A Nova Aliança e a Lei

Talvez você tenha aprendido que a Lei (dada no Antigo Testamento) era uma maldição e que a nova aliança (instituída por Cristo) anulou essa Lei. Essa é a crença de muitos cristãos sinceros. Mas ela está errada. Vou te mostrar; abre sua Bíblia.

Em Jeremias 31:31-34, Deus faz a promessa da nova aliança. Sim, a promessa é feita no Antigo Testamento. O verso 33 diz o seguinte: “Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o SENHOR: Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo”.

A tradução mais literal para “minhas leis” é “minha Torá”. Torá é o termo usado no hebraico para se referir a todo o ensinamento contido no Pentateuco, os cinco livros de Moisés. Esse termo foi traduzido para a Septuaginta (a primeira versão grega do Antigo Testamento) como “Nomos”, a palavra grega para “Lei”. É a palavra Nomos que Paulo e os demais autores do NT usa nas suas epístolas para se referir à Lei/Torá. Em suma, o que a profecia de Jeremias nos diz é que a nova aliança é Deus colocando a Lei em nosso coração e mente. Então, não podemos dizer que a Lei é maldita e a nova aliança a anula. É o contrário: a Lei é uma benção e a nova aliança vem para internalizá-la em nós.

Por que é importante para Deus internalizar sua Torá no homem? Em primeiro lugar, porque a Torá contém um padrão de conduta moral. Esse padrão reflete a natureza e o caráter de Deus. Assim, não seguir o padrão é andar em desacordo com Deus. Andar em desacordo com Deus nada mais é do que pecado. João afirma: “Todo aquele que pratica o pecado também transgride a lei, porque o pecado é a transgressão da lei” (I Jo 3:4). A palavra traduzida como “transgressão da lei” ou “iniquidade” (em outras versões do NT) é “anomia” (“A”, prefixo de negação + “Nomia”, derivada de “Nomos” = negar a Lei, transgredir a Lei, agir como se a Lei não existisse).

É uma derivação da palavra anomia que Jesus usa em Mt 7:23 quando afirma que dirá a alguns falsos seguidores: “Apartai-vos de mim vós que praticais a iniquidade”. Em diversas outras passagens, a palavra anomia é usada como algo condenável e o contrário da vontade de Deus para o ser humano (Mt 13:41, 23:28, 24:12; Rm 4:7, 6:19; II Co 6:14; II Ts 2:3 e 7; Tt 2:14; Hb 1:9, 10:17). Assim, internalizar a Torá é viver a vontade de Deus e não o pecado. Se pecado é anomia, como diz João, então Cristo veio salvar o ser humano justamente da transgressão à Lei. E o faz pondo-a no interior do homem.

Em segundo lugar, Deus incluiu na Torá profecias e simbologias que apontavam para a redenção do ser humano em Cristo. Elas eram, no entanto, apenas promessas escritas em tábuas de pedra, papiros e pergaminhos. Yahweh precisava “tirar” essas promessas do “papel” e torná-las reais para imputar no coração do homem os seus efeitos. Pôr a Torá no homem é colocar a própria obra de Cristo e seus efeitos salvíficos em seu interior. O que antes estava presente, como promessa, na imagem de animais sendo sacrificados, por exemplo, agora está presente, como realidade concretizada, na vida do homem: a justificação e a salvação.

Mas como Deus põe sua Torá dentro do ser humano na Nova Aliança? As passagens de Ezequiel 11:19-20, Ezequiel 36:26-27 e Joel 2:28-29 nos trazem a resposta: Deus dá ao homem um novo coração e coloca dentro dele o seu próprio Espírito Santo. Assim, o ser humano se torna apto a andar nos estatutos e juízos de Yahweh. É exatamente isso que os profetas dizem.

Esse é o momento em que você pergunta: “Mas o apóstolo Paulo não fala que a Lei é uma maldição, que Jesus Cristo nos libertou dela, que a nova aliança a anulou e que não estamos mais debaixo da Torá?”. Na verdade, não. Muitos pensam que Paulo criticava a Lei em si, como se ela fosse o problema. Mas o problema não era a Lei e sim a posição ocupada pela Lei. Voltemos à Bíblia.

Vimos que a nova aliança consiste em Deus colocar a sua Lei em nosso interior. Ora, essa Lei já havia sido dada. Se Deus deu a Lei ao homem, mas ela não estava ainda no seu interior, onde ela estava? Ela estava em cima do homem, esmagando-o. Como a Lei esmaga o homem? O apóstolo Paulo explica. Ela aponta nossos pecados (Rm 3:19-20), nos condena à morte eterna por sermos pecadores (Rm 6:20-23), nos frustra toda vez que falhamos em cumpri-la (Rm 7:14-24) e até mesmo ativa nosso apetite corrompido por fazer aquilo que descobrimos ser errado (Rm 7:5-13). Quando a Lei está sobre nós e não dentro de nós, ela se torna uma maldição.

Pode parecer culpa da Lei, à priori. Mas justamente para evitar essa possível conclusão apressada de seus leitores, o apóstolo Paulo ensina que (1) a Torá não é anulada pela fé em Cristo, mas confirmada (Rm 3:31); (2) ela não é pecado (Rm 7:7), mas sim santa, justa e boa (Rm 7:12 e 16), espiritual (Rm 7:14) e prazerosa (Rm 7:22). O problema é colocado na conta da inclinação natural do homem ao pecado, bem como no próprio pecado. Em suma, por sermos carnais, nós não temos força para viver em conformidade com a Lei. E assim, ela passa a nos oprimir e levar à morte.

O escritor da epístola aos Hebreus (provavelmente o próprio Paulo) lembra ainda que os sacrifícios de animais e todo o serviço dos sacerdotes pelo povo não podiam remover os pecados do homem, nem auxiliá-lo no processo santificação, de cumprimento da Lei de Deus (Rm 9:9-10 e 10:1-10). Afinal, não há dignidade nos animais para nos servirem de substitutos na condenação ou para nos oferecerem perdão, tampouco tem eles algum poder para nos fortalecer espiritual e moralmente. Suas funções eram transitórias. Havia algo maior para o qual apontavam. Algo que poderia suprir essas duas necessidades.

É por essa razão que Deus promete nova aliança por seus profetas: o homem, sendo carnal, não poderia implantar em si mesmo a Lei. E não podendo fazer isso, tanto a Lei quanto à aliança se tornavam instrumentos de condenação e morte, conforme o apóstolo vai explicar em II Coríntios 3:7-9. Em todo o capítulo 3, Paulo faz alusão às promessas de Deus em Jeremias, Ezequiel e Joel. Seu entendimento está inteiramente fincado nos profetas do AT: as letras gravadas em pedra, por melhores que sejam, não podem nos salvar de nossos pecados. Elas precisam ser gravadas em nosso interior pelo próprio Deus (II Co 3:1-5). Eis a nova aliança.

O apóstolo Paulo vai dizer que se tornou ministro “de uma nova aliança, não da letra, mas do Espírito; porque a letra mata, mas o Espírito vivifica” (v. 6). Ora, a letra da Lei só mata por estar fora do homem. A Torá de Deus só mata quando está sobre as costas do ser humano. Com a Lei nas costas e dependendo de si mesmo, o ser humano não tem como apagar seus pecados, mudar seu coração e progredir no cumprimento da Lei. Para se livrar da transgressão à Lei divina e sua consequente condenação, o homem precisa de algo além da própria Lei para justificá-lo e santificá-lo.

Felizmente, é exatamente isso o que Yahweh promove. Primeiro, o Pai envia o Messias Yeshua (que é um com o Pai em natureza), como homem, para nos perdoar e tomar a nossa punição (Hb 10:11-18). Só ele poderia fazer isso, pois apenas o próprio ofendido pode perdoar seus ofensores; e apenas alguém impecável pode limpar as transgressões dos pecadores. Ao morrer por nós, Cristo nos dá o perdão relacional de Deus e também o jurídico, cumprindo no próprio corpo a sentença do pecado: a morte. Operando essa redenção, ele nos compra de Satanás, o qual havia nos escravizado quando pecamos (I Co 6:20, 7:23; I Pd 1:18). Esse foi o primeiro passo da concretização da nova aliança.

Tendo nos comprado/justificado, Cristo pode cumprir a promessa de colocar em nós o Espírito Santo (que é um com o Pai e o Cristo em natureza). Ele nos tornou aptos para o recebermos como sua morada/santuário. Esse é o segundo passo da concretização da nova aliança. E é isso que torna possível a implantação da Lei em nós. Paulo vai dizer isso repetidas vezes em suas cartas (II Co 3:18; Tt 3:3-7; Gl 5:13-25; Rm 8:1-11).

O capítulo 8 de Romanos talvez seja o mais completo a respeito da relação entre a Lei e as obras de Cristo e o Espírito Santo. O apóstolo Paulo diz que uma vez perdoados por Cristo e vivendo nele, a Lei não mais nos condena à morte (vs. 1-3). Esse é o primeiro passo. Em seguida, explica que essa redenção torna possível que o preceito da Lei se cumpra em nós, pois agora, recebendo o Espírito, podemos andar no Espírito e não mais na carne (v. 4). Em outras palavras, o Espírito aplaca nossa inclinação ao mal e nos faz progredir.

No verso 7, Paulo vai dizer que “o pendor da carne é inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar”. Ou seja, estar na carne, para Paulo, é viver sem cumprir a Lei (anomia). Ele continua: “Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus. Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se, de fato, o Espírito de Deus habita em vós” (Rm 8:8-9). Isso é pura teologia da Lei.

É verdade que Paulo diz coisas que parecem ser contrárias à Lei. Em Romanos 3:21, ele afirma que a justiça de Deus mediante a fé em Cristo Jesus se manifestou “sem Lei”. No verso 28, diz que o homem é justificado pela fé independente das obras da Lei. Mais adiante, no capítulo 7, fala que fomos libertos da Lei (Rm 7:4-6). Em Gálatas 2:19, nos informa que morreu para a Lei. No capítulo 3, fala que não estamos mais subordinados a ela (Gl 3:23-25). Em diversas passagens, enfatiza que nós não estamos mais debaixo da Torá (Rm 3:19-20, 6:14-15; I Co 9:20-21; Gl 3:23-29; Gl 4:1-5 e 21, 5:18). Mas tudo é uma questão de contexto e perspectiva.

Em Romanos 3, Paulo está defendendo a tese de que todos são pecadores, tanto judeus, quanto gentios. E todos esses precisam da redenção em Cristo. O simples fato de ter a Torá e tradições bem intencionadas para auxiliar no cumprimento da Torá (as “obras da Lei”, como vimos em outro texto), isso não gera mérito para salvação. Assim, o judeu continua precisando da redenção em Cristo independente de ter a Lei formal dada ao seu povo. Essa redenção, portanto, não vem da Torá ou só para quem tem a Torá. Ela vem para todos, o que inclui gentios sem Torá. Isso não é ser contra a Lei, mas reconhecer que (1) ela não salva; (2) ter a Torá formal não muda a necessidade de redenção em Cristo Jesus; (3) mesmo sem terem a Torá formal, os gentios muitas vezes cumpriram leis naturais básicas pela consciência (Rm 2:12-16). Assim, a justiça de Deus vem “sem a Lei” no sentido de que não depende dela para salvar. Ela tem outra função.

Já em Romanos 7, Paulo destaca que fomos libertos da Torá em seu papel de senhorio e carrasco. Quando ela não estava internalizada em nós, segui-la era mais difícil e o nosso destino final era a condenação. É como dizer que um criminoso foi liberto do tribunal, do juiz, da cadeia, dos policiais e dos carcereiros – em suma, da justiça civil/penal. Isso não anula a justiça civil/penal e todo o seu aparato. Não anula a obrigação de seguir as leis para não ser condenado novamente. Anula só a condenação do criminoso. A lei é tirada de suas costas. Podemos dizer que ele está liberto da lei, isto é, de sua punição.

O que torna mais interessante a analogia do criminoso é que ele, uma vez livre da Lei como senhorio e carrasco, deve agora imputar essa própria Lei em seu interior. Assim, ela não lhe será mais um peso nas costas, nem a condenará. Isso significa uma mudança interna. É o criminoso passando a pensar, sentir e agir como uma pessoa honesta. Paulo quer dizer exatamente isso aos romanos. Não nos livramos do peso e da condenação da Lei para viver sem Lei (na carne), mas para deixar o Espírito imputá-la em nós. E essa operação não se faz, curiosamente, colocando a Lei no centro, mas colocando Cristo no centro de nossa vida. A Lei é boa e Jesus Cristo leva a ela quando ela está no seu devido lugar. Com Cristo no centro temos a salvação e o cumprimento da Lei. Com a Lei no centro, não temos nem a salvação, nem o cumprimento da Lei.

Em Gálatas 3:23-25, Paulo diz que não estamos mais subordinados à Torá em seu papel de tutor. Como tutor, a Torá não pode salvar ou ajudar a cumpri-la, apenas apontar para as promessas das ações redentoras de Cristo e o Espírito Santo. Como tutor, a Torá não pode ser posta em nosso interior, pois isso é característica da nova aliança. Assim, resta a ela ficar sobre nós, fazendo peso, escravizando. Esse é o contexto de Gálatas 3. Paulo deixa isso mais claro quando comenta, em I Coríntios 9:20-21, que embora não esteja mais debaixo da Lei, não está sem Lei diante de Deus, mas debaixo da Lei de Cristo. O mesmo termo (“Lei de Cristo) é usado em Gálatas 6:2. O que significava?

Jesus, quando perguntado qual era o maior mandamento da Torá, mencionou dois como se fossem um só: amar a Deus sobre todas as coisas (citando Dt 6:4) e ao próximo como a nós mesmos (citando Lv 19:18). E concluiu que os dois preceitos são a base da Torá e dos Profetas (Mt 22:34-40; Mc 12:28-31). Quando anunciou um novo mandamento aos discípulos, apenas intensificou o preceito do amor ao próximo, colocando como padrão não mais apenas o amor próprio, mas o amor de Cristo por nós (Jo 13:34-35). Longe de ser uma anulação da Lei, isso era a interpretação correta. Era a Torá em sua essência, a Torá interpretada pelo (e cumprida no) próprio criador dela: o Messias. Essa era a Lei de Cristo.

Ora, se por um lado, o apóstolo entendia que estar debaixo da Lei era não tê-la dentro de nós e, portanto, estar debaixo de sua condenação; da pungente tentação da tradição e do legalismo; da sua ineficácia para salvar e santificar o transgressor; de seu contexto sem Jesus Cristo e o Espírito Santo; por outro lado, o apóstolo poderia utilizar a imagem da Lei sobre nós em um sentido positivo quando ela era interpretada por e cumprida em Jesus Cristo. Neste caso, sendo Jesus o centro, a Torá sobre nós também está em nós; e ser escravo ela é ser escravo de Cristo. Até o “estar debaixo da Lei” muda seu sentido se Cristo for o centro. O problema todo, portanto, é Jesus Cristo não estar em seu lugar de primazia.

Durante todo o AT, os profetas reconheceram que a Torá é boa, protestam contra o seu abandono, estimulam o povo a retornar a ela e seus mandamentos (Dt 10:12-16; 30:1-11, 31:11-12; Js 22:5, 23:6; Sl 1:2, 19:7, 78:10, 89:30-37, 119:1-4; Ec 12:13-14; Is 8:20; Jr 26:1-6; Dn 9:11-13; Os 4:6, 8:1; Am 2:4; Mq 4:2; Zc 7:12; Ml 4:4; Ed 7:10). Quando Jesus vem, faz como todos os profetas: estimula o cumprimento da Torá (Mt 5:17-20, 15:3-6, Mt 19:18-19; Mc 10:19; Lc 18:20; Jo 14:15 e 21, 15:10). Depois, seus apóstolos fazem a mesma coisa (I Jo 3:22-24 e 5:1-5 e II Jo 1:5-6; Rm 2:17-24, 7:12, 13:8-10; Gl 5:14-23; Ef 6:1-3; I Co 6:9-10; Tg 2:8-11). E Jesus termina as Escrituras dizendo, em Apocalipse, que seus verdadeiros servos são aqueles que guardam os mandamentos de Deus e a fé em Jesus (Ap 12:17 e 14:12). Então, é óbvio que a Lei não é um problema para os autores bíblicos e Jesus Cristo.

Mesmo com toda a dificuldade do contexto da antiga aliança, quando o Espírito Santo não habitava dentro do homem, mas apenas no meio do povo (Jo 14:16-17); quando a redenção em Cristo era apenas uma promessa (Hb 11:39-40); ainda assim Yahweh foi longânimo e compreensível, não deixando o homem sozinho. E por Deus estender a sua mão, muitos homens da antiga aliança foram justos (dentro da limitação humana) diante de Deus. De que forma? Andando com Ele (Gn 5:22-24, 6:9, 7:1; Jó 1:1-8; Ez 14:14-20; Hb 11). Por andarem com Deus, encontraram forças para guardar os mandamentos dEle, ainda que com dificuldades, limitações e falhas. Não foram salvos por isso, mas pela fé que tinham em Deus e na sua provisão. Essa fé viva lhes gerava boas obras. Ora, se eles conseguiram, com toda a dificuldade, temos nós, na nova aliança, muito mais condição de cumprir a Lei. Foi para isso, no fim das contas, que Cristo nos salvou (Ef 2:8-10).

Por Davi Caldas

Fonte: Reação Adventista

Sobre Weleson Fernandes

Escritor & Evangelista da União Central Brasileira

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