Os textos que supostamente anulam o sábado

No meu último texto, fiz uma exposição sobre como existe um pressuposto antijudaico que influencia a interpretação de passagens do NT que falam sobre alimentos. Por causa desse pressuposto, os contextos das passagens são ignorados; é apenas levada em conta as ideias de que a distinção entre alimentos é “coisa de judeu”, essas coisas foram abolidas e, portanto, qualquer texto que fale sobre alimento precisa estar falando desse assunto. O resultado é uma grande distorção dos textos bíblicos. Mencionei rapidamente na introdução e nas considerações finais da postagem em questão que a mesma coisa é feita em relação ao sábado. Na postagem de hoje, portanto, eu quero mostrar um pouco sobre como os textos sobre o sábado no NT são distorcidos com base no pressuposto antijudaico, seguindo a mesma lógica de descontextualização da mensagem original.

– Romanos 14:5-6

“Um faz diferença entre dia e dia; outro julga iguais todos os dias. Cada um tenha opinião bem definida em sua própria mente. Quem distingue entre dia e dia para o Senhor o faz; e quem come para o Senhor come, porque dá graças a Deus; e quem não come para o Senhor não come e dá graças a Deus”.

A maioria dos intérpretes cristãos entende que o sábado se inclui nesse texto. Assim, o cristão estaria livre para guardar o sábado ou não. O problema é que o contexto nos diz outra coisa. Vamos ver.

O capítulo 14 da epístola aos Romanos foi parcialmente analisado na postagem anterior, em relação à parte que fala dos alimentos. Lá expus que nos versos de 1 a 3, Paulo afirma que está falando sobre opiniões e que o primeiro exemplo que dá é sobre comer só legumes ou não; uma questão que nada tem a ver com Bíblia. As discussões que Paulo quer tratar, portanto, não continham um lado certo e um lado errado do ponto vista moral. Por isso, o apóstolo diz que cada um crê de um jeito e que um não deve julgar o outro por isso.

No mesmo texto de Romanos 14, apontei ainda o verso 21, no qual o apóstolo afirma o seguinte: “É bom não comer carne, nem beber vinho, nem fazer qualquer outra coisa com que teu irmão venha a tropeçar” (Rm 14:21). A assertiva, mais uma vez, trata de temas que não possuíam mandamento bíblico. Não há mandamento dizendo “Comerás apenas legumes”, ou “Não comerás carne”, ou “Não beberás vinho” (por mais que se possa argumentar que a abstenção é boa). A conclusão óbvia foi que Paulo não discutia leis bíblicas, mas práticas pessoais de diferentes grupos de cristãos na Igreja de Roma.

Da mesma forma, seguindo o contexto, o trecho em que Paulo fala sobre distinção de dias específicos não pode estar se referindo ao sábado, como muitos intérpretes cristãos afirmam. Ele não fala sobre lei, mas sobre costumes. Não há, portanto, razão contextual para concluir que os tais dias iguais mencionados por Paulo incluía o sábado. Talvez Paulo estivesse tratando de dias fixos de jejum (prática comum no primeiro século), ou dias considerados sagrados por alguns em razão de algum evento bíblico, como a quinta da santa ceia, a sexta da crucificação ou o domingo da ressurreição. O tom brando e flexível de Paulo evidencia que nenhum ponto legal ou moral estava em discussão.

– Gálatas 4:8-11

“Outrora, porém, não conhecendo a Deus, servíeis a deuses que, por natureza, não o são; mas agora que conheceis a Deus ou, antes, sendo conhecidos por Deus, como estais voltando, outra vez, aos rudimentos fracos e pobres, aos quais, de novo, quereis ainda escravizar-vos? Guardais dias, e meses, e tempos, e anos. Receio de vós tenha eu trabalhado em vão para convosco”.

A alegação da maioria dos intérpretes aqui é que Paulo está criticando quem guarda dias, o que incluiria guardadores do sábado. Tal interpretação é errônea porque se constrói por meio de incoerências bíblicas. Para perceber isso, é preciso retroceder um pouco e ler o verso 3 desse mesmo capítulo. Ali Paulo afirma que “nós”, antes de Jesus, “estávamos servilmente sujeitos aos rudimentos do mundo”. Em geral, a maioria dos intérpretes cristãos entende que o “nós” refere-se aos judeus da antiga aliança e que os “rudimentos do mundo” seriam preceitos da Torá como a guarda de dias, meses, tempos e anos. Essa é a primeira incoerência: a Torá foi dada por Deus, não pelo mundo. Paulo não poderia chamar seus preceitos de rudimentos do mundo.

Nos versos 8-11, Paulo afirma que os gálatas, no passado, serviam a deuses falsos e não conheciam a Deus; e relaciona o retorno aos rudimentos do mundo (fracos e pobres) a essa vida idolátrica antiga. É estranho supor que Paulo esteja tratando dos preceitos da Torá aqui. Como seguir a Torá, no passado, poderia ser caracterizado como uma forma de servir a outros deuses, não conhecer a Deus e seguir rudimentos do mundo fracos e pobres? Soa como a teologia de Marcião, que negava todo o Antigo Testamento. A Torá e os Profetas, no entanto, eram a Palavra de Deus. Paulo poderia até crer que o sistema completo da Torá fora abolido, pois Jesus cumpriu toda a parte ritualística em si mesmo ao morrer na cruz e ressuscitar. Ainda assim, os mandamentos foram dados por Deus no passado. Nunca foram rudimentos do mundo ou uma forma de idolatria.

Compare as palavras de Paulo supostamente contra a Torá e seus seguidores com os louvores dos salmistas à lei de Deus, por exemplo, e veremos que há algo muito errado com essa interpretação. A visão é tão problemática que faz o apóstolo contradizer a si mesmo em Romanos 7, por exemplo. Nesse capítulo, Paulo diz que a lei não é pecado (v.7), é santa (v. 12), espiritual (v. 14), boa (v. 16), de Deus e prazerosa (v. 22) e que o mandamento é santo, justo e bom (v. 12). Fica claro, então, que a interpretação não está correta. O que Paulo, então, queria dizer? A resposta está na própria carta.

O apóstolo passou os quatro primeiros capítulos se opondo a grupos que colocavam no centro da fé um conjunto de tradições humanas e interpretações distorcidas da Torá. Um exemplo de tradição humana que Paulo oferece está em Gl 2:11-16. Ali,o apóstolo conta que repreendeu Pedro porque ele só comia com os gentios quando não estava na frente dos judeus naturais. A proibição de comer com gentios era baseada em tradição rabínica, não na Bíblia. As tradições rabínicas, nesse judaísmo distorcido, se confundiam com a própria Palavra de Deus (problema que Jesus combateu ferrenhamente durante todo seu ministério, aliás). Já um exemplo de interpretação distorcida da Torá era a concepção de que todos os seus mandamentos ritualísticos possuíam fim em si mesmos e eram, por conseguinte, permanentes. Isso incluía a circuncisão, as festas religiosas, o sistema de sacrifícios, os conceitos teocráticos, etc.

Quando, portanto, Paulo fala sobre rudimentos do mundo, no capítulo 4, seu alvo não é a Torá, mas as tradições humanas que ganhavam peso de Escritura e as leituras errôneas da Torá. Esses erros eram comuns na antiga aliança e agora estavam voltando a ser, na nova aliança, entre os crentes gálatas. Eles formavam um judaísmo corrompido onde o Messias Jesus não era o centro (tal como não era o centro entre os judeus incrédulos).

Muitos teólogos (adventistas e não adventistas) entendem que texto de Gálatas 4:8-11 não se direciona apenas a judeus que queriam guardar (e impor) as tradições rabínicas e todos os mandamentos da Torá, mas também a sincretistas. Isso explicaria a menção a uma vida pregressa de servidão a outros deuses e rudimentos do mundo. Segundo esta interpretação, os crentes gálatas estavam misturando rituais judaicos da antiga aliança com rituais pagãos que seguiam no passado, revestindo os últimos de significado judaico-cristão. Assim, crenças astrológicas, exotéricas e de religiões sazonais, as quais possuem muitas datas santas, teriam se mesclado com a mensagem do evangelho e os preceitos da Torá em um sistema sincrético.

Independente dessa teoria estar correta ou não, o fato é que os gálatas estavam seguindo um sistema de rituais distorcido e que retirava Cristo do centro. É nesse contexto que o verso 10 deve ser interpretado. Os dias guardados ali mencionados fazem parte de um sistema herético. São rudimentos do mundo. Estão repletos de distorção. Paulo não está criticando a guarda de qualquer dia e chamando isso de rudimento mundano, mas sim os dias desse sistema herético e idolátrico.

Não faz muito sentido, dentro desse contexto, supor que Paulo está incluindo o sábado como preceito abolido, tradição humana ou filosofia mundana, já que o dia é bíblico e sua origem está relacionada à criação, não aos rituais da antiga aliança. É mais natural concluir que o apóstolo está se referindo à preceitos judaicos que tinham relação com o sistema sacrificial e a teocracia judaica (os quais chegaram ao seu fim), bem como à tradições humanas e rituais de origem pagã. Esses elementos se coadunam com os termos “rudimentos do mundo”, “rudimentos fracos e pobres” e “deuses que por natureza não são”.

Ainda assim, uma vez que o problema tratado por Paulo não é meramente a guarda de dias, mas a guarda dos preceitos de um sistema idolátrico, Paulo poderia estar pensando também no sábado, em sua crítica; não pelo dia estar sendo guardado, mas por também ter sido distorcido e colocado, juntamente com rituais obsoletos e tradições humanas, no lugar do próprio Cristo. O sábado, nesse contexto, deixa de ter sua função e objetivo originais para se tornar parte de um pacote herético que retirava Cristo do centro. Isso justifica a crítica à distorção, mas não implica abolição do mandamento. O problema de Paulo era com os rudimentos do mundo e a idolatria, não com a Torá bem observada.

– Colossenses 2:16-17:

“Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados, porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haveriam de vir; porém o corpo é de Cristo” (Cl 2:16-17).

Esse texto parece ser o mais claro contra o sábado, segundo a interpretação da maioria dos cristãos. Isso porque, diferente dos demais, ele menciona “sábados”. Seria, de fato, um texto que anula o mandamento? Mais uma vez, a interpretação possui falhas e não se atém ao contexto. Para entender, precisamos observar alguns detalhes que geralmente passam despercebidos pelo leitor. Vejamos.

O primeiro ponto importante a se destacar nesse texto é que ele não diz “Ninguém, pois, vos julgue por não guardar o sábado”. Ele afirma: “Ninguém, pois, vos julgue POR CAUSA de […] sábados” (ênfase minha). Esse POR CAUSA pode se referir à guarda, à não guarda ou à maneira como se guarda. Ler apenas esse trecho não nos dá certeza sobre qual é a intenção do apóstolo. Isso é algo que só pode ser descoberto pela leitura do texto em seu contexto. Então, não se pode afirmar, sem análise mais aprofundada, que esse texto está anulando o sábado.

Isso nos leva ao segundo ponto a ser destacado: o contexto. A Igreja de Colossos, tal como muitos acreditam em relação a Igreja da Galácia, estava sendo influenciada por um sistema sincrético de crenças religiosas. Paulo começa o capítulo dizendo que em Cristo estão ocultos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento. Os colossenses, portanto, não deveriam se deixar enganar com raciocínios falsos a esse respeito. Essas palavras parecem ser uma espécie de alerta contra ideias gnósticas ou proto-gnósticas, muito comuns nos primeiros séculos de cristianismo. Geralmente, os grupos gnósticos acreditavam em conhecimentos secretos que santificavam e/ou levavam à salvação. Em contraposição, Paulo afirma que todos os conhecimentos estão em Cristo.

Mais para frente, Paulo relaciona esses raciocínios falsos à tradição de homens (v. 8) e inclui entre os ensinos e posturas dessa tradição o culto aos anjos, o uso de supostas visões como validadores de suas ideias (v. 18) e o ascetismo (vs. 20-23). A insistência de Paulo em dizer que as ideias partiam de tradição e doutrinas de homens faz lembrar muito as palavras de Jesus contra as tradições dos fariseus (Mt 15:1-20), as quais eram contrárias aos mandamentos de Deus.

É dentro desse contexto de alerta contra filosofias mundanas que Paulo afirma que ninguém deveria se deixar julgar em relação a rituais judaicos. O que fica claro é que os crentes de Colossos estavam expostos a filosofias que mixavam preceitos do sistema da Torá com ideias exotéricas e gnósticas. Era um movimento sincrético que via nos rituais um meio de salvação, elevação espiritual e aquisição de conhecimentos secretos. Assim, os preceitos da Torá ganhavam aditivos, novos significados e um nível absurdo de ascetismo. Esse movimento de ideias literalmente acabava por substituir Cristo por uma série interminável de rituais, rebaixando o próprio Jesus a mais um deles e elevando seres intermediários a posições quase divinas.

Desta forma, assim como possivelmente ocorreu entre os hereges da Galácia, o sábado foi maculado pelos hereges de Colossos, tornando-se parte de um sistema sincrético que tirava Cristo do foco. Todo o sistema de crenças do movimento, por mais que pudesse possuir um ou outro ponto verdadeiro, estava distorcido, repleto de ascetismo gnóstico, esoterismo, ritualismo ultrapassado e sem Cristo como centro. Os rituais se tornaram fins em si mesmos. Isso significa que não necessariamente todos os preceitos praticados pelos hereges de Colossos eram errados. O problema era a maneira como eles estavam sendo entendidos e praticados.

Essas considerações encontram bom suporte no seguinte fato: o texto de Cl 2:16-17 não exorta os cristãos a não praticarem aqueles preceitos. Apenas afirma que ninguém deveria fazer julgamentos baseados nessas práticas. E, como já foi dito, o apóstolo também não diz que ninguém deveria julgá-los por NÃO praticarem os tais preceitos. Ele desautoriza julgamentos com base nas práticas, sem especificar se a proibição era para julgamentos sobre quem praticava ou quem deixava de praticar. Isso faz toda a diferença, pois modifica a interpretação do texto. Não é mais possível dizer que o alvo do apóstolo de Paulo é falar sobre a abolição das práticas descritas. Passamos a perceber que o alvo real era criticar quem estava fazendo os julgamentos. Por quê? Porque eram julgamentos baseados em um sistema de crenças distorcido e herético.

Ao que tudo indica, portanto, todo o tema abordado nos dois primeiros capítulos de Colossenses não era a prática de rituais do Antigo Testamento, mas sim os julgamentos que alguns estavam fazendo baseados em distorções da Palavra de Deus e doutrinas de homens. Essas distorções e doutrinas humanas estavam competindo com a supremacia de Cristo como Salvador e Senhor de todos os tesouros do conhecimento. Repare que só no capítulo 2, o apóstolo alerta quatro vezes para que ninguém fosse julgado por esses grupos (vs. 4, 8, 16 e 18).

Para entender melhor essa ideia, vamos imaginar que o apóstolo Paulo existisse nos dias de hoje. Ele fica sabendo que uma das igrejas que ele plantou começa a sofrer influencia de alguns irmãos heréticos. Esses irmãos advogam que o batismo só tem validade se for feito em um rio, que a santa ceia só tem valor se for realizada às noites de quinta, que só tem o Espírito Santo quem fala em línguas estranhas, que devemos jejuar uma vez por semana e que nós devemos andar de túnicas.

Paulo então escreve uma carta para essa igreja exaltando a supremacia de Jesus Cristo e alertando que ninguém deve ser julgado por esses falsos professores. Em dado momento da carta, afirma: “Ninguém, pois, vos julgue por causa de batismo, santa ceia, dom de línguas, jejum ou vestes, porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haveriam de vir; porém o corpo é de Cristo”. Percebe? O foco de Paulo não é falar contra as práticas mencionadas, mas invalidar os julgamentos feitos por esses professores em relação a essas práticas. É o que ocorre no texto real de Colossenses.

Pelo contexto também é possível concluir que os grupos heréticos da Igreja de Colossos possuíam uma visão do sábado tão distorcida quanto a dos mestres fariseus da época de Jesus. Durante todo o seu ministério, Jesus discutiu com os fariseus não a respeito da abolição ou não do sábado, mas a respeito do modo como ele deveria ser guardado. Para os fariseus, fazer curas ou colher frutas num pomar para comer em dia de sábado eram transgressões ao mandamento. Para Jesus, não. O que está em jogo é um julgamento errôneo. Se os grupos heréticos faziam o mesmo, faz sentido que Paulo diga: “Ninguém, pois vos julgue por causa de […] sábados”. Em outras palavras, os colossenses não deveriam dar crédito a hereges que os acusavam, por exemplo, de transgredir o sábado por curar pessoas e fazer outras coisas licitas. E isso valia para qualquer acusação vinda desses grupos. Afinal, a base deles era antibíblica e ascética.

Talvez um dos maiores indícios de que nem Paulo pretendia anular o mandamento do sábado, tampouco os cristãos a quem foram endereçadas suas cartas entenderem desse modo a falta da tremenda controvérsia esperada no Novo Testamento se, de fato, o sábado tivesse sido anulado. O escritor Marvin Moore coloca a coisa nos seguintes termos:

Como você sabe, Paulo ensinava que os gentios não precisavam se circuncidar para aceitar a Jesus e se tornar cristãos. Infelizmente, nem todo mundo concordava com ele. Alguns judeus o perseguiam persistentemente por seu ensino sobre a circuncisão. A certa altura ele chegou a dizer: “Tomara até se mutilassem [castrassem] os que vos incitam a rebeldia” (Gl 5:12). Os judeus na época dos apóstolos atribuíam ainda maior significado ao sábado que à circuncisão. Assim, qualquer mudança no dia de descanso teria provocado uma discussão muito maior que a ocorrida devido à circuncisão, e isso certamente estaria refletido no Novo Testamento. Mas o Novo Testamento não diz absolutamente nada sobre qualquer controvérsia desse tipo.

Moore está certo. Quando o assunto é circuncisão, há reflexos de uma grande discussão envolvendo o assunto em diversas passagens do Novo Testamento, como, por exemplo, Atos 15:1-31, 16:3 e 21:21; Romanos 2:25-29, 3:30, 4:9-12; I Coríntios 7:18-19, Gálatas 2:12, 5:2-11 e 6:12-15, Filipenses 3:2-5, Colossenses 2:11-13, 3:11 e Tito 1:10. Essa recorrência expressa que a questão da circuncisão era muito discutida e motivo de tensão na Igreja. O mesmo não ocorre no que diz respeito à questão do sábado. Isso é um forte indicativo de que o sábado continuou sendo observado normalmente pelos primeiros cristãos e não se tornou pauta de discussão teológica nas primeiras décadas de cristianismo.

– Atos 20:7-8:

No primeiro dia da semana, estando nós reunidos com o fim de partir o pão, Paulo, que devia seguir viajem no dia imediato, exortava-os e prolongou o discurso até a meia-noite. Havia muitas lâmpadas no cenáculo onde estávamos reunidos”.

Essa passagem costuma a ser utilizada por cristãos não-sabatistas que acreditam que o primeiro dia da semana tomou o lugar do sábado, tornando-se o dia santo de descanso e adoração dos cristãos. O texto seria uma prova de que realmente Jesus aboliu o sábado. Contudo, a verdade é que essa passagem acaba indicando justamente o oposto. Vejamos.

Sabe-se que os judeus nunca contaram o dia como contamos hoje. Para os judeus, o final do dia acontece realmente no final do dia, isto é, no pôr do sol. Quando o sol se põe, termina um dia e começa outro. Assim, o que entendemos como sexta-feira à noite é o início do sábado para um judeu; e sábado à noite, o início do primeiro dia da semana, chamado domingo. Este modo de contar o dia não só é mais lógico como é bíblico. Em passagens como Gênesis 1:5, Levítico 23:32 e Lucas 23:54, é possível observar que o escurecer de um dia já era considerado o início do outro.

Tendo isso em mente, só precisamos ligar os pontos. Se a reunião aconteceu na parte escura do primeiro dia da semana (o domingo), se estendendo até a meia-noite, então, na verdade ela ocorreu na noite de sábado. E se aconteceu na noite de sábado, presume-se que os irmãos haviam ficado reunidos durante todo o sábado, adentrando o primeiro dia, já que Paulo viajaria pela manhã.

A versão NHLT (Nova Tradução na Linguagem de Hoje) da Bíblia confirma que a reunião descrita em Atos 20 ocorreu no sábado à noite. Numa edição que tenho em casa dessa versão, podemos ler:

“No sábado à noite, nós nos reunimos com os irmãos para partir o pão. Paulo falou nessa reunião e continuou até a meia noite, pois ia viajar no dia seguinte. No andar de cima, onde estávamos reunidos, havia muitas lamparinas acesas”.

A edição que tenho em casa traz uma pequena nota de roda pé sobre a expressão utilizada “sábado à noite”, dizendo: “Conforme a maneira de contarem as horas do dia, o último dia da semana (sábado) terminava ao pôr do sol; aí começava o primeiro dia da semana (domingo)”.

Então, o texto acaba oferecendo bons indícios de que os irmãos estiveram juntos durante todo o dia de sábado, que era o dia de descanso, e adentraram o domingo. Se o texto se referisse a domingo à noite, como pretendem os cristãos não-sabatistas, então já seria o início da segunda-feira, que já é o segundo dia da semana.

Mas ainda que realmente o texto se referisse ao domingo, isso não é uma prova de que o domingo substituiu o sábado como dia de guarda. Reunir-se em outros dias para adorar a Deus, ouvir uma pregação, conversar sobre as Escrituras, louvar, almoçar com os irmãos, orar, pregar o evangelho e tomar da santa ceia, não anulam o sábado, tampouco fazem de outros dias santos como o sábado. Se há um tempo livre durante a semana para fazer essas coisas além do sábado, não só é lícito que se faça, como Deus se agrada que se faça. Mas isso em nada altera o que Deus disse a respeito do sétimo dia. Não há qualquer lógica nisso.

– I Coríntios 16:1-4:

Quanto à coleta para os santos, fazei vós também como ordenei às igrejas da Galácia. No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de parte, em casa, conforme a sua propriedade, e vá juntando, para que se não façam coletas quando eu for. E, quando tiver chegado, enviarei, com cartas, para levarem as vossas dádivas a Jerusalém, aqueles que aprovardes. Se convier que eu também vá, eles irão comigo”.

A interpretação de muitos cristãos não-sabatistas sobre esse texto é esdrúxula. Para eles, o texto está dizendo que Paulo coletava as ofertas no domingo, o que provaria que os cultos passaram a ocorrer nesse dia. Mas note: Paulo não fala, nessa passagem, sobre culto. Ainda que o encontro de Paulo com os ofertantes ocorresse em um culto, isso também nada prova em relação à santificação do domingo e abolição do sábado. Como já mencionado, não há nenhum problema em ter cultos em outros dias da semana. Isso não confere santidade a um dia, muito menos retira a santidade do sábado.

No entanto, o texto parece dar suporte a outro entendimento. O apóstolo pede para que cada irmão separe, em casa, no domingo, a sua oferta e vá juntando. As palavras que destaquei são para deixar claro o que Paulo tinha em mente. O apóstolo desejava que os irmãos começassem a juntar as ofertas a partir do domingo. Por quê? Provavelmente porque a semana recomeça no domingo. Os coríntios não deviam trabalhar no sábado, como o restante da Igreja Primitiva. Mas no domingo, tudo voltava ao normal. Então, todos deveriam começar a juntar (ou já deixar separado) a partir daquele dia.

– Apocalipse 1:10:

“Achei-me em espírito, no dia do Senhor, e ouvi, por detrás de mim, grande voz, como de trombeta, dizendo: O que vês escreve em livro e manda às sete igrejas: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia” (Ap 1:10-11).

Muitos intérpretes cristãos entendem que a expressão “dia do Senhor” usada por João se refere ao primeiro dia da semana, que passou a ser chamando de domingo. E isso seria uma prova de que a Bíblia santificou o primeiro dia da semana no lugar do sábado. O problema dessa interpretação é que ela é bastante especulativa e forçosa. Em primeiro lugar, não há nenhuma passagem na Bíblia em que o primeiro dia da semana é chamado de “dia do Senhor”. Esse texto mesmo de Apocalipse não diz isso. E fora da Bíblia, o uso do termo para designar o primeiro dia só se tornaria comum anos depois. Assim, é necessário cuidado antes de simplesmente se concluir algo sobre o sentido do termo em Apocalipse.

Em segundo lugar, existem outras hipóteses plausíveis para o significado do termo. João poderia ter em mente o sábado. Não devemos nos esquecer de que ele era judeu natural e seu evangelho exalta o judaísmo como religião (Ap 2:9 e 3:9). E por tudo o que temos visto, não há razão para crer na abolição do sábado. Uma vez que o sábado é abençoado e santificado por Deus na criação (Gn 2:1-3), que Deus nos incentiva a chamá-lo de “Santo Dia do Senhor” (Is 58:13) e que Jesus Cristo toma para si o título de Senhor do Sábado (Mt 12:8, Mc 2:28 e Lc 6:5), não é absurdo supor que João tenha se referido a esse dia dessa forma. No mínimo, é uma hipótese bastante plausível.

Outra hipótese é que João poderia ter em mente o dia escatológico do Senhor. O AT e o NT mencionam o dia da vinda de Jesus e do juízo final sobre os ímpios com o título de Dia do Senhor em diversas passagens, tais como Is 2:12, 13:6-9; Jr 46:10; Ez 13:5 e 30:3; Jl 1:15, 2:1, 11 e 31; Jl 3:14; Am 5:20; Sf 1:7 e 14; Zc 14:1; Ml 4:5; At 2:20; I Co 5:5; II Co 1:14; I Ts 5:2; II Pd 3:10; Ap. 16:14; 6:17. É bem possível que quando João teve sua visão dos eventos escatológicos que descreveu em Apocalipse, ela tenha se dado no cenário do retorno de Cristo, o Grande e Terrível Dia do Senhor. Assim, quando ele diz que se achou em espírito no Dia do Senhor, talvez esteja expressando que foi transportado para o último dia dessa terra, em visão. Isso faz sentido, já que boa parte do que João vê tem a ver mesmo com este grande dia. Então, trata-se de outra hipótese a se considerar.

Em terceiro lugar, mesmo que João estivesse se referindo ao primeiro dia da semana, isso não diz absolutamente nada sobre a suposta santidade desse dia, muito menos sobre a anulação do sábado. Sabemos, por documentos históricos, que os cristãos do fim do primeiro século possuíam o hábito de relembrarem a ressurreição do Senhor no primeiro dia da semana pela manhã. Depois cada um seguia para seus trabalhos. Tal prática não implica a santidade do domingo ou a anulação do sábado. Trata-se apenas de uma boa tradição e nada mais. Um judeu poderia adotá-la sem qualquer risco ou arranhão à sua fé na guarda do sétimo dia. Assim, poder-se-ia postular aqui que tal tradição se difundiu em algumas comunidades e que por metonímia o dia passou a ser chamado de Dia do Senhor, em alusão à ressurreição do Senhor. Assumir, a partir daí, que o termo prova a anulação do sábado e santificação do primeiro dia por Deus é dar um salto gigante.

Sobre este ponto, é interessante salientar que muitos teólogos cristãos não sabatistas entendem que o domingo não se tornou um substituto do sábado no primeiro século. Ele surge, inicialmente, como um dia para relembrar a ressurreição. A construção de uma teologia do domingo como substituto do sábado só ganha corpo muito mais tarde. Esta tese é muito bem defendida, por exemplo, no livro “Do Shabat ao Dia do Senhor”, organizado por D. A. Carson.

Em suma, qualquer que seja a interpretação, o fato é que o texto não serve de prova para argumentar pela abolição da guarda do sábado.

Considerações Finais

De modo semelhante a como vimos no texto sobre os alimentos impuros, as passagens aqui analisadas são frequentemente descontextualizadas pela maioria dos intérpretes cristãos. Isso acontece, como também já explicado no texto anterior, por um pressuposto antijudaico que está entranhado no cristianismo há quase dois milênios. Ele influencia nas interpretações, fazendo com que tudo o que pareça “coisa de judeu” na teologia seja visto com antipatia. Assim, tanto a distinção entre alimentos puros e impuros, como o sábado acabam sendo jogados na lata do lixo. E para isso, a descontextualização é o caminho. Isso ocorre, geralmente, sem que o estudante nem perceba. Mas quando nos comprometemos a estudar profundamente, atentos aos métodos básicos de interpretação, e buscando de fato a verdade, percebemos que o Novo Testamento não se coloca contra a distinção entre alimentos, o sábado, a Torá e o judaísmo no geral.

Por Davi Caldas

Fonte: Reação Adventista

Sobre Weleson Fernandes

Escritor & Evangelista da União Central Brasileira

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