas para interpretá-la corretamente. Isso é doutrina adventista e sempre foi. Qualquer coisa fora disso é heterodoxia e heresia. Quando, então, os fanáticos colocam a irmã White como intérprete final, imprescindível e infalível da Bíblia, fazem da Bíblia um livro insuficiente e incompreensível senão à luz de uma profetisa extracanônica. E isso acaba por afetar toda a IASD, já que por causa do mau testemunho desses fanáticos, muitos protestantes passam a acreditar que o adventismo vê a Bíblia como insuficiente.

Em terceiro lugar, o fanatismo por Ellen White desestimula e ofusca o estudo bíblico. É muito mais fácil catar citações da irmã White em livros compilados sobre o tema que se quer e irrigar debates, sermões e pregações com esse conteúdo. Sem reflexão, análise e estudo, o fanático se torna preguiçoso intelectualmente, péssimo exegeta, pouco versado em Bíblia, repetidor de bordões e, por vezes, orgulhoso de sua ignorância. Ele acha que por ler e usar muito os escritos de White, é um bom adventista, um bom cristão e um bom estudante de Bíblia. Esse indivíduo não só estudará pouco e mal, como também verá com desprezo os teólogos e a teologia. Para ele, tudo o que é necessário para o adventista em termos de estudo bíblico é ler os escritos de Ellen White.

A preguiça intelectual que o fanatismo provoca também estimula o uso do “método texto-prova” para debates, palestras, sermões, exortações, repreensões e pregações. Não importa o assunto e a complexidade dele, o fanático resolverá tudo com um punhado de citações isoladas de Ellen White, sem o menor esforço de explicar o contexto delas, compará-las com o restante da obra e responder objeções. Nesse método, “os textos falam por si”. É só citar e pronto. Por extensão, é claro, esse hábito também será usado na Bíblia.

Em quarto lugar, justamente em decorrência da preguiça intelectual e do uso do método texto-prova, o fanático será levado a formar teologias radicais e distorcidas com base nos escritos de Ellen White. E aqui devemos observar o seguinte: a obra básica de Ellen White seguramente chega a mais de 40 mil páginas. Uma Bíblia na formatação de um livro comum tem cerca de 4 mil páginas. Se uma pessoa demora, em média, um ano para ler a Bíblia toda, isso quer dizer são necessários dez anos para conhecer toda a obra básica de Ellen White. É óbvio, portanto, que é tanto mais fácil achar citação da irmã sobre qualquer assunto quanto de descontextualizar suas falas, dar peso a questões mais secundárias e fazer uma coletânea de passagens duras para “condenar Deus [note que Jesus não era vegetariano, rsrs] e o mundo”.

Não é à toa que as maiores heresias que surgiram na IASD é baseada, em sua maior parte, num conjunto de graves distorções dos escritos de Ellen White. Conhecida como Teologia da Última Geração (TUG) ou “perfeccionismo”, essa heresia defende que (1) Jesus veio à terra com inclinação ao pecado, embora não tenha pecado; (2) nós podemos, pelo Espírito Santo, fazer o mesmo que Jesus, passando a ser impecáveis (no mais pleno sentido); (3) Jesus voltará quando a última geração se encontrar impecável no mesmo sentido que ele. Para além desses pontos heréticos e já doentios por si só, os efeitos do perfeccionismo são uma série de vícios espirituais, tais como o legalismo; a hipocrisia; o foco em hábitos, usos e costumes; uma espiritualidade baseada em listas de regras e pequenas abstenções; radicalismo na reforma da saúde; etc. Em suma, o perfeccionismo é um verdadeiro câncer, outro evangelho, algo demoníaco. E, conquanto não seja posição da maioria dos adventistas, tampouco doutrina da IASD (mas sim uma heresia), parte de seus efeitos ainda podem ser vistos em muitos irmãos. Isso explica também porque muitos perfeccionistas se tornam fanáticos por Ellen White e muitos fanáticos por Ellen White se tornam perfeccionistas. Uma heresia chama a outra.

Finalmente, para além do mau testemunho que os fanáticos dão para todo o mundo protestante (um dos motivos pelos quais, por generalização, muitos protestantes vêem a IASD como uma seita), o fanatismo por Ellen White é algo chato. O protestante que realmente está interessado em conhecer mais sobre a doutrina da IASD, que está aberto a encontrar verdades ali e que, por vezes, aceita o sábado, a mortalidade da alma e todas as doutrinas pilares do adventismo, acha chato lidar com fanáticos por Ellen White.

O protestante sincero está atrás de Bíblia. Ele é filho da Sola Scriptura. Ele quer estar em uma igreja cuja Bíblia é a regra máxima de fé e prática; é o centro do sermão; é o centro das discussões; é o centro das conversas; é a base de cada ensino. Ele quer ver tudo provado na Bíblia. Quando ele se depara, então, com nossos estudos tão bíblicos, nossas doutrinas tão fincadas nas Escrituras, ele vibra. Ao mesmo tempo, quando ele vê que precisa lidar com alguns fanáticos por Ellen White no meio do caminho, tendem a murchar. É chato. É desagradável. E faz o sincero protestante pensar: “Será que eu estou no lugar certo? Será que a doutrina oficial apóia esses fanáticos? E mesmo que não apóie, será que eu terei estômago para lidar com essa gente?”.

Eu digo essas coisas com conhecimento de causa. Primeiro, porque não sou adventista de berço. Eu comecei a crer na mensagem adventista em 2011, com 17 anos. Antes eu era apenas um cristão protestante sincero, de família cristã protestante. Ninguém era adventista no meu lar. Então, eu sei o que é ser um protestante não adventista. Eu sei exatamente como um protestante não adventista pensa. Segundo, porque eu conheço pessoas muito próximas a mim que aceitaram toda a doutrina básica da IASD, através de estudos totalmente bíblicos, mas não se animam a se tornar adventistas por causa de Ellen White. Ora, aqui é hora de refletir: se Ellen White, tão importante pastoralmente para que a IASD se tornasse o que é hoje, está sendo um empecilho para que cristãos sinceros que aceitaram a doutrina toda se unam plenamente à IASD, algo está muito errado no modo como Ellen White tem sido apresentada a eles.

E quem são os culpados por essa má apresentação? Em primeiro lugar, os fanáticos, é claro. Mas depois deles, os que por covardia ou preguiça, não enfatizam o ensino correto na intensidade que deveriam, não combatem o fanatismo com o vigor necessário e ainda permitem que os fanáticos tomem os púlpitos e os cargos de destaque na instituição, dando a eles voz para reproduzirem suas heresias. E é assim que ficamos nas mãos de uma minoria herética. Ou tomamos a rédea da situação, enfatizando a doutrina correta, o evangelho bíblico e a Sola Scriptura, ou nos tornamos caricatura de jornal na caneta dos críticos do adventismo.

2.3. Os equilibrados (de dentro e de fora)

Ao fim dessas considerações, fica claro porque tanto críticos de Ellen White, quanto fanáticos por ela caem no mesmo erro. Ambos pensam que ela deve estar no centro do debate, quando essa é a posição da Bíblia e apenas da Bíblia. Ademais, notemos que os dois grupos se alimentam um ao outro. Quanto mais fanáticos de um lado, mais críticos do outro; quanto mais críticos de um lado, mais fanáticos do outro. A intensidade de cada grupo também aumenta de acordo com o lado inimigo. No centro dessa briga está uma massa grande (a maioria dos adventistas e a maioria dos não adventistas) formada, em sua maior parte, por pessoas que sabem muito pouco sobre esses assuntos. Essa massa é disputada pelos dois grupos. Daí a importância de conscientizar os membros da IASD e também os membros das demais igrejas protestantes a respeito de tudo o que foi dito no texto anterior e nesse texto.

Talvez aqui seja a hora de fazer um apelo a leitores que pertencem a um desses dois grupos disputados pelos extremos: a grande massa adventista e a grande massa das demais igrejas. Se ficou claro que toda essa exaltação de Ellen White (tanto por fanáticos, quanto por críticos) não passa de uma gigantesca distorção da doutrina adventista, do ensino dela e do ensino dos pioneiros – e não, como muitos podem pensar, parte da própria doutrina –, por que não reavaliar o modo como você vê a IASD, o adventismo e a própria Ellen White?

Falarei primeiro ao leitor de fora da IASD. Talvez você esteja naquela situação que mencionei há pouco: concordou com toda a doutrina por meio de estudos totalmente bíblicos. Já é até um sabatista e visita os cultos da IASD. Mas não se anima a congregar formalmente na igreja por causa dos fanáticos por Ellen White. Talvez você esteja se perguntando: “Por que devo entrar em uma igreja na qual toparei com fanáticos por Ellen White? Ainda que não sejam maioria, existem em número suficiente para encher a minha paciência. E ainda: a existência desses fanáticos não é um indicio de que há algo errado na própria doutrina da igreja?”.

Creio que a resposta perpassa a questão da história do povo de Deus como um todo. No deserto, Deus ordenou a Moisés fazer uma serpente de bronze numa haste para que todo o que fosse picado por cobras venenosas, ficasse curado ao olhar para ela (Nm 21:4-9). Séculos depois, a serpente se tornou um ídolo para o povo (II Rs 18:4). Deus também ordenou que houvesse uma arca da aliança para guardar as tábuas da Lei, um exemplar do Maná e o cajado de Arão (Êx 25:10-22; Dt 10:2-5). Anos depois, a arca também se tornou uma espécie de amuleto da sorte para o povo (I Sm 4:3-22).

No Novo Testamento, algumas igrejas fizeram de Paulo, Apolo e Pedro seus ídolos, disputando entre si (I Co 3:3-23). Em outras igrejas, a circuncisão foi vista como meio de salvação e santificação (Fl 3:2-3; Tt 1:10). Em outras, os ritos do AT foram misturados ao gnosticismo e tornados elementos de juízo aos que não faziam as coisas desse modo (Cl 2:8-23).

No período pós-bíblico, a Igreja se apegou à oração e veneração de santos mortos, às “relíquias” dos santos e às ordens do papado. Na Reforma Protestante, as primeiras igrejas reformadas se apegaram às suas próprias palavras e perseguiram anabatistas e outros grupos protestantes. Hoje, diversas igrejas se apegam cegamente a seus pastores. Em suma, durante toda a história, o povo de Deus teve problemas com idolatria e fanatismo. Isso não é exclusividade dos adventistas, mas uma constante humana.

O que isso nos ensina é que até Jesus voltar sempre haverá grupos de fanáticos. Nossa missão não é viver isolados, deixando os fanáticos e hereges fazerem seu trabalho sujo na Igreja. Nossa missão é combater as heresias e disseminar a verdade. A Igreja só se cura de uma chaga quando seus membros (líderes e leigos) se unem para tratá-la. Por que entrar numa igreja que tem chagas? Porque (1) todas têm chagas e porque (2) você precisa ajudar a tratá-las. Se o fanatismo te incomoda e você agora sabe que ele é uma chaga, não uma doutrina da igreja, sinta-se chamado por Deus a colocar as coisas no lugar. Foi por causa de covardes e preguiçosos que as chagas se espalharam. Mas é por causa de pessoas esforçadas em prol da verdade que elas não tomaram toda Igreja.

Agora, falo ao leitor do segundo grupo, o de dentro da IASD. Nesse grupo há os que estão alheios a tudo, há os que estão se inclinando para o criticismo, há os que estão se inclinando para o fanatismo e há os equilibrados que não sabem o que fazer. Todos esses devem ter em mente que os extremos não são a solução. Não é preciso exigir muito de White e colocá-la no centro de tudo. Crer no dom profético não é isso. De igual maneira, não é necessário descartar os escritos de Ellen White e entendê-la como uma falsa cristã, falsa profetisa, inspirada por Satanás ou com problemas mentais. Isso seria jogar a água suja fora com o bebê e a bacia junto.

Uma avaliação honesta da vida e dos escritos dessa mulher, bem como da história da IASD, revelarão que ela teve um papel pastoral gigantesco para a formação do movimento; que ela falou muito mais sobre Cristo como centro de tudo do que sobre questões menores; que suas obras instigaram muitos a se apaixonarem por Jesus, pela Bíblia, pela Reforma Protestante e pelo mover de Deus ao longo da história; que seus conselhos possuem um âmago bíblico e, portanto, podem ser encontrados na própria Escritura (em suma, a Bíblia não precisa de complemento); que ela não complementa a Bíblia, mas aponta o que já está lá; que ela ajudou muitas famílias por meio de cartas; que o âmago de seus conselhos sobre saúde só fazem bem; e que ela fez previsões que se cumpriram. Jogar isso fora é ser desonesto para com os fatos.

O equilíbrio nos ensina a reivindicar corretamente. Crer no dom profético dado a Ellen White não implica, nem deve implicar a crença de que ela foi uma profetisa com a mesma função dos profetas bíblicos; que ninguém pode entender Bíblia sem ela; que todo sermão, discussão ou pregação tem que ter Ellen White; que devemos fazer uma Bíblia com seus comentários; que sua inspiração é verbal, precisa e perfeita em todos os aspectos e detalhes; que ela é original; que ela trouxe novas doutrinas; que devemos provar nossas crenças pelos seus escritos; que ela é autoridade em todos os temas; que ela esgotou todos os assuntos; que não há qualquer espaço para discordâncias em relação à linguagem dela, analogias, comparações e detalhes secundários; que qualquer discordância é um sinônimo de rejeição da sua obra e da sua inspiração. Implica, sim, crer que ela foi usada por Deus para a condução e estruturação de um movimento mundial, através de inspiração no âmago das mensagens e de algumas visões. Inerrância e precisão absolutas não estão no pacote.

Talvez aqui devamos falar de uma palavra chamada “tolerância”. Jamais os adventistas entenderão o trabalho e a natureza da inspiração de White de igual forma. Alguns serão mais abertos a aceitarem imprecisões como parte do processo. Outros terão visão mais fechada para isso. Até certo ponto isso não oferece risco nem para um lado, nem para o outro. Há como estar na faixa do equilíbrio dentro dessas posições. E, por isso, nós devemos tolerar tais posições e não criar discussões inúteis a respeito (há coisas muito mais importantes a serem discutidas e feitas).

O problema começa apenas quando caminhamos muito para os extremos. Tanto de um lado, quanto do outro, os extremos saem da ortodoxia adventista e do limite saudável de discordância. Para o lado do fanatismo, nós trocamos Sola Scriptura por Sola White, renegando o princípio bíblico e a herança protestante que a própria Ellen White se esforçou para nos fazer respeitar e admirar (uma leitura em O Grande Conflito deixa isso claro). Para o lado do criticismo, nós trocamos os conselhos e conceitos bíblicos de I Ts 5:20-21, II Cr 20:20, I Co 14:1-6, Pv 29:18, Jl 2:28-29, I Co 12 e Ap 19:10, a respeito do trabalho do dom de profecia e do trabalho dos profetas, renegando assim um dos modos pelos quais Deus orienta seu povo. Nos dois extremos, perde-se a identidade de cristão bíblico.

3. A importância do conhecimento e a razão desse texto

Nesse último momento do texto, quero responder a essa pergunta tão importante: por que os catorze fatos que expus no texto passado e nos quais me baseei para tirar as conclusões desse texto são tão pouco conhecidos? Há várias razões.

Em primeiro lugar, porque em qualquer igreja e em relação a qualquer doutrina, sempre há uma distância entre o que a teoria diz e como muitos crêem na prática. É normal. Alguns praticam diferente por desconhecimento, outros por discordância e teimosia, outros por fraqueza e ainda outros porque entenderam a teoria de maneira errada.

Em segundo lugar, porque também sempre há uma distância entre o que a academia discute, o que os líderes sabem e o que o povo entra em contato e assimila. Não se trata de uma tentativa de líderes e acadêmicos de manter o povo sem instrução. É apenas a própria natureza do processo. Geralmente, líderes eclesiásticos e acadêmicos possuem maior disposição, tempo, interesse, paciência, dom e responsabilidade de estudar (ao menos quando na academia) do que o leigo. Algumas dessas discussões teológicas são pesadas e poucos leigos têm interesse em aprender. Ao mesmo tempo, boa parte dos líderes não tem interesse em ensinar sobre. Resultado: o leigo aprende pouco e coisas importantes ficam restritas aos acadêmicos e líderes.

Em terceiro lugar, há líderes que tem medo de tocarem em questões polêmicas, seja por não querer que a igreja perca alguns membros (que não aceitariam as verdades), seja por temer por seu cargo. Assim, muitos guardam as coisas importantes para si.

Em quarto lugar, os leigos, no geral, se acostumaram a uma preguiça intelectual gigante, sobretudo teológica. Isso não é um problema apenas da IASD, mas dos cristãos no geral e de todo o mundo. Os leigos, cristãos ou não, tem se contentado cada vez mais com besteiras, conhecimento inútil, futilidades. Poucos se esmeram em estudar, em saber mais sobre diversas áreas importantes do conhecimento.

Finalmente, os leigos que se interessam pelos estudos e os líderes que querem fazer algo acabam sendo sufocados por todo esse contexto. Felizmente, a internet tem feito a diferença nesse aspecto, proporcionando informações importantes para quem antes não tinha acesso. E assim esse contexto tem sido gradualmente combatido. Essa é a razão de eu ter escrito esse texto e o primeiro.

Conclusão

Procurei, no primeiro texto e nesse, sintetizar ao máximo uma discussão extensa. Eu li muito material e refleti bastante. O que me motivou foi o fato de que muita gente carece desse conhecimento. Eu mesmo só vim ter acesso a boa parte desses conhecimentos muito recentemente. Eu gostaria muito de ter sabido dessas questões antes. Assim, eu espero que esses dois textos sirvam de introdução e rota inicial para seus estudos sobre Bíblia, doutrinas adventistas e Ellen White. Acima de tudo, espero que esses textos te façam entender que a Bíblia deve estar no centro de nossos debates, sermões, pregações, conversas, opiniões e vivência. Nenhum outro escrito deve tomar esse lugar. Enquanto você estiver firme na Bíblia, a Palavra de Deus, você estará em terra firme.

Por Davi Caldas

Fonte: Reação Adventista

 

Sobre Weleson Fernandes

Escritor & Evangelista da União Central Brasileira

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