O suposto conflito entre lei e graça

 

A despeito do claro testemunho das Escrituras acerca da lei moral, muitos cristãos acreditam que a “nova lei do evangelho” suplantou a “antiga lei”, comumente associada à vida civil e religiosa dos israelitas.

Raciocinam que havia uma era de salvação anterior ao cristianismo baseada na obediência à lei, e uma era cristã distinta de salvação pela graça que substituiu o antigo modelo.

Apesar da profunda consideração que tenho por esses cristãos, nada pode estar mais longe da verdade.

Além de estabelecer uma clara distinção entre as leis morais, civis e cerimoniais, a Escritura ensina que Deus sempre concebeu um só meio de redenção da humanidade por meio do sacrifício de Seu Filho, Jesus Cristo, recebido mediante a fé. Estas são as boas-novas do evangelho anunciadas ao mundo desde tempos imemoriais (Jó 19:25; Romanos 5:18; Gálatas 3:6-8; Hebreus 4:2).

 

Antiga e nova aliança

A nova ou superior aliança feita entre Deus e Seu povo não tornava a primeira inerentemente defeituosa. O cumprimento da promessa de Deus estava condicionado ao cumprimento das condições do pacto, mas Israel falhara nesse sentido (Hebreus 8:8-9; Romanos 9:1), e agora havia a necessidade de uma aliança superior “instituída com base em superiores promessas” (Hebreus 8:6).

Essas promessas superiores, porém, jamais anularam os Dez Mandamentos em qualquer grau, medida ou aspecto. Na verdade, elas reafirmam o concerto original de Deus com Seu povo, prometendo-lhe capacidade divina para amar e obedecer à lei moral (Jeremias 31:33; Hebreus 8:7-12; 10:15-17).

Essa superior aliança exigia, contudo, um sacrifício igualmente superior capaz de efetivá-la na vida do crente (Hebreus 9:23; 10:2-4), visto que as leis sacrificais não passavam de “sombra dos bens vindouros” (Hebreus 10:1). Os ritos e serviços do antigo santuário alcançaram o seu cumprimento quando nosso Salvador ofereceu-Se como perfeita oferta pelo pecado em favor do homem.

A lei de Deus, com efeito, permaneceu um marco na nova aliança, pois Cristo, satisfazendo uma exigência moral, se fez pecado por nós a fim de que pudesse escrever na mente e no coração daqueles que O aceitam a mesma lei que Ele efetivamente guardou (Salmo 40:8).

Condenando na carne o pecado, o Filho de Deus permitiu a todos os que creem no Seu nome “que a justa exigência da lei se cumprisse em nós” (Romanos 8:3-4), realizando assim a promessa contida na nova aliança com base na virtude de Sua oferta sacrifical.

Deste modo, a graça de Jesus, ao invés de nos eximir da lei moral, coloca-nos em perfeita harmonia com os seus requisitos.

Um único plano divino de redenção

A expressão “evangelho eterno” (Apocalipse 14:6) contraria abertamente a falsa dicotomia dispensacionalista que reconhece propósitos distintos de salvação para Israel e para a igreja.

Aliás, em parte alguma as Escrituras ensinam que há uma antiga dispensação israelita de salvação pela lei e uma atual dispensação cristã de salvação pela graça. Todos os pecadores são salvos pela graça (Salmo 6:4; Isaías 55:1-4; Efésios 2:8-9), justificados pela fé (Gênesis 15:6; Habacuque 2:4; Romanos 5:1) e julgados pelas obras (Deuteronômio 28; Mateus 5:16-21; 25:31-46; Apocalipse 20:11-13).

Nem o Antigo Testamento ensina um modelo de salvação legalista, nem o Novo Testamento, um modelo antinomista (total ausência da lei). Ambos partilham do mesmo conceito bíblico de salvação e obediência mediante a graça.

O pecador que verdadeiramente aceita o dom gratuito da salvação de Deus em Cristo Jesus passa a viver em conformidade com a lei divina, e não mais sob sua condenação (Romanos 8:1-4; Hebreus 8:8-10).

Quando exorta os israelitas à obediência, Moisés não tem em mente uma observância formal e legalista da lei. Ele se refere à lei da perspectiva de um coração “circuncidado” pelo poder de Deus (Deuteronômio 30:6, ver também Jeremias 24:7; Ezequiel 36:25-27)!

A exequibilidade do cumprimento da lei foi assegurada ao povo com base na aliança eterna de Deus com Adão, e renovada posteriormente com Abraão, a qual proporciona perdão pela transgressão e graça que capacita à obediência pela fé no Messias vindouro.

Moisés não ignorava a devida relação entre lei e evangelho, pois reconhecia que Deus tem um único método para salvar o homem, e a lei era uma parte integral desse plano.

Não é de admirar que o apóstolo Paulo recorra às palavras de Moisés para assinalar o profundo contraste entre a justificação pela fé e as infrutíferas tentativas de cumprir a lei por meio da justiça própria (Romanos 10:3-8).

Tanto o Antigo como o Novo Testamento põe em relevo a verdadeira relação entre lei e evangelho; o mesmo evangelho que proclama a fé como o princípio da justificação e da obediência.

Obediência pela fé não é legalismo

Nem o antigo nem o novo concerto de Deus com Seu povo foi, portanto, fundamentado numa observância legalista da lei, mas inteiramente na graça com base na promessa (Gênesis 3:15). O Senhor mesmo diz:

Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o Senhor: Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. (Jeremias 31:33)

O modo pelo qual Deus cumprirá Sua promessa é assim descrito:

Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne. Porei dentro de vós o meu Espírito e farei que andeis nos meus estatutos, guardeis os meus juízos e os observeis. (Ezequiel 36:25-27)

Não há nenhum legalismo aqui. A graça divina que perdoa o pecado e transforma o pecador em uma nova criatura precede a obediência requerida por Deus em Sua lei.

Tentativa de invalidar o sábado na lei moral

O argumento que procura opor lei e evangelho inclui também o ponto de vista segundo o qual o sábado teria sido abolido juntamente com as leis cerimoniosas do Antigo Testamento.

Os defensores desse ensino afirmam que a ordem para santificar um dia da semana provém de lei divina, e como tal, é eterna e imutável, mas que a referência ao sétimo dia é de natureza simbólica e, portanto, transitória, o que autorizaria os cristãos não somente a deixar de observá-lo como também substituí-lo por outro dia de repouso.

Ideia semelhante transparece de uma carta do papa Gregório, o Grande (590-604), endereçada aos cidadãos romanos. Escrevendo contra os guardadores do sábado, ele argumenta que o preceito permaneceu em vigor enquanto era lícito guardar a lei que exigia sua observância, “mas depois que a graça do Deus Todo-Poderoso manifestou-se em nosso Senhor Jesus Cristo, os mandamentos da lei que foram transmitidos em sentido figurado não podem mais ser observados de acordo com a letra”. (1)

Esvaziando o mandamento do sábado de seu conteúdo moral, Gregório prossegue, dizendo:

Pois se alguém sustenta que o sábado deve ser observado precisa admitir que os sacrifícios carnais também devem ser oferecidos; deve admitir igualmente que o mandamento sobre a circuncisão do corpo ainda está em vigor. (2)

Para consubstanciar seu argumento, Gregório se refere a Cristo como tendo supostamente abolido o sábado por “trabalhar” nesse dia:

Pois se lê que mesmo nosso Senhor e Redentor fez muitos trabalhos no dia de sábado, razão pela qual reprovou os judeus… Se a própria verdade em pessoa ordenou que o sábado não devesse ser observado segundo a letra, aquele que observa o descanso no sábado de acordo com a letra da lei a quem mais contradiz, senão a própria verdade? (3)

O conceito expresso por Gregório floresceu durante a Idade Média, período em que se desenvolveu uma teologia católica acerca do domingo como cumprimento do preceito do sábado.

Acreditava-se que as estipulações do quarto mandamento eram de natureza moral e permanente, ao passo que a escolha do dia era questão cerimonial e por isso mesmo temporária, transitória e sujeita a alteração pela Igreja.

A formulação teológica clássica veio com Tomás de Aquino, o qual sustentava que, em seu sentido literal, “o mandamento para guardar o sábado [no decálogo] é parcialmente moral e parcialmente cerimonial”: moral no sentido de que os seres humanos devem separar algum tempo para se concentrar nas coisas de Deus; cerimonial no sentido de separar um tempo específico (Summa Teológica, 2a2ae.122.4) (4)

Assim, quando evangélicos lançam mão dos mesmos argumentos para justificar a não observância da lei, ou, em particular, do quarto mandamento, reproduzem o mesmo ensino do catolicismo, o qual eles professam rejeitar.

A Palavra de Deus diz:

Tu estás perto, Senhor, e todos os teus mandamentos são verdade. Quanto às tuas prescrições, há muito sei que as estabeleceste para sempre. (Salmo 119:151-152)

Sobre o sábado, trataremos pormenorizadamente em um artigo posterior. No que tange à dimensão moral de todos os mandamentos e sua relação com a graça, é preciso tecer mais algumas considerações.

Notas e referências

1. 

Saint Gregory the Great Epistles, Vol. 36. Book XIII, Epistle I

. Acesso em 06 de fev. 2012, 10h06min.

2. Ibid.

3. Ibid.

4. Kenneth A. Strand. “O Sábado”. Em Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia. Raoul Dederen (Ed.). Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011, p. 581.

Sobre Weleson Fernandes

Escritor & Evangelista da União Central Brasileira

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