As Escrituras declaram que “o pecado é a transgressão da lei” (I João 3:4) e que “pela lei vem o pleno conhecimento do pecado” (Romanos 3:20). Se “não há lei, também não há transgressão” (Romanos 4:15; 5:13).
Logo, se não houvesse lei para transgredir, Adão e Eva não poderiam ter sido culpados de pecado, nem expulsos do Éden.
Contudo, nossos primeiros pais pecaram (Gênesis 3; Isaías 43:27; Romanos 5:12), e seu pecado consistiu na desobediência de uma ordem divina expressa, de natureza eminentemente moral (Gênesis 2:16-17).
As normas divinas de moralidade e conduta também eram familiares a Abraão, o pai da fé (Gênesis 26:5), e a todos os israelitas antes do encontro no Sinai (Êxodo 18:16). Ali, tornaram-se seus depositários, conservadores e testemunhas num ato solene:
a) para o qual o povo se preparou antecipadamente (Êxodo 19:10-11);
b) em que se testemunhou uma manifestação extraordinária do poder divino, à altura do caráter exaltado da lei (Salmo 68:8);
c) em que a lei moral foi escrita pelo próprio Deus em duas tábuas de pedra (Êxodo 31:18);
d) e entregue por Ele mesmo ao povo por intermédio de Moisés (Deuteronômio 4:12-13).
Quando o antigo santuário hebreu foi erigido em obediência à ordem divina (Êxodo 25:8), as tábuas de pedra contendo os Dez Mandamentos foram depositadas dentro da arca (Êxodo 25:16 e 21; Deuteronômio 10:1-5; I Reis 8:9; II Crônicas 5:10; Hebreus 9:4) – o objeto mais importante localizado no compartimento mais sagrado do santuário (Êxodo 26:33-34; Números 7:89).
Em flagrante contraste, o conjunto de leis que regiam a vida civil e religiosa dos israelitas foi escrito por Moisés em um livro e colocado ao lado da arca (Êxodo 24:4 e 7; Deuteronômio 31:9, 24-26).
Jesus e a lei
Foi Jesus Cristo quem desceu sobre o monte Sinai para encontrar-se com Moisés e revelar-lhe, em meio a uma cena de terrível grandeza, a lei que Ele próprio gravara com o Seu dedo em duas tábuas de pedra (Neemias 9:12-14; I Coríntios 10:1-4).
Não é surpresa, pois, que durante todo o Seu ministério terrestre Cristo tenha dado um testemunho positivo a respeito da lei. Referindo-se ao Messias, o salmista declara:
Sacrifícios e ofertas não quiseste; abriste os meus ouvidos; holocaustos e ofertas pelo pecado não requeres. Então, eu disse: eis aqui estou, no rolo do livro está escrito a meu respeito; agrada-me fazer a tua vontade, ó Deus meu; dentro do meu coração, está a tua lei (Salmo 40:6-8)
E o livro do profeta Isaías testifica:
Foi do agrado do Senhor, por amor da sua própria justiça, engrandecer a lei e fazê-la gloriosa. (Isaías 42:21)
O Senhor Deus me abriu os ouvidos, e eu não fui rebelde, não me retraí. (Isaías 50:5)
E, de fato, essas profecias messiânicas cumpriram-se plenamente na vida de nosso Redentor. Jesus nunca procurou satisfazer Sua própria vontade, a não ser a vontade de Seu Pai (João 4:34; 5:30; 6:38; 8:29). Portanto, a propósito da lei moral, Cristo:
- não veio abolir, mas cumprir (Mateus 5:17-18);
- esclareceu-a e ampliou seu significado (Mateus 5:21-22, 27-28);
- recomendou-a (Mateus 19:17);
- exaltou-a (Mateus 15:4-6);
- guardou-a (João 15:10).
Ao longo de Seu ministério terrestre, o Salvador confirmou tanto por palavras como por atos a perfeição, imutabilidade e eternidade da lei moral. Nunca nem mesmo sugeriu a possibilidade de alterar ou abolir qualquer dos preceitos que constituem a expressão de Seu caráter.
O insigne pregador batista Carlos H. Spurgeon, em um sermão intitulado The Perpetuity of the Law of God, afirmou com propriedade:
Jesus não veio mudar a lei, mas sim explicá-la, e isto mostra que ela permanece, pois não há nenhuma necessidade de explicar aquilo que foi ab-rogado (…). Ao assim explicar a lei, Ele confirmou-a! Ele não poderia ter a intenção de aboli-la, do contrário não precisaria interpretá-la. (…) Mais uma vez, que o Mestre não veio alterar a lei é claro, porque depois de incorporá-la à Sua vida, voluntariamente Se deu a Si mesmo para levar-lhe a penalidade, embora jamais a houvesse transgredido, suportando a penalidade por nós, como está escrito: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós” (…) Se a lei houvesse exigido de nós mais do que deveria ter feito, teria o Senhor Jesus pago por ela a penalidade que resulta de seus tão severos preceitos? Estou certo de que não o faria. Mas pelo fato de a lei pedir apenas aquilo que deve pedir – perfeita obediência e exigir do transgressor somente aquilo que deve exigir, a saber, morte como penalidade pelo pecado – morte sob a ira divina, por essa razão o Salvador foi para a cruz e ali morreu por nossos pecados e os expiou de uma vez por todas. (1)
Seguindo o exemplo do Salvador
Em vista do que foi exposto acima, fica claro que a genuína fé em Jesus resulta na obediência aos Seus mandamentos. Os que conhecem a Cristo seguem Seu exemplo e são identificados por sua fidelidade e obediência a Deus (João 15:10; I João 2:3-4).
Do ponto de vista bíblico, não há justificativas para a adoção de ensinos errôneos por parte das igrejas. A verdade está ao alcance de todos os que estão dispostos a aceitá-la (Deuteronômio 30:11-14; João 7:17). E os que realmente amam a Cristo guardarão os Seus mandamentos. O mentiroso demonstra por sua conduta que não possui a verdade (Mateus 7:15-23).
Aquele, entretanto, que guarda a sua palavra, nele, verdadeiramente, tem sido aperfeiçoado o amor de Deus. Nisto sabemos que estamos nele: aquele que diz que permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou. (I João 2:5-6)
A intimidade da união com Cristo requer uma relação de dependência e de permanência nEle. O princípio que rege essa relação é o amor, e o amor só pode ser aperfeiçoado na vida do crente mediante a obediência (João 14:15). É através do Espírito Santo que os seguidores de Jesus demonstram que estão imitando seu Salvador, mantendo íntima e plena comunhão com Ele.
Deus não enviou “o seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa” para que o homem se sentisse livre das obrigações morais da lei, mas para que pudesse ser plenamente capacitado a cumprir suas justas exigências pela fé nEle
O propósito do plano da salvação nunca foi o de substituir ou abolir a lei ou isentar a humanidade da obrigação de sua observância, pois a lei é um reflexo do imutável caráter de Deus. Devido à sua natureza pecaminosa, o homem é incapaz de obedecer aos preceitos divinos, e a própria lei é ineficaz no sentido de torná-lo obediente (Romanos 3:20; 7:14).
Por esta razão, Cristo veio, tendo em vista reconciliar a humanidade consigo mesmo e conquistar de volta sua lealdade (Romanos 5:11; 8:3-4). A menos que o homem morra para o eu e para o pecado e renasça em uma nova vida no Espírito, não pode submeter-se à vontade de Deus.
Uma vida regida pela condescendência própria constitui inimizade contra Deus, e resulta em condenação e morte (Romanos 8:6-8). Mas se Cristo é o princípio de vida, o homem é habilitado a cumprir com os santos requerimentos da lei.
Neste caso, não viverá mais segundo os impulsos da carne, porque sua conduta é agora regida pelo Espírito Santo, o Espírito de Cristo que habita o coração (Romanos 8:9). Quando os pensamentos e desejos do coração são governados unicamente pelo Espírito, o resultado é vida e paz.
O ensino de Paulo sobre a lei e o evangelho
Um dos maiores problemas que Paulo enfrentou na igreja foi o legalismo – a tentativa de se fazer da lei um meio de salvação. Toda crença ou prática religiosa que encubra a suficiência da redenção de Cristo destrói o evangelho.
As promessas de Deus só podem ser obtidas por meio da fé, e não através da justiça própria. Longe de ensinar a abolição da lei, os ensinos de Paulo sobre a justificação pela fé põem em relevo a verdadeira relação entre lei e graça.
Em I Timóteo 1:8, Paulo diz “que a lei é boa, se alguém dela se utiliza de modo legítimo”. Se existe uma maneira legítima de se utilizar a lei, existe também uma maneira ilegítima. Ao tentarem se justificar diante de Deus recorrendo às obras da lei, muitos judeus convertidos ao cristianismo a utilizavam de modo ilegítimo, negando, assim, o próprio Salvador a quem professavam seguir.
Contra esse erro, Paulo (1) assinala o aspecto negativo da lei em matéria de salvação e justificação, ou seja, que a lei só pode nos condenar como transgressores (Romanos 3:9-20; 7:7, 10, 13-14; Gálatas 3:10-14; I João 3:4); e (2) destaca o aspecto positivo da lei na medida em que, por meio dela, vem “o pleno conhecimento do pecado” e a consequente necessidade de um Salvador (Gálatas 3:24).
Pelo reconhecimento de nossa verdadeira condição perante Deus é que somos sensibilizados quanto à necessidade de obter de Cristo, mediante a fé, perdão, paz e capacidade divina para amar e obedecer à Sua lei.
A obediência é, com efeito, uma resposta à graça divina, não o contrário, e é chamada em Romanos 1:5 de “obediência por fé” ou “da fé”, em contraste com as “obras da lei”, por cujo meio “ninguém é justificado diante de Deus, porque o justo viverá pela fé” (Gálatas 3:10-11; 2:16).
Essa fé não anula a lei, mas a estabelece (Romanos 3:31) e possibilita ao homem cumprir seus santos requisitos (Romanos 8:4). Neste ponto, é significativo que Paulo se refira à superioridade da fé sobre a lei como meio de obter justificação mencionando a experiência de Abraão, a quem foram confirmadas as promessas do evangelho.
O apóstolo esclarece que a lei revelada no Sinai mais de quatro séculos depois não alterou nem tampouco substituiu a aliança de Deus com Seu povo (Gálatas 3:6-9, 14-18). O propósito da lei, entendida aqui como toda a verdade revelada de Deus, nunca foi o de modificar as condições do pacto ou oferecer outro meio de salvação, mas tornar compreensível ao homem os requisitos da aliança da graça divina, de modo que pudesse apropriar-se dela mediante a fé no Salvador.
Ora, se o crente pudesse obter a salvação através das “obras da lei”, renunciaria efetivamente a graça de Cristo (Gálatas 5:4). Pretender encontrar a justificação fora de Cristo é negar a fé (João 14:6).
Se, por outro lado, a graça divina pudesse ser obtida ou merecida com base em alguma virtude humana, a graça deixaria de ser graça (Romanos 11:6), pois neste caso o homem poderia alcançar o favor divino por meio de sua própria força, e Cristo nem mesmo precisaria ter Se oferecido como oferta pelos pecados (Gálatas 2:21).
Qualquer tentativa de substituir a fé pelas obras da lei como meio de salvação constitui, assim, uma perversão do evangelho eterno, na medida em que nega tanto a necessidade como a eficácia do sacrifício de Cristo.
Toda a discussão, portanto, gira em torno da seguinte questão: Pode o sistema judaico de justificação pelas obras, baseado no cumprimento legalista da lei moral, das leis cerimoniosas e da tradição, conceder a alguém o direito de receber o favor divino e ser aceito por Deus?
Naturalmente, a resposta é não! Nenhuma pessoa pode obter justificação e salvação a não ser pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo. Pelo que não se pode conciliar o conceito bíblico de graça como um dom gratuito e imerecido da parte de Deus com a possibilidade de o homem merecê-la ou alcançá-la através das obras. A salvação pela fé e a salvação pelas obras são mutuamente excludentes.
Assim, ao defender a salvação pela fé, e não pelas obras da lei, Paulo não estava ensinando que a fé anula a lei. Ele não só negou essa opinião decorrente da má interpretação de seus escritos, como também afirmou que seu evangelho confirma ou estabelece a lei (Romanos 3:31; Gálatas 3:21). Sua teologia nunca pretendeu desprestigiar os mandamentos divinos, nem tampouco desobrigar os cristãos de observá-los. (2)
Conclusão
Referindo-se ao papel da lei no plano de Deus, Ray C. Stedman, na edição de setembro de 1953 da Our Hope, afirma:
Pondo o assunto em seu devido lugar, somente quando a lei é transformada em um meio de salvação ou de restringir o pecado é que entra em choque com os princípios da graça. Em qualquer outro sentido, ambas são complementares e nunca entram em conflito. A lei, porém, jamais foi destinada a salvar. Em seu princípio essencial, não é e jamais pode ser oposta à graça, porque ambas atuam em campos distintamente separados e para propósitos amplamente diversos. A lei destina-se a revelar o pecado; a graça destina-se a salvar do pecado. Nenhum conflito pode existir entre ambas. (3)
Como evangelho e juízo e fé e obras, graça e lei são elementos da verdade que não podem ser separados. A graça existe para que a lei possa ser cumprida; a lei existe para que a graça possa ser requerida. A graça, porém, precede a obediência. A experiência do sumo sacerdote Josué na visão de Zacarias capítulo 3 é instrutiva nesse sentido.
Enquanto Josué intercedia diante de Deus por seu povo, Satanás estava próximo para opor-se e contrariar seus esforços acusando o sumo sacerdote e os israelitas de pecaminosidade. Seu arrependimento e humilhação, entretanto, os colocavam sob o favor de Deus, e, por este motivo, Satanás foi severamente repreendido.
Ao receber de Cristo “trajes finos” e um “turbante limpo”, Josué e o povo estavam obtendo o perdão dos pecados e a restauração à graça divina, sendo-lhes atribuída a justiça de Deus em lugar da sua (Zacarias 3:3-5; Isaías 64:6; Apocalipse 19:8).
Somente depois de ter seus trajes vergonhosos substituídos pelas vestes da salvação, é que Jeová requereu de seu povo estrita fidelidade e obediência aos reclamos divinos (Zacarias 3:7).
Por conseguinte, os que são salvos pela graça de Jesus desejarão viver segundo a vontade de Deus, em sincera obediência à Sua santa lei, movidos pelo amor que procede do Céu (Romanos 13:10). Obedecerão não para serem salvos, mas porque foram salvos. A única coisa abolida de suas vidas será o pecado.
Para a igreja remanescente de Apocalipse 14:12, é impossível ter uma experiência cristã genuína sem fé em Jesus e obediência aos Seus mandamentos. Fé e obediência estão intimamente ligadas.
Em Romanos 10:17, Paulo afirma que “a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo”. A fé é uma convicção apoiada no conhecimento experimental da Palavra de Deus. O estudo fervoroso e diário das Escrituras é o meio eficaz para desenvolver uma fé transformadora e permanente, pautada pela obediência aos preceitos divinos.
Diante destas grandiosas verdades, é preciso nos guardar da tentação de perverter o evangelho eterno, seja negando a dimensão moral de qualquer dos mandamentos de Deus, seja modificando qualquer um de Seus preceitos para favorecer tradições humanas.
O evangelho e a lei procedem de Deus e permanecem integralmente juntos tanto no plano divino de redenção como na vida da igreja remanescente.
Notas e referências
1. C.H. Spurgeon.
The Perpetuity of the Law of God
. Sermon #1660, volume 28, p. 1-4. Acesso em: 23 mai. 2011, 9h21min.
2. De fato, W.H. Endruveit, em seu trabalho intitulado Experiência da Salvação (São Paulo, 2007, 161 p.) refere-se ao uso incorreto da lei quando observa que a mesma era considerada pelo judaísmo como o meio para a vida, sendo este um privilégio somente dos judeus, e não dos gentios. “O conceito rabínico acerca do homem”, afirma Endruveit, “negava o verdadeiro caráter de pecaminosidade humana diante de Deus. Em conformidade com esse conceito a lei passou a ser um mero código moral que o homem era capaz de observar. Em vez de a lei revelar a pecaminosidade do homem, ela tornou-se um meio para provar sua justiça própria… Portanto, além da questão da tradição dos rabis, a teologia de Paulo se interessa com a função da lei em relação aos nossos méritos e justiça diante de Deus. Pode a lei ajudar-nos a alcançar a justiça? É esta a sua função legítima? É a lei um meio legítimo de salvação? (…) Obras meritórias anulam a graça de Deus (Gl 2:21). Qual é o inimigo mortal da graça (evangelho) de Deus? É a lei? Não. De acordo com Gálatas 2:21, não é a lei que anula a graça, mas ‘a justiça que provém da lei’. Paulo, portanto, não desprestigia a lei, mas o uso errado da lei, como meio de salvação.”
3. Citado em Questões sobre Doutrina. Edição anotada. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2008, p. 134.