O evangelho carnavalesco

Na semana do carnaval de 2019, um pastor postou um texto com o título “Conselhos de um pastor para o Carnaval”. Ele apareceu em meu feed de notícias esses dias, acredito que por conta d proximidade do carnaval 2020. Todos os conselhos são para quem vai, de fato, participar da festa. Cito alguns: “Celebre com alegria e moderação, todo excesso é prejudicial ao ser”; “Faça sexo seguro, use preservativos, a promiscuidade dilui a alma e mata o prazer”; “No motel, observe a higiene, com muita rotatividade, a qualidade do serviço cai”. Ao fim dos conselhos, o pastor começa a falar brevemente contra o que ele considera hipocrisia, farisaísmo, legalismo e coisas do tipo. O texto inteiro pode ser lido neste link. Vou expor trecho por trecho e fazer algumas análises.

“Você esperava que eu dissesse que carnaval é uma festa do demônio, que você vai para o inferno se brincar, que as celebrações de Momo são um culto ao paganismo, as drogas, ao sexo frívolo, aos destemperos? Meu maninho e minha maninha, a religião é uma mordaça do ser, e a liberdade sem limites também, porque impede o indivíduo de dizer: ‘isso sim’, e ‘isso não’”.

Para tentar entender o que o pastor quer dizer nesse trecho, precisamos saber o que ele quer dizer com o termo “religião”. Ele não define aqui, mas podemos inferir. A palavra religião tem pelo menos duas acepções. A mais antiga e clássica é que religião é um conjunto de crenças e doutrinas a respeito de divindades, da identidade do ser humano, de nossos direitos e deveres, e de nosso destino. Existem várias religiões, cada qual com as suas crenças e doutrinas. O conjunto de crenças e doutrinas que inclui o monoteísmo, a Trindade, a divindade e messiandade de Jesus, a salvação pela graça mediante a fé, o batismo, a Bíblia como livro sagrado, etc. é chamado de religião cristã. Logo, dentro dessa acepção, o pastor em questão é um religioso que segue a religião cristã.

A acepção mais moderna é diferente. Ela encara o termo religião como uma postura legalista, paranóica, julgadora, míope, fria e hipócrita. Por legalismo, entenda-se aqui: crer que a salvação se dá através da guarda de leis e a melhor maneira de se santificar é criando regras e mais regras para seguir e impor sobre os outros. Assim, um religioso seria basicamente algo próximo do que eram os fariseus que condenaram Jesus à cruz, no primeiro século. Nesta acepção, ser religioso é algo ruim e o cristão não só pode, como deve rechaçar a “religião”. Daí muitos cristãos dizerem: “Eu não prego religião, eu prego Jesus”, ou “O evangelho não é religião”, ou “Jesus jamais pregou religião, mas o amor”.

Bom, qual acepção usar? Embora eu não seja muito fã de discutir semântica, é bom citar o alerta de C. S. Lewis, na introdução de “Cristianismo Puro e Simples”. Ele conta que o termo inglês “gentleman” se referia, originalmente, a um homem que possuía um brasão e era senhor de terras. Passou a se referir a um homem cortês. Assim, uma palavra que descrevia um fato, começou a descrever um elogio. Lewis continua:

“Quando uma palavra deixa de ter valor descritivo e passa a ser um mero elogio [ou ofensa], ela não nos esclarece sobre o objeto, só denota o conceito que o falante tem dele. […] Um gentleman, agora que o velho sentido prosaico e objetivo da palavra deu lugar ao sentido ‘espiritualizado’ e ‘refinado’, quase sempre significa apenas uma pessoa do nosso agrado. O resultado é que hoje gentleman é uma palavra inútil. Já tínhamos no vocabulário palavras suficientes que expressam aprovação; não precisávamos de mais uma. Por outro lado, se alguém quiser utilizar a palavra em seu velho sentido (numa obra histórica, por exemplo), não poderá fazê-lo sem dar explicações. Ela já não serve para esse fim”.

Para além disso, do ponto de vista da guerra semântica (falei sobre isso aqui), permitir que roubem as palavras “religião” e “religioso” de suas acepções originais faz com que pessoas fieis aos preceitos de uma religião sejam postas no mesmo saco de pessoas que agem como fariseus. Afinal, ambas são “religiosas”, embora em sentidos distintos. A confusão semântica favorece a confusão conceitual. E isso é tudo o que o Diabo quer.

Mas o foco aqui não é discutir semântica. Queremos entender o que o pastor quis dizer apenas. E aqui está problema. Se ele diz que “a religião é uma mordaça do ser”, deve estar falando da religião como sinônimo de legalismo, farisaísmo, etc. Ele, como cristão, não poderia falar assim da religião no primeiro sentido. Mas se esse é o sentido pretendido, o contexto da fala nos obriga a entender que “a religião é uma mordaça do ser” quando prega que “carnaval é uma festa do demônio, que você vai para o inferno se brincar, que as celebrações de Momo são um culto ao paganismo, as drogas, ao sexo frívolo, aos destemperos”. Ou seja, para o pastor é legalismo falar que o carnaval estimula consumo de drogas, bebedeiras, danças e músicas com apelo sexual, relações sexuais casuais, traições, hedonismo, idolatria do corpo, idolatria do “eu”, objetificação das pessoas, egoísmo, descuido do próprio corpo e que, portanto, deve ser entendida como uma festa demoníaca. E dar crédito a esse tipo de fala e conclusão seria uma forma de amordaçar o ser.

A primeira dificuldade aqui é entender como que falar a verdade sobre o carnaval pode ser considerado legalismo e amordaçamento do ser. A segunda é entender como seria possível alertar as pessoas sobre os problemas do carnaval sem dizer a verdade sobre ele. O pastor parece acreditar que as duas dificuldades se vencem da seguinte maneira: (1) conclamando os que pretendem participar a tomarem certos cuidados para proteger a própria vida e (2) omitir o fato de que as práticas comuns dessa festa, bem como o seu objetivo básico, são contrárias aos preceitos divinos expostos na Bíblia.

O resultado dessa “estratégia”, no entanto, não é uma conscientização do pecado, mas uma conivência com ele. Se eu não oriento sobre a pecaminosidade da festa, como as pessoas saberão que é pecado? Não faz parte da missão cristã ensinar o que a Palavra de Deus diz? E não faz parte da missão do pastor conduzir suas ovelhas para longe do que leva à morte? Então, de que modo o pastor em questão desempenha a função de cristão e de pastor ao ser conivente com a participação das pessoas no carnaval?

Claro, ele diz também que a liberdade irrestrita é tão ruim quanto à religião (no sentido de legalismo), pois nos leva à escravidão. Mas isso dá ao texto apenas a impressão de que o carnaval é admissível ao cristão desde que ele use preservativos, escolha bons motéis e celebre com moderação. Ou seja, pode celebrar como qualquer pessoa não cristã, desde que não fique “doidão” demais. E aqui nos perguntamos: em que esses conselhos se diferem de conselhos que se dão a não cristãos? A proposta não era passar conselhos de alguém na posição de um pastor? É o que o título indica – “Conselhos de um pastor para o Carnaval”. Mas o que lemos são conselhos de uma pessoa na posição de um secularista ou mundano. Se essa era a intenção dele, o título deveria ser algo como “Conselhos comuns para não cristãos que irão comemorar o carnaval”. O título com a palavra “pastor” é enganoso. Ele é pastor, mas não vemos conselhos de um pastor no texto. Ele continua:

“O que tem no carnaval tem todo fim de semana em qualquer lugar do país, apenas a frequência é que é menor”.

O argumento aqui parece ser o seguinte: (1) se o que tem no carnaval tem o ano todo, então o que tem no carnaval é algo normal; (2) o que é normal não deve ser tratado como errado, pois é apenas algo que ocorre rotineiramente; (3) logo, o que tem no carnaval e no ano todo não são coisas erradas. Qual seria o outro motivo para o pastor citar que o que acontece no carnaval ocorre o ano todo? Talvez a segunda premissa deva ser: o que é normal não deve ser tratado como erro grave ou não deve ser motivo para ver com muita antipatia. Em todo o caso, a ideia parece ser: “Não é algo tão grave, logo, não é preciso dizer que é errado”. Não obstante, mesmo que as práticas que ocorrem no carnaval (e no resto do ano nas festas mundanas) não fossem tão graves, isso não nos dá o direito de fazer parecer que elas não são pecaminosas. Ademais, participar de uma festa regada à promiscuidade e destemperos, e ainda com a intenção de cometer atos condenados pela Bíblia, não parece ser algo pouco grave e inofensivo

Na continuação, lemos:

“Por vezes, salões de bailes são menos promíscuos que templos de igreja. Sim, há reuniões ‘sacras’ onde a mensagem é alucinógeno, os ouvintes estão mascarados, são apenas personagens encenando o grande estelionato que se transformou a vida, os que não fumam, tragam a alma dos aflitos, as que não bebem, sorvem o veneno de fofocas amargas, não tem sexo, mas tem cobiça, não tem frevo, mas tem histeria pseudo espiritual, não tem shortinhos e tops revelando a pele bronzeada, ao contrário, tem vestimentas talares de fariseus e doutores da lei, impecáveis em seus modelitos da alta costura da religião, eles cobrem as ‘vergonhas’ do corpo, e expõem o escândalo da alma sem compaixão ou solidariedade pela vida”.

Aqui o pastor tenta vender dois argumentos implícitos: (1) se há pecadores hipócritas na igreja, isso justifica não condenar as práticas pecaminosas dos pecadores que vão para o carnaval; (2) ou você justifica os atos dos participantes do carnaval e condena os atos dos “fariseus” da Igreja ou justifica os atos dos “fariseus” da Igreja e condena os atos dos participantes do carnaval. Ele não parece ser capaz de condenar igualmente os atos dos dois tipos de pecadores. O máximo a que ele chega é à condenação de “excessos”, o que pode ser definido por cada um da maneira como se bem entende. Talvez não seja excesso para alguém transar com uma pessoa diferente a cada dia do carnaval. Aliás, curioso que seja, o pastor liga textualmente promiscuidade ao sexo que não seguro, feito sem preservativos. É fácil interpretar aqui: “Então, desde que eu tenha preservativos, não estou sendo promiscuo”.

É útil expor aqui um vício de cristãos liberais. Eles costumam a escrever ou falar de maneira dúbia. Talvez seja uma forma (consciente ou não) de se defenderem quando forem questionados. Esse pastor poderia dizer: “Ah, mas o que quero dizer com sexo seguro é o sexo dentro do casamento”. Ótimo! Mas a construção frasal não dá essa impressão. Então, das duas uma: ou ele tem dificuldade de se expressar direito por escrito ou ele quis dar a entender outra coisa, mas de um modo que lhe possibilitasse uma desculpa. O pastor finaliza:

“Brinque, meu amigo, se alegre, minha amiga, siga os conselhos deste velho pastor e sua festa será ainda melhor. Quem tem bom coração e boa consciência pode ir até o inferno, que sairá de lá sem ser chamuscado pelas chamas da vaidade e do desamor. Quem não tem, pode se vestir de anjo e se retirar no deserto do Saara que, ainda assim, estará sufocado pelo egoísmo e pela presunção. Bom carnaval!”.

O pastor enfatiza sua conivência com o pecado agora partindo para o estímulo explícito do mesmo. O “brincar” e o “se alegrar” aqui não são inocentes. O pastor não está falando de brincadeira e alegria cristãs. Ele está falando do que se pratica no carnaval e nas festas mundanas de todos os fins de semana. Em suma, ele está dizendo: “Não ligue para quem diz que o carnaval e as festas mundanas são coisas do Diabo. Quem diz isso é legalista. Faça o que você quiser, apenas tomando cuidado para não ser hipócrita, não correr riscos físicos e não desrespeitar os outros”.

Curiosamente, essa é uma visão bastante legalista. O próprio pastor reconhece isso sem querer ao sugerir que muitos desses que vão ao carnaval possuem “bom coração e boa consciência” e que sairão do inferno (que, suponho, ele usa aqui como símbolo para uma vida de pecado e afastada de Deus) sem ser chamuscados “pelas chamas da vaidade e do desamor”. Ou seja, o ser humano mergulhado no pecado e sem Deus pode ter “bom coração e boa consciência”, desde que seja amoroso e humilde. E isso, de alguma forma, fará a pessoa sair de sua situação de pecado e afastamento de Deus.

Esse tipo de raciocínio não é invenção do pastor. É o exato raciocínio de muitos mundanos. Eles pensam: “Sou uma boa pessoa. Não mato, não roubo, não me meto na vida de ninguém, trabalho honestamente, pago minha própria cerveja e me divirto no carnaval sem causar confusão”. Se essa pessoa ajuda uma instituição de caridade e vez ou outra faz rezas a algum santo, isso é suficiente para ela achar que merece a salvação, pois é uma pessoa boa. Mas a Bíblia declara enfaticamente que todos são pecadores e maus diante de Deus (Jr 17:5; Rm 3:10-23 e 5:6-10; Ef 2:1-3); que a salvação é pela graça, mediante a fé, não por obras (Ef 2:8-10); que a viva fé em Jesus Cristo libera a atuação do Espírito Santo dentro de nós, produzindo amor, obediência e boas obras (Rm 8:1-7 e 13:8-10; I Co 6:9-10; Gl 5:19-21; Tt 3:3-7; Tg 2:14-20).

Assim, não existe isso de pessoas mergulhadas em pecado e longe de Deus (isto é, no “inferno”) que possuem bom coração e boa consciência. Quem está pulando carnaval e quem está dentro da Igreja agindo hipocritamente estão, ambos, em pecado e carecem do lavar regenerador do Espírito Santo. Ambos são gente má, gente que não está sendo justificada pelo sangue de Jesus, pois sua fé é falsa, é apenas nominal (ou, nem isso, no caso de descrentes). O pastor, portanto, querendo combater legalistas, acaba ensinando um legalismo liberal: “Seja humilde, sincero, moderado e bom para com os outros, a fim de que, por meio dessas obras, você seja alcançado por Deus”.

Quero crer que, em grande parte, a argumentação do pastor é apenas muito confusa, mal escrita e até ingênua. Talvez ele apenas quisesse dizer que alguns fecham os olhos para os pecadores dentro da Igreja e condenam só os de fora. De qualquer forma, isso é irrelevante aqui. O fato é: o evangelho que ele está pregando, por ingenuidade ou não, é falso. É um evangelho para agradar cristãos liberais e mundanos. Não é o evangelho que emerge da Palavra cortante de Deus (Hb 4:12). Deve, portanto, ser rechaçado.

Por Davi Caldas

Fonte: Reação Adventista

 

Sobre Weleson Fernandes

Escritor & Evangelista da União Central Brasileira

Verifique também

Pregações rasas e pregadores inaptos

Neste sábado, fui a uma nova igreja com minha esposa. O sermão pregado pelo pastor …

A Bíblia não é um Self-Service

“Toda a Escritura é inspirada por Deus, e útil para ensinar, para repreender, para corrigir …

Breve Análise da Unidade Protestante

                Aproveitando o mês de outubro, quando se …

Deixe uma resposta

×

Sejam Bem Vindos!

Sejam bem Vindo ao Portal Weleson Fernandes !  Deixe um recado, assim que possível irei retornar

×