Diz o texto: “O pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu”.
1º – Porque a noção de um “espírito” equivalente a uma entidade imortal com que o homem foi dotado na criação (“alma”) parte duma premissa não demonstrada, pois não ocorre qualquer informação nas Escrituras de que tal componente realmente integrasse o indivíduo originalmente criado.
Aliás, ocorre uma discussão entre dualistas “dicotomistas” e “tricotomistas”, quanto a se as designações de “alma” e “espírito” se equivalem ou têm sentidos diferenciados no que tange à condição de vida e morte.
2º – Porque quem ler o capítulo inteiro de Eclesiastes 12 perceberá a linguagem pungente em que o sábio se refere ao fim da vida de todos, antecedido pela penosa experiência da velhice até o ponto em que “o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus que o deu” (vs. 7). O vs. 6 descreve o fim da vida em alegorias variadas e linguagem bem gráfica: “antes que se rompa o fio de prata, e se despedace o copo de ouro, e se quebre o cântaro junto à fonte, e se desfaça a roda junto ao poço”.
3º – Porque a própria advertência a todos para que o Criador seja lembrado, antes que a morte chegue sem que Ele seja assim tido em conta, não dá margem a qualquer noção de intenção do autor em falar do espírito só dos salvos, e sim de todos os seres humanos.
4º – Porque a morte de todos logicamente significa que Deus, em quem “vivemos, e nos movemos, e existimos” (Atos 7:28) retira esse dom da vida. O “fôlego” é reintegrado ao espaço, o corpo retorna ao pó, e a máquina humana cessa de funcionar.
Se a interpretação dos imortalistas é no sentido de que “o espírito” que volta vai para junto de Deus como entidade consciente, então temos a pregação da salvação universal! TODOS os espíritos de TODOS os que são pó (a raça humana inteira) retornaria para Deus! O texto não implica absolutamente separação de salvos e perdidos. . . .
5º – Porque a passagem em discussão deixa implícito que o espírito retorna a Deus no instante do falecimento e esse “espírito” deriva de ruach, no hebraico. Esta palavra tem vários significados dentre os quais “respiração”, “vento”, “vitalidade”, “coragem”, “mente”, “temperamento”, “sede das emoções”, etc. Todavia, em nenhuma das 379 ocorrências de seu uso no Velho Testamento ruach denota uma entidade separada capaz de existência consciente à parte do corpo físico.
6º – Porque se pode depreender que esse “espírito” é o fôlego citado em Gên. 2:7 pelo que diz o mesmo livro de Eclesiastes poucos capítulos antes:
“É por causa dos filhos dos homens, para que Deus os prove, e eles vejam que são em si mesmos como os animais. Porque o que sucede aos filhos dos homens, sucede aos animais; o mesmo lhes sucede: como morre um, assim morre o outro, todos têm o mesmo fôlego de vida, e nenhuma vantagem tem o homem sobre os animais; porque tudo é vaidade. Todos vão para o mesmo lugar; todos procedem do pó, e ao pó tornarão. Quem sabe que o fôlego de vida dos filhos dos homens se dirige para cima, e o dos animais para baixo, para a terra?” (Ecl. 3:18-21)
Esta passagem é de clareza cristalina e o tema discutido é exatamente o mesmo—o fim da vida humana, comparável ao dos animais, pois o “fôlego de vida” de homens e animais é o mesmo, o que é claramente exposto no relato da Criação, em Gên. 1:30:
“E a todos os animais da terra e a todas as aves dos céus e a todos os répteis da terra, em que há fôlego de vida . . .”.
O termo para “fôlego de vida” é o mesmo, nephesh.
7º – Porque o paralelismo entre o “espírito de Deus” e “o sopro do Todo-poderoso”, que se acha com freqüência na Bíblia (Isa. 42:5; Jó 27:3; 34:14-15), sugere que os dois termos são usados intercambiavelmente. Ambos fazem referência ao dom da vida concedido por Deus a Suas criaturas. Lemos em Jó 33:4:
“O espírito [ruach] de Deus me criou, e o sopro [neshamah] do Todo-poderoso me concede vida”.
O Espírito de Deus que concede vida é descrito pela sugestiva imagem do “fôlego de vida” em vista de que a respiração é uma manifestação tangível de vida. Uma pessoa que não mais respira está morta. Jó declara:
“Enquanto estiver em mim o meu fôlego [neshamah], e o espírito [ruach] de Deus estiver em minhas narinas; meus lábios não falarão a falsidade” (Jó 27:3).
Certamente ninguém imagina que a suposta “alma imortal” humana permaneça nas narinas da pessoa, entrando e saindo no ato de inspirar, expirar. . . .
O “fôlego” humano e o “espírito” divino são equiparados, em razão de que respirar é visto como uma manifestação do poder sustenedor do Espírito de Deus. Também no Salmo 104:29 e 30 temos uma descrição de como os próprios animais morrem quando Deus lhes corta a respiração.
8º – Porque também outros paralelismos da linguagem poética de Jó ajudam-nos a ver como “espírito” e “fôlego” são a mesma coisa:
“Se ele pusesse o seu coração contra o homem, e recolhesse para si o seu espírito e o seu fôlego, toda a carne juntamente expiraria, e o homem voltaria para o pó.” (Jó 34:14,15).
Isto não é uma distinção no sentido em que alguns apresentam, e sim paralelismo. É um recurso comum na língua hebraica, como no Salmo que diz:
“Lâmpada para os meus pés e a Tua palavra, e luz para os meus caminhos”. Aliás, o texto fala exatamente dentro do pensamento já exposto em Ecl. 12:7—o espírito e fôlego de TODOS os seres humanos, sem definir-se salvos e perdidos.
O texto citado de Salmos ensina que a Palavra de Deus é, ao mesmo tempo, lâmpada e luz para os que a ouvem e a colocam em prática. Isso mostra que a lâmpada e a luz são a mesma coisa? Claro que não. Da mesma forma, o espírito e o fôlego são postos lado-a-lado em Jó 34:14, mas deixados em distinção mútua; não é possível confundir os dois.
Isto posto, qual seria a tradução correta de Jó 34:14? Basta ler o contexto e ver o uso constante do recurso do paralelismo. Os dois versos juntos assim rezam:
“Se Deus . . . para Si recolhesse o Seu espírito e o Seu sopro, toda a carne juntamente expiraria, e o homem voltaria para o pó”.
A idéia é exatamente a mesma de Ecl. 12:7—o pó [de todos os seres humanos] volta à terra, e o espírito [de todos, até dos animais (3:19)] é “recolhido” por Deus, não para ficar com Ele no céu, pois a Bíblia não define assim a vida após a morte, nem ensina o universalismo, de TODOS os homens irem para junto de Deus na morte. Evidentemente neste caso temos outra ocorrência de paralelismo sinônimo, nada mais do que isso.
9º – Porque nada indica que o “espírito”, concedido por Deus ao homem no princípio, é o mesmo “sopro”, ou “fôlego de vida”, e tem consciência depois da morte. A Bíblia não autoriza tal interpretação, nem neste verso, nem em qualquer outro. Pelo contrário, o quadro que se ressalta do que o salmista nos apresenta quando esse “espírito” é recolhido é a falta de consciência após a morte:
“Não confieis . . . nos filhos dos homens . . . Sai-lhes o espírito e eles tornam ao pó; nesse mesmo dia perecem todos os seus desígnios [pensamentos-KJV; “pensamientos”—Reina Valera, em espanhol] (Salmo 146: 3 e 4).
Muitos outros textos falam claramente da condição de inconsciência do homem na morte: Sal. 6:5; 30:9; 88:10; 115: 17; Ecl. 9: 5, 6; Isa. 38: 18, 19; 1 Cor. 15: 16-19, 32.
10º – Porque a esperança de Jó de vida eterna centralizava-se na ressurreição, não em ir para a glória quando morresse e sua alma para lá se dirigisse:
“Porque eu sei que o meu Redentor vive, e por fim se levantará sobre a terra. Depois, revestido este meu corpo da minha pele, em minha carne verei a Deus. Vê-lo-ei por mim mesmo, os meus olhos o verão, e não outros”. Jó 19: 25-27.
Que a grande esperança de vida eterna se centraliza, não na morte com ida de uma alma para o céu, mas na ressurreição, fica por demais claro ainda os seguintes textos: Sal. 17:15; João 6:39, 40; Lucas 20:37, 38; João 11: 23, 25; Fil. 3:11; 1 Tes. 4:14, 17; Mat. 16:27 (cf. Isa. 40:10); 2 Tim. 4:7, 8).