Série “Existência de Deus” – Parte 5: Um mundo amoral

Na quarta postagem dessa série, aprendemos sobre o argumento moral. Através dele vimos que para a existência de um moral objetiva, é necessário que Deus exista. No texto de hoje, vamos analisar algumas tentativas ateístas de fugir do argumento moral, demonstrando que elas não possuem sentido.

Implicações de uma moral objetiva

Se realmente existe uma moral objetiva e absoluta, esta constatação traz consigo algumas implicações muito sérias, sobretudo para a visão ateísta do mundo, pois se não há Deus, não há padrão absoluto no qual possamos basear a nossa moralidade. Deus é o ser transcendente do qual emana toda a moral. Ele é o padrão moral absoluto do qual as noções morais provém. O escritor C. S. Lewis (mais conhecido como o autor de As Crônicas de Nárnia) que se converteu do ateísmo para o cristianismo, escreve assim no livro Cristianismo Puro e Simples:

“Meu argumento contra Deus era que o Universo parecia cruel e injusto demais. Mas de que modo eu tinha esta idéia de justo e injusto? Um homem não diz que uma linha está torta até que tenha alguma idéia do que seja uma linha reta. Com o que eu estava comparando este Universo quando o chamei de injusto?” [1].

Para entender melhor essa reflexão, precisamos percorrer alguns pensamentos ateístas sobre qual seria a base para a crença na existência de valores morais objetivos.

O químico ateu Peter Atkins em um debate contra Craig, sustenta que nós “sabemos o que é certo e o que é errado quando nossas aspirações atingem as aspirações dos outros” [2]. Já o humanista Austin Dacey, também em debate, diz que a moral é um conjunto de regras que fazem a sociedade funcionar melhor, e que por isso nós procuramos segui-la [3].

Estes dois pensamentos refletem bem o que muitos ateus pensam sobre o que é a moral: um padrão de atitudes formado através da racionalidade humana, capaz de distinguir o que é melhor e o que é pior para a sociedade. Mas o problema desses pensamentos é que eles não alcançam a raiz da questão. Atkins, por exemplo, faz uso de um raciocínio circular: pressupõe que o egoísmo é errado para afirmar que não devemos atingir as aspirações das demais pessoas. Mas por que o egoísmo é errado? Como ele sabe que o egoísmo é errado? O que o faz pensar que o egoísmo é errado? Por que isso não pode ser questionado? Em que ele se baseia para fazer tal afirmação?

Percebe? O que Peter Atkins faz é usar padrões morais (que definem o amor como correto e o egoísmo como errado) para explicar a existência dos próprios padrões morais. Em outras palavras, ele está dizendo que é errado atingir as aspirações das demais pessoas porque é errado ser egoísta; e é errado ser egoísta porque é errado atingir as aspirações das demais pessoas.

Austin Dacey também não colabora em nada com a sua explicação. A sua concepção de que a moral é um conjunto de regras que fazem a sociedade funcionar melhor tem como pressuposto a ideia de que devemos pensar no bem coletivo. Só que mais uma vez esse pressuposto já é baseado na moral. Por que é correto pensar no bem coletivo? Por que eu não posso pensar só em mim? Em que se baseia essa noção de certo e errado? Mais uma vez, não há preocupação por parte do ateu de provar porque seria errado ser egoísta.

O erro de Dacey ainda repousa em uma confusão entre moral e lei civil. Sua concepção humanista de que devemos pensar no bem coletivo resulta do temor de um mundo onde não houvesse leis que pudessem garantir a auto-preservação. É isto que está em jogo quando ele diz que a sociedade funciona melhor com esse conjunto de regras; é o medo de se encontrar em um estado sem garantias para a própria vida.

Esse medo pode ser descrito como sendo natural do ser humano, posto que é resultado do instinto individual de auto-preservação da vida. E é aqui que nos deparamos com uma verdade essencial: não é necessário existir moral para que exista instinto de auto-preservação. Não é necessário que eu realmente me importe com o bem coletivo ou que eu ache isso moralmente correto para que eu me importe com minha própria vida.

Portanto, a existência de leis civis não é uma prova de que existe uma moral objetiva. Este é o erro de Dacey. Ele vincula a existência de lei civil à obrigação moral de segui-las, quando, na verdade, se Deus não existe, as leis são apenas uma forma encontrada pelo ser humano de garantir sua própria vida, independentemente se é certo ou não pensar no bem coletivo.

Então, tomando como pressupostos que o homem pode almejar um conjunto de regras sobre toda a sociedade apenas por instinto de auto-preservação e que a moral não é necessária para tal, o egoísmo se transforma em um sentimento útil. Então, por que a maioria das pessoas continua insistindo que pensar no bem coletivo é certo e que ser egoísta é errado? De onde vem essa concepção?

Vamos nos aprofundar um pouco mais na questão, observando quais seriam as implicações genuínas de se acreditar que não existe Deus. Para começar, o universo, o planeta, a natureza e o ser humano não existem por um propósito. Não há um objetivo maior para nossa existência. Tudo o que existe é obra do acaso. Não existem regras ou leis maiores. Não há um manual que ensine o que se deve e o que não se deve fazer. Todos um dia morrerão e deixarão de existir. Tudo o que se faz aqui será esquecido por quem fez e por quem viu fazer. Tudo será apagado. Não há consequencias. Não há padrão. Não há possibilidade de julgamentos dentro do campo moral.

Portanto, não há motivo para se pensar no bem da sociedade ou na preservação da espécie humana à longo prazo. Assim, o que chamamos de moral não passa de uma ilusão através da qual é possível que cada pessoa tenha a garantia de que não farão com ela o que ela não quer que façam. Este é o verdadeiro panorama ateísta.

Então, se vivêssemos em um mundo ateu, tal mundo não necessariamente seria sem lei. Poderia haver leis, tais como as temos em nosso mundo. Não obstante, um homem poderia não matar um desafeto simplesmente por não querer ser preso, mas crer que o seu sentimento homicida é correto. Tal ato seria objetivamente errado? Não. No máximo uma pessoa poderia ter uma opinião contrária, mas seria mera opinião, um sentimento subjetivo, e não uma verdade absoluta.

E mais: Se este mesmo homem matasse sua esposa, sem deixar rastros para a polícia (e para os parentes dela), poderia ser considerado um herói, pois fez o que achou ser correto, se livrou de um obstáculo, burlou a lei (o que em um mundo ateísta não é imoral) e continuará a viver bem a sua vida. Não existe sequer espaço para remorso, pois (1) um dia sua esposa morreria mesmo; (2) ele também morrerá algum dia; (3) não existe vida após a morte; (4) não existe um padrão moral absoluto; (5) o seu ato egoísta não irá desencadear uma desordem geral na sociedade que o afete; e (6) o egoísmo é uma boa ferramenta para cada um fazer o que quiser e ser feliz em sua breve vida.

Então, segue-se que, em uma visão de mundo onde não existe Deus (que seria o padrão moral absoluto), este homem não foi imoral, mas racional. Sua racionalidade é até muito admirável. Se alguém quer levar a sério o seu ateísmo, deve aceitar este panorama, onde a moral é uma ilusão.

A situação intelectual do ateu, portanto, é a seguinte: ou ele aceita que não existe moral objetiva, tornando-se assim um relativista (como vimos há pouco) ou ele sustenta uma moral objetiva, aceitando também que existe um padrão maior e absoluto do qual se originou a nossa moral.

A analogia do marceneiro

Talvez o leitor ainda não tenha se convencido totalmente de que essa linha de raciocínio está correta. Então, para que não restem dúvidas, vamos fazer uso de uma analogia que deixará tudo mais claro.

Imaginemos, pois, que sou um marceneiro que caminha pela rua em um fim de tarde. Então, encontro um pedaço grande e proveitoso de madeira. Olho para os lados, vejo que não é de ninguém e que, quem quer que o tenha colocado naquele local, somente o abandonou. Então, levo o pedaço de madeira para casa e começo a trabalhar na fabricação de uma prateleira. Pergunto: Eu tinha alguma obrigação objetiva de fazer ou de não fazer a prateleira com aquele pedaço de madeira? Havia alguma indicação do que eu deveria ou não fazer? Claro que não. O pedaço de madeira não tinha nenhuma finalidade, e, portanto, eu podia fazer dele o que eu quisesse.

Agora, digamos que eu, o mesmo marceneiro, em vez de ter encontrado o pedaço de madeira abandonado, tivesse recebido de meu chefe esse mesmo pedaço, dizendo que ele pertencia a um cliente e que eu deveria fazer uma cadeira com ele para entregar ao cliente. Então, eu levo o pedaço de madeira para casa, só que, em vez de fazer uma cadeira para o cliente de meu patrão (como ordenado), me apropio dele e o transformo em minha prateleira. Pergunto: Será que agora eu tinha alguma obrigação e indicação do que eu deveria ou não fazer com a madeira? É óbvio que sim. O pedaço de madeira tinha um fim determinado e, por isso, eu deveria tê-lo cumprido.

Trazendo isso para a questão da moral, se há realmente um Deus do qual provém toda a moral, ela é objetiva e todos devem segui-la. Mas, se não há nenhum Deus, a moral é apenas um pedaço de madeira abandonado e sem um fim determinado, em meio a um universo que também não tem objetivo. Cada um pode fazer o que quiser com esse “pedaço de madeira”.

Refutando contra-argumentos

Neste ponto, o ateu ainda terá alguns argumentos para tentar sair desse dilema. Ele poderá afirmar que, por mais que sejamos fruto do acaso, devemos seguir aquilo que a natureza determinou. Com isso o ateu conclui que a moral é um instinto desenvolvido pelo ser humano naturalmente, e que, por isso, não podemos violá-lo.

Mas esse argumento também não é válido. Primeiro porque é necessário que o ateu prove que “devemos seguir aquilo que a natureza determina”. Por que devemos? Veja que outra vez o raciocínio é circular, pois o ateu precisa recorrer a valores (aquilo que se deve ou não fazer) para explicar os próprios valores.

Segundo, porque o ateu acaba se contradizendo quando afirma que devemos fazer o que a natureza determinou, pois há um bom número de práticas não-naturais que os ateus não veem como imorais. Por exemplo, as relações homossexuais, as tatuagens, os brincos, as roupas, o parto cesariana, a camisinha, as bebidas alcoólicas, a depilação, o cigarro e etc.

Ora, naturalmente falando as relações sexuais devem ocorrer entre homem e mulher, porque é o mecanismo natural para se preservar a espécie; e o ânus serve para secretar fezes e não para receber sêmen e a orelha não apresenta furos para se colocar brincos; e a pele é apenas uma proteção do organismo humano, não uma parede para se pintar; e não nascemos com roupas; e o parto natural é aquele em que o bebê é expelido pelo canal vaginal; e a camisinha evita o mecanismo natural de preservação da espécie; e as bebidas alcoólicas não dão em rios. Então, se práticas não-naturais não são corretas, então o ateu não deve fazer nada disso.

Finalmente, é interessante ressaltar que na maioria das vezes a moral é contrária aos próprios instintos. E é por isso que ela pode ser mais facilmente ignorada e até mesmo deturpada, diferentemente dos instintos. Por exemplo, o que é que impede um homem de saciar o seu instinto natural por sexo quando vê uma mulher bonita na rua? É a moral. E o que nos impulsiona a salvar uma pessoa desconhecida de algum tipo de perigo mesmo que isso ponha em risco a nossa vida? É a moral.

Então, vemos que a moral é um elemento bem diferente dos instintos, podendo ser ignorada e deturpada; podendo ser contrária aos instintos e até mesmo fortalecendo um instinto específico em uma situação onde exista um conflito entre dois instintos. Por exemplo: uma mãe tentando proteger seus filhos de um perigo (auto-preservação versus preservação da espécie).

Ainda devemos ressaltar que: se os instintos tivessem que ser seguidos sempre apenas pelo fato de serem naturais, então não há erro em estuprar uma mulher na rua e deixar morrer um desconhecido. Essas atitudes são ações instintivas (instinto sexual – ou de procriação – e instinto de auto-proteção).

Considerações Finais

Irritado com às incômodas conclusões às quais estamos chegando, um ateu pode tentar se defender dizendo que ateus não são pessoas imorais, que a moral não depende da religião, que existem muitos ateus mais morais que cristãos e etc. Ok. Concordo com tudo isso. Mas o que isso tem a ver com o argumento moral? Nada! O argumento moral não se propõe a dizer que os ateus são imorais, mas sim que existem valores morais no mundo, que eles não são relativos e que só podem existir mediante um padrão moral superior e transcendente, ao qual chamamos de Deus. Ou seja, não é preciso crer em Deus para ser alguém razoavelmente moral. Mas para que a moral objetiva realmente exista, não sendo mera ilusão, é preciso que Deus exista (independente de se crer nEle ou não). Esse é o ponto.

O ateu também pode argumentar que existiram sociedades que cometeram e ensinaram atrocidades e que isso é uma prova de que não existem valores morais. Porém, uma coisa nada tem a ver com a outra. A existência de valores morais absolutos não impedem que a moral seja deturpada ou, em parte, ignorada. Agora, ignorar ou deturpar a moral não significa não saber distinguir o certo do errado e, sim, tentar justificar o erro, tornando-o uma exceção – um marido traído, por exemplo, ao assassinar a esposa, justifica-se dizendo que ela mereceu.

Ademais, mesmo em uma sociedade imoral, existem resquícios de moralidade suficientes para que um indivíduo reflita sobre suas atitudes e escolha mudar. Nessas mesmas sociedades, as exceções não afetam a moral por inteiro. Uma tribo de canibais acha correto se alimentar de inimigos porque são inimigos. Mas a tribo, no geral, não achará correto instituir dentro da própria tribo um sistema de canibalismo mútuo sem qualquer discriminação.A vida dos seus é importante. Aqui vigora a mesma lei: é errado matar. As exceções não destroem a noção de moral por inteiro em uma sociedade.

O próprio fato de observar o sofrimento alheio e se colocar no lugar do sofredor não só é um convite à moralidade como a prova de que há uma espécie de consciência no homem; um padrão a ser seguido, ensinado e ratificado no convívio da sociedade. O valor de uma lágrima, de um sofrimento de um sorriso ou de uma vida, tal como o sentimento de reciprocidade, existe devido a este padrão. A nossa concepção de bom e ruim, de certo e errado, de moral e imoral, só faz sentido mediante um padrão superior do qual emana essas concepções. Cabe a cada um, escolher se vai seguir, ignorar ou deturpar essas concepções. Quem as ignora, tende a se tornar insensível a elas.

Segue-se, então, a conclusão de nossas análises sobre a moral: se ela é objetiva, ela não pode ser resultado de convenção humana e nem de mero instinto. Ela é um elemento presente na sociedade e no ser humano individualmente, e só existe porque há um padrão maior do qual ela emana. Esse padrão é chamado pelos teístas de Deus, cuja moral, na realidade, faz parte de seu próprio ser. Assim, se a moral é objetiva (como a maior parte das pessoas parece concordar), ela é uma evidência de que Deus existe.

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Referências:

  1. “Cristianismo Puro e Simples”, de C. S. Lewis.
  2. Debate: William Lane Craig x Peter Atkins, no Carter Presidential Center, Atlanta, Georgia, EUA – 1998. Presente no link: http://descontradizendocontradicoes.blogspot.com.br/2010/11/debate-deus-existe-wlliam-lane-craig-x.html
  3. Debate: William Lane Craig x Austin Dacey, em Pardue University, West Lafayette, Indiana, EUA – 2004. Presente no link: http://descontradizendocontradicoes.blogspot.com.br/2010/10/debate-william-lane-craig-x-austin.html

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Posts da Série:

Parte 1: Argumento Cosmológico

Parte 2: Fugindo do óbvio

Parte 3: Argumento Teleológico

Parte 4: Argumento Moral

Parte 5: Um mundo amoral

Parte 6: Argumento da Razão

Parte 7: A possibilidade lógica de milagres

Parte 8: Argumento da Ressurreição

Por Davi Caldas

Fonte: Reação Adventista

Sobre Weleson Fernandes

Escritor & Evangelista da União Central Brasileira

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