Paulo e a sistematização da teologia cristã

Quando Paulo aceita a Jesus como Messias, ele não deixa de ser judeu. Na verdade, no primeiro século, nenhum dos primeiros cristãos pensou que ao aceitar a Jesus, estavam deixando de lado a religião judaica. Os próprios judeus enxergavam os cristãos como judeus, embora com ideias exóticas. E os pagãos os viam como apenas uma vertente do judaísmo. Absolutamente não se pensava em termos de uma nova religião. A quebra entre o judaísmo tradicional e o judaísmo que viria a se tornar o cristianismo foi um processo que ocorreu gradativamente ao longo de várias décadas.

No entanto, tendo aceitado as novas concepções sobre Jesus, o agora apóstolo Paulo percebeu que elas impactavam o entendimento da Torá. Do que os discípulos ensinaram para Paulo, os pontos que provavelmente mais lhe chamaram a atenção foram:

(1) Jesus foi chamado de “O Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” por João Batista (Jo 1:29-36).

(2) Jesus afirmou, em sua última ceia com os discípulos, que seu sangue derramado instituía a nova aliança (Mt 26:27-28, Mc 14:23-24, Lc 22:20, I Co 11:5).

(3) No momento em que Jesus morreu o véu do templo de Jerusalém se rasgou sozinho do alto a baixo (Mt 27:51, Mc 15:38, Lc 23:45).

Foram provavelmente esses três pontos que levaram o apóstolo a iniciar a uma série de observações e deduções lógicas sobre o tema da relação entre o sacrifício do Messias e o sistema da Torá.

Observação 1: Paulo sabia bem para quê servia o sacrifício de um cordeiro no sistema da Torá: redimir os pecados do homem. Todos os sacrifícios serviam para isso. Eram um símbolo de que o pecado merece a morte porque Deus é santo. Mas por sua clemente misericórdia, Ele providenciava um sistema de substitutos para o ser humano. Se Jesus era chamado de cordeiro de Deus, obviamente os sacrifícios de animais provavelmente eram meramente figuras do seu próprio sacrifício. Isso levava à espantosa dedução de que os sacrifícios de animais nunca valeram nada em si mesmos. Eles apenas apontavam para o sacrifício que realmente era eficaz para tirar o pecado do mundo inteiro.

Havia forte amparo para a dedução de que todo o sistema de sacrifícios da Torá era um símbolo do sacrifício de Jesus. Segundo os discípulos, Jesus havia demonstrado que as Escrituras, desde a Torá até todos os profetas e Salmos, testificavam dele. Esse fato era a tônica das primeiras pregações cristãs, então certamente Paulo recebeu explicação sobre como todas as profecias contidas nas Escrituras sobre o Messias se cumpriram na vida de Jesus. E também sobre como muitos rituais e eventos descritos nas Escrituras eram também tipologias que apontavam para o ministério de Jesus.

Com essas novas informações, o tema do sacrifício de Cristo deve ter pululado na mente de Paulo. O texto que hoje se encontra em Isaías 53 (não havia numeração de capítulos e versículos na época) discorre claramente sobre o sacrifício messiânico em prol dos pecadores. Isaque, filho de Abraão, foi salvo de um sacrifício porque Deus providenciou um cordeiro para morrer em seu lugar (Gn 22:7-14). A oferta de Caim, o fruto de seu próprio trabalho, não foi aceita por Deus, mas a de Abel, um sacrifício animal, agradou ao Senhor (Gn 4:3-5). Em diversas passagens, Deus abominava a oferta de animais que ocorria desacompanhada de um coração puro e se mostrava muito mais interessado em obediência do que sacrifícios (II Sm 15:22-23; Sl 40:6-10, 50:9-23, 51:16-19; Pv 21:3, Is 1:11-17; Jr 6:19-20; Os 4:19, 6:4-6, 8:13, 9:1-17, 14:1-2; Am 5:21-22). Cada item desse era uma peça em um quebra-cabeça. E a imagem que Paulo estava formando era a de que todo o ritualismo referente a sacrifícios havia alcançado o seu sentido e cumprimento supremos no sacrifício de Cristo. Parecia que essa tinha sido sempre a intenção de Deus.

Observação 2: Paulo aprendeu dos discípulos que Jesus profetizara sua própria morte e ressurreição algumas vezes, que rejeitou as propostas de tornar-se um rei terreno e que via seu sacrifício como um benefício em prol do ser humano. O relato da Santa Ceia provavelmente causou grande impacto sobre a mente do novo apóstolo. Como um judeu fiel, fariseu por formação, aprendiz dos grandes mestres de Israel, Paulo conhecia as Escrituras detalhadamente. Poderia citar longos textos de cor e encontrar praticamente todas as passagens que quisesse nos longos rolos das Escrituras da época sem capítulos e versículos. Ele sabia, portanto, a que Jesus se referia quando proclamava uma nova aliança. Era uma profecia do livro de Jeremias. Ela dizia que uma nova aliança seria feita, não como a que fora feita com os hebreus, no Êxodo, mas uma inteiramente nova, na qual as leis de Deus seriam implantadas no coração de seu povo (Jr 31:31-33).

O apóstolo compreendeu como Deus pretendia fazer aquela cirurgia radical de implante de suas leis no coração: através do sacrifício de Cristo. Esse sacrifício limpava o ser humano do pecado. Pecado significa errar o alvo. Quem vive em pecado, transgride as leis rotineiramente. Por isso o sangue de Jesus instituía a nova aliança: ele limpava do pecado, o que, de alguma maneira, dava ao ser humano o poder necessário para viver em conformidade com a lei. Essa nova dedução ficava mais clara no ensino que também recebeu dos discípulos sobre o Espírito Santo. Segundo eles, Jesus havia prometido a descida do Espírito Santo sobre eles algum tempo após sua ascensão. Essa era também uma promessa presente nas Escrituras (Joel 2:28) e Paulo o sabia.

Observação 3: Paulo percebeu que era a aliança instituída por Jesus que tornava possível a salvação. O raciocínio de Paulo era lógico: Cristo era obviamente superior aos animais sacrificados. Os sacrifícios de animais apenas apontavam para o sacrifício de Cristo, que o que realmente salvava. Logo, os sacrifícios de animais não valiam nada em si mesmos. E se era assim, todo o sistema sacrifical da Torá jamais servira para dar salvação, mas apenas para apontar a salvação. Se, portanto, o mundo tivesse acabado antes do sacrifício de Cristo, ninguém seria salvo. Era a morte de Cristo que tornava real, possível, concreta a salvação do ser humano. A salvação antes era promessa. Cristo era o cumprimento da promessa. Portanto, a nova aliança tornava efetiva a salvação.

Observação 4: De posse dessas novas informações sobre Jesus, o evento do véu do templo se rasgando no momento da morte de Jesus ganhava outras cores na mente de Paulo. Se a imagem do sangue de Jesus remetia à nova aliança, o véu do templo separando o Lugar Santo do Lugar Santíssimo remetia claramente à antiga aliança e tudo o que fazia parte dela (como o serviço sacerdotal, os sacrifícios, as festas rituaise o fato de que havia um local do templo no qual apenas o sumo-sacerdote podia adentrar, uma só vez por ano, para fazer a remissão geral dos pecados do povo e a purificação do templo). O véu rasgado, dentro desse contexto de uma nova aliança instituída pelo Messias, parecia ratificar que o velho sistema sacrifical da Torá havia chegado ao seu fim. O verdadeiro sacerdote, o Messias Jesus, estava tomando para si a responsabilidade de purificar todo o povo, incluindo aí os gentios. A antiga aliança estava dando lugar à nova.

Observação 5: Possivelmente o principal fator que impulsionou Paulo a reunir essas deduções num sistema explicativo coeso, numa teologia sistemática original, tenha sido a polêmica da circuncisão, que abalou a Igreja logo em suas primeiras décadas. Enquanto alguns cristãos estavam pregando o evangelho aos gentios sem exigir a circuncisão, grupos de cristãos da Judeia e alguns fariseus conversos começaram a criticar esse procedimento. O raciocínio era simples: se Israel era o povo de Deus e a circuncisão era o rito que incluía uma pessoa nessa aliança, então uma pessoa que quisesse aceitar o Messias deveria ser incluída no povo de Deus através da circuncisão. E a conclusão lógica desse raciocínio era que o converso, uma vez circuncidado, passava a estar dentro (ou debaixo) do sistema da Torá, isto é, dos 613 mandamentos.

Embora parecesse fazer sentido, o raciocínio do partido da circuncisão falhava em um ponto crucial. E é provavelmente aqui que o apóstolo Paulo começa a juntar todas as observações que havia feito até então. O ponto falho consistia em ignorar a existência de uma nova aliança, profetizada pelas Escrituras e instituída por Jesus. Uma vez que esse fato fosse considerado, toda a argumentação pró-circuncisão dos gentios conversos desabava. Questão de lógica: se as Escrituras Sagradas profetizavam uma nova aliança, isso significava um descarte da velha. Ora, se a circuncisão era um rito que incluía as pessoas na antiga aliança, não faria sentido utilizá-la após o seu descarte. Que sentido teria incluir um gentio numa aliança que já não mais existe para só depois inseri-lo na aliança vigente?

Implicações

A dedução de Paulo é relativamente simples, mas as implicações decorrentes dela são muito mais amplas do que se pode perceber à primeira vista. No momento em que Paulo conclui que há uma nova aliança e que a circuncisão não é mais obrigatória, ele está também dizendo que (1) Israel não é mais povo específico de Deus e (2) o sistema dos 613 mandamentos tornou-se obsoleto. Sobre a primeira implicação, ela ficava clara no fato de que se a circuncisão não era mais obrigatória, então não era necessário ninguém ser incluído na nação israelita. Ao mesmo tempo, o rito de inclusão exigido pela nova aliança, o batismo, não fazia o converso parte de Israel, mas parte da Igreja ou, de um Israel espiritual, multiétnico. Israel perdia o status de nação exclusiva de Deus.

Sobre a segunda implicação, note o seguinte: Paulo não estava se colocando contra a existência de mandamentos divinos ou contra todos os mandamentos divinos da Torá, mas sim contra a vigência desse sistema composto por 613 mandamentos. O que precisa ser sublinhado aqui é que, ao negar a necessidade de circuncisão, o que era um único mandamento, automaticamente o sistema todo estava sendo negado. Para um judeu fiel, mesmo que alguém aceitasse 612 mandamentos e os seguisse, excluindo apenas um, não se poderia dizer que essa pessoa seguia o sistema da Torá. Ela seguia algo muito parecido, mas não a Torá.

Paulo sabia disso e tal visão se coadunava com a teologia das duas alianças. A teologia das duas alianças gerava dois contextos históricos e dois sistemas distintos para cada um desses contextos. No contexto da antiga aliança vigorava o sistema da Torá, formado pelos 613 mandamentos. No contexto da nova aliança, inaugurado pelo sacrifício e a ressurreição de Cristo, muitos mandamentos da Torá ainda eram válidos, mas não todos, o que significava que o sistema de 613 mandamentos estava cancelado. O que quer que vigorasse agora na nova aliança já não poderia mais ser entendido como o sistema da Torá, ainda que boa parte dele fosse proveniente da própria Torá. Tratava-se agora de outro sistema.

A simples constatação de que na nova aliança se iniciava outro sistema não é suficiente para concluir o que havia ficado da Torá e o que havia prescrito. Como já foi dito, se apenas um mandamento tivesse prescrito, o sistema já não seria o mesmo. Então, Paulo ainda precisava deixar claro o que havia mudado e o que havia ficado. Ou, para ser mais preciso: do que era feito o novo sistema? Bom, de acordo com o encadeamento lógico baseado nas Escrituras que Paulo seguiu, o que mudava da Antiga para a Nova Aliança eram três pontos: (1) a circuncisão, que perdia o sentido porque era símbolo exclusivo da antiga aliança(a qual deu lugar à nova aliança); (2) o sistema sacrificial, que perdia o sentido após o sacrifício de Cristo; (3) a noção de Israel como a nação de Deus, já que a nova aliança instituía um Israel espiritual multiétnico.

O ponto número dois implica ainda que tudo o que possuía relação direta com o sistema sacrificial também perdia o seu sentido. Assim, eventos ritualísticos como a Páscoa e o Dia da Expiação, inteiramente dependentes dos sacrifícios de animais, já não tinham mais razão de ser. Da mesma forma, os serviços realizados pelos sacerdotes deixavam de ser necessários. Já o ponto número três implica também que as leis civis da Torá deixavam de ter qualquer relevância do ponto de vista religioso, já que as mesmas se relacionavam a um contexto em que Israel ainda era a nação exclusiva de Deus. Tendo ela perdido esse status, as leis civis deixavam de ser uma preocupação religiosa, o que gerava ali uma separação entre as esferas da religião e do Estado.

A questão do sábado

Neste momento, precisamos nos perguntar em que lugar entra o mandamento da guarda do sábado na teologia das duas alianças. Um texto do próprio Paulo pode nos auxiliar nisso. Em Gálatas 3:15-19, o apóstolo argumenta que a promessa de justificação dos gentios fora feita a Abraão 430 anos antes da promulgação da Torá. Desta maneira, a Torá, que também fora dada por Deus (como instrumento temporário) não poderia ser contrária à promessa feita anteriormente, revogando-a. E a promessa, por sua vez, não era proveniente da Torá. Ora, da mesma forma, a benção e a santificação sobre o sábado foram feitas antes da promulgação da Torá (Gn 2:1-3). Por conseguinte, usando do mesmo raciocínio, nem a instituição do sistema da Torá, nem o seu término, poderiam anular a benção e a santificação de Deus sobre o sábado feita 2500 anos antes.

Note que há uma distinção aqui entre o sábado e a circuncisão. Embora a circuncisão também tenha sido originada antes da Torá, sua única função era servir de símbolo da aliança de Deus com a nação que surgiria a partir de Abraão. Uma vez que Israel era uma ferramenta temporária nos planos de Deus, evidentemente a circuncisão também se tornava um sinal temporário que iria se findar juntamente com a noção de Israel como povo exclusivo de Yahweh. O sábado, por outro lado, recebera benção e santificação de Deus por conta do término da criação e não por conta da existência de Israel.

A primeira conclusão a que chegamos, portanto, é que o sábado não poderia ter sido anulado por ser um símbolo exclusivo da antiga aliança. Embora este dia tenha servido também, na antiga aliança, para distinguir o povo israelita dos demais povos, isso se dava por uma questão circunstancial: todos os povos haviam abandonado Yahweh. Era natural, portanto, que só os israelitas (e prosélitos entre o povo) guardassem o sábado, o que acabava por distingui-los. Da mesma maneira, o monoteísmo e a adoração ao Deus Criador eram dois sinais que distinguiam os israelitas dos demais povos, já que todo o mundo seguia o politeísmo e adorava deuses-criaturas.Uma crença ou prática servir de sinal de distinção na antiga aliança não implica necessariamente que na nova aliança ela é anulada. Fosse esse o caso, o evangelho teria suplantado a monoteísmo e a reverência no Deus Criador. O que precisa ser observado é se determinado sinal de distinção tem sua existência exclusivamente relacionada à antiga aliança. Esse é o caso da circuncisão, mas não do sábado.

No encadeamento lógico descoberto e sistematizado por Paulo o sábado também não se enquadra como um elemento do sistema sacrificial. Ao contrário das festas fixas e dos serviços sacerdotais, que estavam intimamente ligados à sacrifícios de cordeiros, bodes e rolinhas, o sábado poderia manter seu sentido pleno sem o sistema. Seu princípio era o de descanso físico, mental e espiritual em pelo menos um dia da semana, o que qualquer médico, psicólogo, psiquiatra e líder espiritual confirmará ser importante para a saúde do ser humano como um todo. Aqui é importante ressaltar que a benção e a santificação do sábado é feita antes mesmo da existência de pecado, o que destrói a possiblidade de que o dia tivesse sido criado como figura temporária do sacrifício de Cristo. Todos as figuras desse gênero só foram instituídas, evidentemente, após o pecado, a maioria na própria Torá.

Em suma, a segunda conclusão a que chegamos é que, enquanto as festas fixas de Israel e o seu serviço sacerdotal são esvaziados de sentido com o fim do sistema de sacrifícios, o sábado permanece com sentido e valor prático sem o sistema. Isso ocorre porque sua função primordial não tem relação com o simbolismo do sacrifício messiânico e sua origem é anterior à Torá, tendo sido abençoado e santificado antes da promulgação do que geralmente chamamos de Lei.

Ainda seguindo o encadeamento lógico de Paulo, podemos perceber que o sábado não tem ligação exclusiva também com a noção de Israel como nação de Deus. O fato de que o mandamento sabático possuía âmbito civil não serve para concluir que o fim da teocracia israelita tornou o sábado obsoleto. Afinal, diversos outros mandamentos que permanecem na nova aliança também possuíam âmbito civil. Não matar, não roubar, não adulterar, não agredir os pais, não blasfemar contra Deus e não praticar feitiçaria são apenas alguns exemplos de mandamentos válidos hoje que também eram leis civis em Israel.

O que precisa ser observado, portanto, não é o caráter civil do mandamento do sábado na antiga aliança, mas sim se sua origem e função estão ligadas à teocracia israelita. E como já vimos anteriormente, não é o caso. O sábado é abençoado e santificado antes de haver nação israelita e sua função de prover descanso físico, mental e espiritual ao ser humano faz pleno sentido fora da teocracia de Israel. Não é preciso, aliás, crer em Israel como povo exclusivo de Deus ainda hoje para chegar à conclusão de que é bom para o homem possuir um dia de descanso voltado para Deus. Tampouco seria necessário que Deus mantivesse uma nação exclusiva para que o dia abençoado e santificado por ele antes do pecado pudesse ser usado pelas pessoas para recarregarem as baterias e darem honras ao Criador. A falta de ligação lógica, direta e exclusiva do sábado com a noção de Israel como povo exclusivo de Deus nos leva à terceira conclusão: o sábado não é afetado também pelo fim da teocracia judaica.

Textos polêmicos do Novo Testamento

Não obstante, há textos no Novo Testamento que têm sido utilizados para sustentar a tese de que o sábado foi sim anulado. Os principais estão em Romanos 14:5-6, Gálatas 4:8-11 e Colossenses 2:16. Já analisamos esses textos em outras postagens, mas vamos retomar essas análises aqui.

– Romanos 14:5-6

O capítulo 14 de Romanos vem tratando de questões ligadas a opiniões. É o que Paulo diz logo no início do capítulo (v. 1). O primeiro exemplo dado é o de irmãos que só comem legumes. Como se sabe, não há nenhum mandamento (nem no Antigo, nem no Novo Testamento) que ordene uma dieta baseada apenas em legumes. A discussão não continha um lado certo e um lado errado do ponto vista moral. Por isso, o apóstolo diz que cada um crê de um jeito e que um não deve julgar o outro por isso (vs 2 e 3). É nesse contexto que deve ser entendido o texto de Rm 14:5-6. Lemos:

“Um faz diferença entre dia e dia; outro julga iguais todos os dias. Cada um tenha opinião bem definida em sua própria mente. Quem distingue entre dia e dia para o Senhor o faz; e quem come para o Senhor come, porque dá graças a Deus; e quem não come para o Senhor não come e dá graças a Deus”.

Não há margem aqui para que se sustente que o sábado estava em jogo nesse texto. O que estava em jogo eram opiniões e não leis. Possivelmente vegetarianismo e dias fixos de jejum eram os temas causadores de discórdia. A observação ou não era irrelevante para o apóstolo. O tom brando e flexível de Paulo evidencia que nenhum ponto legal ou moral estava em discussão. A menção que Paulo faz, mais à frente, à abstenção de carne e vinho (Rm 14:21), que também não é mandamento, ratifica que o tema abordado não se relacionava à preceitos bíblicos, não podendo se referir, portanto, ao sábado.

– Gálatas 4:8-11

O texto de Gálatas 4:8-11 se direciona não a meros judaizantes, como é o caso da maior parte da carta, mas a sincretistas. Paulo afirma que seus leitores serviam a deuses falsos antes de conhecerem o evangelho e que agora estavam retornando a rudimentos fracos e pobres que já haviam seguido (Gl 4:8-9). Então, de alguma maneira o ensino de mestres judaizantes (seguidores do sistema completo da Torá) estava levando os gálatas a se voltarem para costumes relacionados à vida idolátrica anterior. É nesse contexto que ele afirma: “Guardais dias, e meses, e tempos, e anos. Receio de vós tenha eu trabalhado em vão para convosco”. Isso levanta uma questão: como a observância da Torá estava levando os gálatas para rudimentos do paganismo? Ou ainda: como os rudimentos do paganismo poderiam ser vistos como iguais aos rudimentos da antiga aliança?

A resposta não é difícil. Os gálatas estavam caindo no erro de abraçar rituais como meios de salvação. Isso os levou a aceitarem os rituais da antiga aliança e os associarem a antigos rituais pagãos, revestindo os últimos de significado judaico-cristão. Crenças astrológicas, exotéricas e de religiões sazonais, as quais possuem muitos datas santas, se mesclaram com a mensagem do evangelho e os preceitos da Torá. Assim, Paulo trata o problema da insistência no sistema da Torá juntamente com sua face sincrética nessa passagem. Por isso aceitar o sistema da Torá os colocavam de volta nos rudimentos do paganismo.

Quando se leva isso em consideração, percebemos que não necessariamente Paulo está incluindo o sábado no meio desses dias, meses, tempos e anos que estavam sendo guardados. É mais natural que o apóstolo esteja se referindo à preceitos judaicos que tinham relação com o sistema sacrificial e a teocracia judaica, e a preceitos das religiões pagãs que estavam sendo associados ao conjunto de rituais judaicos.O que fica claro é que Paulo está criticando não a existência de dias santos, mas um conjunto de rituais que não tinha validade por unir elementos obsoletos da religião judaica com elementos falsos das religiões pagãs, levando os gálatas aos mesmos rudimentos mundanos que seguiam quando no paganismo.

Sim, é possível que o sábado esteja incluído na crítica de Paulo, mas aqui observamos novamente que a crítica de Paulo se centrava em um sistema sincrético de rituais que unia preceitos judaicos antigos à preceitos pagãos falsos. Assim, todo o sistema possuía uma base corrompida, o que tornava corrompidos todos os seus elementos. O sábado assim deixa de ter sua função e objetivo originais para se tornar parte de um pacote herético, agarrado ao sistema de 613 mandamentos e a ideias pagãs.

Tal interpretação está coerente com o contexto imediato da passagem. Note que o apóstolo Paulo associa diretamente o sistema “dias-meses-tempos-anos” à rudimentos que escravizavam os gálatas quando eles serviam a outros deuses. Então, se o sábado se incluía nesse sistema corrompido, ele estava de alguma forma associado a rudimentos escravizadores ligados à idolatria. Isso descaracterizava o mandamento, distorcendo seu sentido. O sábado, se de fato ainda estava vigente, não poderia ser associado à guarda de todo o sistema da Torá ou à preceitos mundanos.

– Colossenses 2:16-17

O contexto de Colossenses 2 é semelhante ao contexto de Gálatas 4. Havia também um sistema sincrético de crenças que estava influenciando muitos irmãos. Paulo começa o capítulo dizendo que em Cristo estão ocultos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento. Assim, os colossenses não deixariam se enganar com raciocínios falsos a esse respeito. Essas palavras parecem ser uma espécie de alerta contra ideias gnósticas (ou proto-gnósticas), muito comuns nos primeiros séculos de cristianismo. Geralmente, os grupos gnósticos acreditavam em conhecimentos secretos que santificavam e/ou levavam à salvação. Em contraposição, Paulo afirma que todos os conhecimentos estão em Cristo.

Mais para frente, Paulo relaciona esses raciocínios falsos à tradição de homens (v. 8) e inclui entre os ensinos e posturas dessa tradição o culto aos anjos, o uso de supostas visões como validadores de suas ideias (v. 18) e o ascetismo (vs. 20-23). A insistência de Paulo em dizer que as ideias partiam de tradição, preceitos e doutrinas de homens faz lembrar muito as palavras de Jesus contra as tradições dos fariseus (Mt 15:1-20) que ele entendia como contrárias aos mandamentos de Deus.

É dentro desse contexto de alerta contra filosofias mundanas que Paulo dirá: “Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados, porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haveriam de vir; porém o corpo é de Cristo” (Cl 2:16-17). O que fica claro é que, à semelhança do contexto de Gálatas, os crentes de Colossos estavam expostos a filosofias que mixavam preceitos do sistema da Torá com ideias exotéricas e gnósticas. Era um movimento sincrético e que via também nos rituais um meio de salvação, de elevação espiritual e de aquisição de conhecimentos secretos. Assim, os preceitos da Torá ganhavam aditivos, novos significados e um nível absurdo de ascetismo. Esse movimento de ideias literalmente acabava por substituir Cristo por uma série interminável de rituais, rebaixando o próprio Cristo a apenas mais um deles, e elevando seres intermediários a posições quase divinas.

Desta forma, assim como possivelmente ocorreu entre os hereges da Galácia, o sábado foi maculado pelos hereges de Colossos, tornando-se parte de um sistema sincrético que tirava Cristo do foco. Todo o sistema de crenças do movimento, por mais que pudesse possuir um ou outro ponto verdadeiro, estava distorcido, repleto de ascetismo gnóstico, esoterismo, ritualismo ultrapassado e sem Cristo como centro. Os rituais se tornaram fins em si mesmos. Isso significa que não necessariamente todos os preceitos praticados pelos hereges de Colossos eram errados. O problema era a maneira como eles estavam sendo entendidos e praticados.

Essas considerações encontram bom suporte no seguinte fato: o apóstolo Paulo exorta os irmãos a não praticarem aqueles preceitos. Apenas afirma que ninguém deveria fazer julgamentos baseados nessas práticas. O apóstolo também não diz que ninguém deveria julgá-los por NÃO praticarem os tais preceitos. Ele desautoriza julgamentos com base nas práticas, sem especificar se a proibição era para julgamentos sobre quem praticava ou quem deixava de praticar. Isso faz toda a diferença, pois modifica a interpretação do texto. Não é mais possível dizer que o foco de Paulo, no texto, é falar sobre a abolição das práticas descritas. Passamos a perceber que o foco real de Paulo era criticar quem estava fazendo os julgamentos, em função do conteúdo dos julgamentos, os quais eram explicitamente distorcidos e heréticos.

Ao que tudo indica, portanto, todo o tema abordado nos dois primeiros capítulos de Colossenses não era a prática de rituais do Antigo Testamento, mas sim os julgamentos que alguns estavam fazendo baseados em distorções da Palavra de Deus e doutrinas de homens. Essas distorções e doutrinas humanas estavam competindo com a supremacia de Cristo como Salvador e Senhor de todos os tesouros do conhecimento. Repare que só no capítulo 2, o apóstolo alerta quatro vezes para que ninguém fosse julgado por esses grupos (vs. 4, 8, 16 e 18).

Para entender melhor essa ideia, vamos imaginar que o apóstolo Paulo existisse nos dias de hoje. Ele fica sabendo que uma das igrejas que ele plantou começa a sofrer influencia de alguns irmãos heréticos. Esses irmãos advogam que o batismo só tem validade se for feito em um rio, que a santa ceia só tem valor se for realizada às noites de quinta, que só tem o Espírito Santo quem fala em línguas estranhas, que devemos jejuar uma vez por semana e que nós devemos andar de túnicas.

Paulo então escreve uma carta para essa igreja exaltando a supremacia de Jesus Cristo e alertando que ninguém deve ser julgado por esses falsos professores. Em dado momento da carta, afirma: “Ninguém, pois, vos julgue por causa de batismo, santa ceia, dom de línguas, jejum ou vestes, porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haveriam de vir; porém o corpo é de Cristo”. Percebe? O foco de Paulo não é falar contra as práticas mencionadas, mas invalidar os julgamentos feitos por esses professores em relação a essas práticas. É o que ocorre no texto real de Colossenses.

Uma objeção que pode ser feita a essa interpretação é que Paulo faz uso da terminologia sombras para se referir às práticas. A mesma terminologia é usada na epístola aos Hebreus 8:6 e 10:1 para se referir aos sacrifícios de animais oferecidos pelos sacerdotes do Antigo Testamento. Uma vez que o sistema sacrifical era uma sombra de Cristo e foi abolido, logo tudo o que era sombra de Cristo também foi abolido. E se o sábado estava incluído entre as sombras, foi anulado também.

O argumento peca por pressupor que o termo “sombras” caracteriza algum preceito que um dia perde a importância e deve desaparecer por não ser o objeto real. O pressuposto não é necessariamente verdade em todos os casos. No caso do sistema sacrificial, a sombra perde a importância porque deixa de fazer sentido. Os sacrifícios de animais não tinham nenhum valor prático em si mesmos. As festas que se relacionam intimamente com esses sacrifícios perdem, por consequência, a razão de ser também. Mas esse não é o caso do sábado. O dia permanece tendo valor prático para descanso espiritual, mental e físico, bem como para relembrar semanalmente que Deus criou o mundo. Seu objetivo original não se perde com o fim dos sacrifícios, da antiga aliança e teocracia israelita.

Da mesma forma, sombras como o batismo, a santa ceia e o próprio casamento (que é um símbolo da união entre Deus e o ser humano) permanecem intactas após o sacrifício de Cristo, pois não estão relacionadas aos preceitos que perderam a validade, possuindo ainda valor e sentido práticos. O sábado pode ser considerado uma sombra de Cristo por simbolizar descanso em Deus, liberdade do pecado e da escravidão. Mas não deixa de ter seu valor prático e seu sentido prático original: prover descanso ao homem e lembrar Deus como Criador. Isso não muda após a cruz.

Ao utilizar a terminologia das sombras, portanto, o que Paulo faz é apenas enfatizar a supremacia de Cristo em relação a todas as sombras. Independente de elas serem ainda válidas ou não (Paulo não discute isso), elas só encontravam sentido à luz de Cristo (em quem estão ocultos todos os conhecimentos), nunca em filosofias humanas. Assim, os julgamentos dos falsos mestres de Colossos não deveriam ser ouvidos.

Conclusão

Fizemos todo o percurso lógico do apóstolo Paulo na sua sistematização da teologia da nova aliança. Descobrimos de onde Paulo retirou seus conceitos e como chegou até suas conclusões sobre o sistema da Torá, o que se tornou obsoleto da antiga aliança e o que permaneceu na nova. Entendemos qual era a sua relação com o judaísmo e o que ele queria dizer com suas expressões. Finalmente, pudemos concluir que em todo o seu encadeamento lógico, o sábado não encontrou anulação. A evidência teológica testifica que o sábado permaneceu vigente. E a evidência histórica testifica que, pelo menos nas primeiras quatro décadas de cristianismo, os cristãos permaneceram guardando o sábado e vendo-o como santo.

Por Davi Caldas

Fonte: Reação Adventista

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Escritor & Evangelista da União Central Brasileira

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