A fixação pela política (e por políticos) atrapalha o Evangelho

Não raro, alguns acontecimentos simples da vida às vezes nos desencadeiam profundas reflexões. Foi o que ocorreu comigo há alguns dias, quando um amigo me pediu indicação de perfis na internet que falam sobre teologia para seguir. No momento em que me pus a pensar a respeito, constatei algo triste: eu não poderia indicar algumas das pessoas com grande conhecimento teológico que conheço, incluindo teólogos. Motivo? Atualmente, eles tem falado mais, em seus perfis, sobre política do que sobre teologia, Bíblia e evangelho. Note: não estou condenando quem gosta de escrever sobre política. Apenas estou narrando um fato: uma vez que meu amigo está interessado em conteúdo teológico e, infelizmente, o perfil de alguns bons cristãos que conheço não pode oferecer muita coisa a ele.

Pensar sobre isso me levou a fazer uma autoavaliação. Entre os anos de 2014 e 2017, eu também fui muito ativo em política no meu perfil pessoal. Em certo período, a cada 10 posts sérios que eu fazia, 9 eram sobre política. Ao pensar nisso é inevitável eu me perguntar: quantas pessoas será que eu deixei de alcançar teologicamente em meu perfil pessoal por falar muito de política? E o quanto eu deixei de produzir teologicamente por estar escrevendo sobre política? Eu não tenho como saber. Mas a mera possibilidade de ter tornado meu perfil pessoal inútil para quem procurava teologia de qualidade é suficiente para me fazer pensar se valeu a pena.

Essas reflexões se estendem para o que vejo hoje. Há mais de dois sem acompanhar e comentar política ativamente, consigo perceber os pontos negativos de algumas coisas que antes me passavam desapercebidas. Exemplifico. Conheço cristãos ferrenhamente bolsonaristas e cristãos ferrenhamente anti bolsonaristas. Muitos desses, usam seus perfis pessoais quase que exclusivamente para falar a favor ou contra o Bolsonaro. Boa parte desses é composta por pessoas inteligentes, com bastante conhecimento teológico e aparentemente piedosos na vida cotidiana. Então, veja: são pessoas com um enorme potencial em termos de ensino e disseminação de boa teologia. Mas eu não poderia indicar para quem está faminto de Bíblia, evangelho, hermenêutica saudável, etc. Pior: eu não poderia indicar tais pessoas para quem não tem o mínimo interesse em política.

Não cabe a mim ser juiz do perfil de ninguém. Cada um posta o que quiser. Mas creio que a reflexão é valida: em que ponto a política começa a atrapalhar o evangelho? Que a política é importante, eu não tenho dúvida. É necessário que as pessoas entendam o mínimo de política, saibam o que está acontecendo nos governos, tenham capacidade de avaliar as coisas e cobrem os governantes. Além disso, em alguma medida, há questões morais que se relacionam com a política. O Reação Adventista, por exemplo, foi criado para, entre outras coisas, combater ideias como a da legalização do aborto e o marxismo como filosofia compatível com a fé cristã. Por certo, falar desses assuntos é importante para que a Igreja não passe a defender pautas e cosmovisões antibíblicas. No entanto, será mesmo útil ao evangelho falar diariamente da política cotidiana, com suas personalidades e partidos atuais, tensões e conflitos de cada de cada dia? Até que ponto fazer análises minuciosas sobre o cenário político, defesas apaixonadas de alguns personagens e críticas implacáveis a outros muda a vida espiritual de nossos leitores e seguidores? Até que ponto não estamos gastando nosso potencial com algo efêmero e pouco útil, quando poderíamos contribuir muito mais com algo que gera salvação eterna e edificação espiritual?

Talvez o Davi antigo me respondesse: dá para conciliar as duas coisas. De fato, no mesmo período em que mais usei meu perfil pessoal para falar de política, também produzi bastante conteúdo teológico para o Reação Adventista. E não tenho dúvida de que há quem consiga equilibrar bem as coisas. Ainda assim, olhando em retrospecto, percebo que perdi muito tempo com questões da política cotidiana que não eram tão relevantes. E talvez eu tenha me tornado chato e desinteressante para algumas pessoas. É sim possível que eu tenha alcançado menos gente com o que realmente importa: o evangelho.

Eu não me arrependo do que estudei sobre política e economia. Foi importante. Mas talvez eu pudesse tê-lo feito sem falar tanto disso nas redes, priorizando mais a publicação de bons conteúdos teológicos. Alguns poderiam arrazoar que pelo meu trabalho e de tantos outros que se debruçaram sobre política, o brasileiro passou a saber mais sobre política. Hoje não é difícil encontrar pessoas que conhecem o nome dos ministros do STF e do executivo, e que acompanham tudo o que acontece em Brasília. Também é normal toparmos com posts contendo análises políticas nas redes sociais. Uma grande parcela dos brasileiros está mais antenada. Houve sim uma mudança. As coisas não eram assim há uma ou duas década atrás.

Não obstante, apesar de podermos considerar esses fatos como positivos, cabe perguntar: que ganhos essa conscientização política trouxe para a vida espiritual das pessoas? O povo está interpretando melhor a Bíblia? Está falando mais do evangelho? Está buscando mais a santidade? Está cuidando mais dos necessitados? Está servindo mais à sua igreja local? Está se engajando mais em missões? Está ofertando mais para a obra missionária da Igreja? Está lendo mais obras de exegese, hermenêutica e apologética? Está pregando sermões mais bíblicos? Está perdoando mais? Está desenvolvendo mais o fruto do Espírito Santo? Está mais parecido com Jesus no pensar, no falar e no agir? Está focando mais nas coisas espirituais do que nas coisas desse mundo? Está amando mais?  

Se a conscientização política fosse proporcional à conscientização teológica, à pregação do evangelho, à edificação espiritual e à santificação, eu não teria dúvidas de que vale a pena falar diariamente da política cotidiana. Mas não é isso o que se vê. E me parece que a razão para isso é óbvia: o evangelho é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê (Romanos 1:16). Não é a pregação política.

Ora, não bastasse a inutilidade da pregação política para conquistar efeitos espirituais na Igreja, a fixação na política traz efeitos negativos mesmo. Nesta semana, por exemplo, o conhecido pastor Lucinho Barreto publicou um Tweet que demonstra bem isso.

Há vários problemas na mensagem de Lucinho. Primeiro: ele, como pastor, não deveria se prestar a fazer campanha política para ninguém. Uma coisa é contrariar filosofias anticristãs, como marxismo, feminismo, abortismo, ideologia de gênero, racismo, fascismo, nazismo. Outra coisa é apontar políticos para votar. Como pastor, Lucinho deveria se limitar a pregar a Palavra de Deus, consolar os abatidos, ajudar os necessitados, edificar a Igreja, ensinar os fundamentos da fé, estimular a boa interpretação da Bíblia, etc. Pastor não é militante político.

Segundo, o argumento de Lucinho é desonesto. Basicamente, Lucinho se utiliza de uma variante da estratégia das tesouras para emplacar a ideia de que só há duas opções no cenário político. A ideia é garantir apenas um adversário para o seu político preferido – e um adversário odioso. Assim, as chances de seu político preferido ganhar se tornam maiores. Eu falo um pouco dessa estratégia no post Sete ‘vícios políticos’ que cristãos não deveriam ter”.

Do ponto de vista da ética de Maquiavel, a estratégia é perfeita. Mas nós, cristãos, não deveríamos nos guiar por uma ética maquiavélica, mas pela verdade. Sabemos que não há só duas opções no cenário político. E não há nenhum problema em alguém desejar outras opções e lutar para torna-las viáveis. Podemos ter nossas preferências, mas nunca tentar, de alguma forma, constranger as pessoas tomarem as mesmas decisões que nós.

Terceiro, a aplicação que Lucinho faz do texto bíblico é absurda de I Reis 18:21. Vamos trabalhar o texto em seu contexto. Elias estava confrontando o povo em relação à idolatria. A escolha em questão devia ser feita entre Yahweh ou Baal. O máximo que se poderia tirar de lição daí para o contexto de hoje é que idolatria continua sendo um pecado. Nada nem ninguém pode competir com Yahweh. É nesse sentido que não existe meio termo. Ou se adora Yahweh como único Deus ou não. Forçar o texto para se aplicar a disputas políticas entre homens pecadores como nós é vilipendiar a passagem bíblica.

O caso é ainda mais sério do que pode parecer à primeira vista. Uma vez que o texto original estabelece uma oposição entre Yahweh e Baal, usar esse texto para se aplicar à disputa entre Bolsonaro e Lula é sugerir que escolher Bolsonaro é escolher Yahweh, ao passo que rejeitá-lo é escolher outro deus. Aqui, portanto, Bolsonaro é elevado a deus ou, no mínimo, à representante de deus em um sentido messiânico.

Ainda que não tenha sido essa a intenção de Lucinho, a aplicação que ele faz leva a esse pensamento. E não é exagero dizer que há quem compre essa ideia. Muitos evangélicos consideram Bolsonaro como uma espécie de governante ungido por Deus, operando uma missão profética e divina. Seria como um rei Davi moderno. Assim, quando líderes religiosos fazem como Lucinho, acabam alimentando um messianismo e mesmo uma idolatria política grotesca.

O problema, claro, não é exclusivo de um lado do espectro político. Há um monte de pastores que fazem o mesmo no campo da esquerda. Vide homens como Ariovaldo Ramos, defensor de Lula e do PT, além de adepto da Teologia da Missão Integral. Ou Henrique Vieira, defensor do PSOL e simpático à Teologia Negra. Pode-se citar também Leonardo Boff e Frei Betto, expoentes da Teologia da Libertação. Em suma, há pastores à esquerda e à direita fazendo proselitismo político em vez de pregar a Palavra.

Quarto, as palavras de Lucinho parecem indicar uma fé grande demais no atual presidente do Brasil. Isso é um problema tanto para ele quanto para aqueles que o seguem. Afinal, políticos erram, mentem, se corrompem. Deveríamos, como cristãos, ser os mais céticos quanto possível em relação a governantes. Não custa lembrar que da mesma maneira como Ariovaldo Ramos e outros teólogos de esquerda fizeram de Lula um ídolo, há pastores de direita que fazem o mesmo com Bolsonaro. Se Lucinho não está fazendo o mesmo, no mínimo está dando margem para que seus seguidores o façam.

Finalmente, a comparação com diversos contextos em que há conflito entre apenas duas opções não tem qualquer coerência lógica. O fato de nos EUA só existirem dois partidos não implica que isso é o modelo correto a ser seguido e que algo diferente disso seria pecaminoso. Aliás, é bom lembrar que nos EUA existem candidaturas avulsas. E já aconteceu de estados americanos serem governados por candidatos independentes. A comparação com a situação do Afeganistão é ainda mais ridícula. É óbvio que entre a ditadura do Talebã e a democracia anti-Talebã não há meio termo. Mas dentro de uma democracia é perfeitamente possível haver meio termo entre direita e esquerda, entre socialismo e social-democracia, entre conservadorismo e liberalismo, etc. É sempre possível não concordar 100% com uma posição política específica, adotando posturas que não se encaixam totalmente em um “tipo ideal”. Não há nada de errado nisso.

É desonesto forçar comparações entre situações onde não há meio termo por força da lógica (ex.: meio teísta, meio ateu) com situações em que variações de pensamento não só são possíveis como prováveis e até saudáveis.

Saindo do pastor Lucinho, como eu já disse, há muitos cristãos com grande potencial teológico, mas que usam seus perfis exclusivamente para falar de política. E isso, por vezes, acarreta a criação de um belicismo inconveniente a um seguidor de Cristo. Eis outro efeito negativo da fixação na política. No post Quando o sujeito está louco na idolatria política, por exemplo, eu comento sobre um rapaz anti-bolsonarista que, me julgando bolsonarista (algo que não sou), me ofendeu com vários xingamentos. Este rapaz é um cristão e que tem grande potencial teológico, pois já vi posts dele muito lúcidos sobre teologia. No entanto, além de ter adotado uma postura agressiva e julgadora (pelo menos contra mim), possui um perfil onde praticamente 100% das postagens são críticas ao governo Bolsonaro.

Tanto este rapaz quanto aqueles que usam seus perfis quase que exclusivamente para defender Bolsonaro são absolutamente inúteis para quem, como meu amigo supracitado no início do post, procura teologia de qualidade. E é este o meu ponto: o quanto esses perfis poderiam fazer de positivo pelo reino de Deus? Será que passar o dia defendendo ou atacando políticos, fazendo da política diária o seu foco e se enfiando em discussões políticas agressivas e infindáveis traz algum benefício para o evangelho?

Aqui, claro, é preciso deixar algo claro: para falar contra a idolatria política é preciso, muitas vezes, citar os casos de idolatria política. E isso, fatalmente, nos leva a falar sobre governantes específicos. Ainda assim, há uma diferença grande entre ser uma analista político e ser alguém que repreende desvios teológicos. No Reação, por exemplo, sempre nos esforçamos para não focar as críticas em políticos específicos (em especial os atuais), mas em ideias. Além disso, nunca fizemos cobertura da política cotidiana, mas nos limitamos a falar de temas mais amplos, como o aborto. Assim, creio ser possível adotar uma orientação mais teológica, mesmo quando muitos de nossos temas precisarão, de alguma forma, mencionar política e políticos.

Se o leitor ainda se opõe ao que eu disse até aqui está em seu direito. Mas deixe-me contar uma experiência que talvez o ajude a ver as coisas por outro ângulo. O amigo que me pediu perfis que falam de teologia para seguir se converteu tem alguns poucos anos. Antes de ser cristão, era um socialista convicto e fanático. Em suas próprias palavras, ele tinha a política como um ídolo para si. Eu o conheci durante essa época. Falava praticamente só em política. Em campos opostos do espectro político, nós chegamos a discutir algumas vezes. Mas eu nunca consegui fazer nada de bom por ele a partir de debate político.

Nós passamos alguns anos sem nos falar, até que um dia ele me contatou. Para minha surpresa, havia se tornado cristão. E então, pude conhecer uma outra versão totalmente diferente deste amigo. Apaixonado por Jesus, interessado em temas profundos da teologia e muito mais tolerante. A idolatria política sumiu. A política perdeu grande parte da relevância em sua vida. Ele passou a discordar de muitos pontos do marxismo e hoje já não segue essa linha. Em seu perfil pessoal, antes abarrotado de posts e discussões políticas, agora predominam mensagens sobre o evangelho.

Não foi a pregação da política conservadora ou da economia liberal que tirou meu amigo das trevas de uma vida sem Cristo. Não foram perfis políticos que arrancaram este homem da idolatria política e confiança nos homens e nas ideologias. Foi o evangelho. E a pergunta que sempre me faço desde que descobri neste amigo um irmão em Cristo é: eu não poderia ter pregado mais o evangelho para ele do que debatido política? É esse o tipo de reflexão que todos nós devemos fazer.

A conclusão a que chego após essas reflexões é que muitas vezes a política atrapalha o evangelho. Não porque ela em si seja ruim. Mas porque, em um contexto de politização e polarização progressiva, é fácil criar uma grande fixação política. E essa fixação pode levar muitos a não só gastarem todo o seu potencial de aprendizado e ensino com a política (em vez de com evangelho) como agregarem posturas antibíblicas como agressividade desmedida, desonestidade intelectual e idolatria. E, no fim das contas, para aqueles que estão famintos pelo evangelho e por uma teologia de qualidade, crentes que agora só sabem falar da política cotidiana serão absolutamente inúteis.

Por Davi Caldas

Sobre Weleson Fernandes

Escritor & Evangelista da União Central Brasileira

Verifique também

Breve Análise da Unidade Protestante

                Aproveitando o mês de outubro, quando se …

Voltando para casa

Deus criou um dia para si (Sábado), a fim de ser lembrado como Criador e …

Resgatar laços com judeus e a fé judaica: fogo estranho?

Recentemente postei um texto intitulado “Voltando para casa”. No artigo eu cito uma série de …

Deixe uma resposta

×

Sejam Bem Vindos!

Sejam bem Vindo ao Portal Weleson Fernandes !  Deixe um recado, assim que possível irei retornar

×