A visão do Estado enxuto e do socialismo por um pioneiro adventista

Allonzo Trevier Jones, um dos pioneiros adventistas responsáveis pelo fortalecimento da mensagem de justificação pela fé em Cristo, a partir de 1888, foi também um escritor que tocou em temas importantes referentes à liberdade religiosa e direitos civis. Em um artigo escrito na The Sign of the Times, em 1904, Jones analisa vários tipos de governo ao longo da história. Há um trecho muito interessante em que A. T. Jones destaca (1) a importância de um Estado enxuto, descentralizado, limitado, recorrendo à formação dos EUA como exemplo; e (2) faz alguns apontamentos sobre o socialismo e o chamado socialismo cristão. Reproduzimos o trecho abaixo, traduzido, com os subtítulos do texto original:

“Uma Nova Ordem das Coisas

[…] quando a nação americana surgiu, reis e todos os princípios da realeza foram totalmente repudiados; a liberdade, o direito e a capacidade do povo de se governar foram novamente afirmados. E quando o governo do povo foi formalmente estabelecido na adoção da Constituição dos Estados Unidos, foi em repúdio não apenas aos reis e a todos os princípios da realeza, mas também aos papas e a todos os princípios do papado. O Estado foi estabelecido como um governo de pessoas autogovernamentais; um governo do povo, pelo povo e para o povo. Era um governo assim, separado e mantido pela Constituição totalmente à parte da igreja, ou de qualquer conexão com a igreja, ou qualquer reconhecimento da igreja, ou mesmo da religião em abstrato.

As igrejas ficaram perfeitamente livres para seguir seu próprio caminho; organizar e governar a si mesmos, e conduzir seus próprios assuntos segundo suas próprias escolhas. O Estado mantinha para si o princípio da total separação de qualquer Igreja ou religião, e sobre esse princípio conduziria todos os assuntos do Estado. Esses dois corpos, a Igreja e o Estado, obedecendo ao princípio natural e essencial em reinos totalmente distintos, ocuparam cada um de seus domínios distintivos. E assim nesta nação nova e final, o sistema da igreja era uma igreja sem papa, e o sistema de Estado era o Estado sem um rei; a Igreja e o Estado, cada um independentemente do outro, e cada um totalmente separado do outro.

Esta era de fato ‘uma nova ordem de coisas’, e era igualmente a ordem correta e divina das coisas. E aqueles que o estabeleceram assim o fizeram inteiramente em respeito a esta ordem divina, como ao governo da igreja na terra. Eles o faziam em respeito inteiramente aos princípios do ‘Santo Autor de nossa religião’ e ‘aos princípios sobre os quais o Evangelho foi propagado pela primeira vez, e a reforma fez prosseguir’. E assim estabeleceram essa nova nação sobre princípios corretos para o Estado, que deve ser uma luz e um guia para todas as nações no caminho da liberdade individual e do governo livre e feliz; e também sobre os princípios corretos para a Igreja, deixando-a livre em seu próprio reino para unir-se apenas ao seu verdadeiro Senhor, a Ele somente como seu verdadeiro guia e cabeça, sendo assim realmente a luz do mundo.

Assim, finalmente, foi alcançada a forma perfeita [palavra exagerada usada por Jones, mas não inviabiliza o argumento] de governo terrestre. E tudo o que era necessário para que esta nação liderasse para sempre o mundo era que as pessoas que a compunham deveriam se manter na prática, em estrita obediência aos princípios sobre os quais a nação foi fundada. E enquanto isso foi feito, esta nação era distintamente a nação líder do mundo; isto é, a nação estava verdadeiramente guiando o mundo em direção a princípios corretos, longe da influência corrupta e corruptora do papado. Mas nos últimos anos, esses princípios não foram cumpridos nem pela Igreja nem pelo Estado nesta nação. As igrejas, combinando sua força e influência, procuraram unir-se ao Estado; e em violação direta dos princípios fundamentais da Reforma e do Cristianismo, buscou ‘pela força entrar no ofício de outro’, transferir o governo mundano e ‘prescrever leis ao magistrado que tocasse no formato do Estado’.

De outro lado, o povo do Estado não tem sido fiel aos princípios do Estado nos Estados Unidos. O princípio fundamental do Estado nesse sistema é o governo do povo – autogoverno –, o qual deriva seus poderes justos do consentimento dos governados. As pessoas não continuaram a governar a si mesmas; e os governantes repudiaram o governo com o consentimento dos governados, adotando o governo com o consentimento de ‘alguns dos governados’, que, em princípio, é meramente o governo de poucos, e na lógica e na prática, atualmente, o governo por um, ou um poder de um homem.

E com os princípios fundamentais e a prática original desta nação abandonada por parte da Igreja e do Estado, é literalmente impossível que possa haver qualquer outro resultado que não seja a repetição da história daquele outro governo degenerado do povo [Roma] que desenvolveu o poder de um homem no estado romano; e aquela outra igreja apóstata que desenvolveu o poder de um homem só na igreja, dominando o mundo. E hoje em dia esta nação foi tão longe nesta direção, e o curso inevitável é tão claramente definido, que tudo o que alguém precisa fazer para entender mesmo o assunto, em detalhes, é meramente conhecer a história daquele governo romano degenerado e daquela igreja apóstata, os quais ganharam vida e supremacia a partir da ruína de um governo que se desfez.

Sem autonomia

Hoje, nos Estados Unidos, as pessoas não são autônomas. Eles não se governam na vida privada ou pública. A intemperança, a ausência de autogoverno na vida individual, possui e controla a maioria absoluta do povo dos Estados Unidos, e está constantemente aumentando a um nível assustador. Também nos negócios ou na vida comercial do povo dos Estados Unidos, as pessoas não se governam. Elas são absolutamente governadas pelos trusts [grandes grupos empresariais que monopolizam mercados], sindicatos ou por ambos. No campo do trabalho e emprego, as pessoas dos Estados Unidos também não mais se governam. Elas são quase totalmente governadas quanto ao seu emprego, seus salários e suas próprias compras e vendas por sindicato. Na vida política, o povo dos Estados Unidos não se governa e o governo não é do povo. As pessoas são governadas pelo ‘partido’ e ‘a máquina’, e estas, por sua vez, são controladas pelos ‘chefes’ políticos.

A história se repete

Aqui está a mesma velha luta desesperada entre capital e trabalho; aqui também está o mesmo anseio por apoio governamental, que, sob qualquer pretexto, é meramente socialismo. E, de fato, aqui é defendido como socialismo de modo direto e por nome. E assim como a defesa do apoio governamental significa apenas o socialismo, também a defesa ou o socialismo significa apenas anarquia. Em alguns casos, aqui é defendido sob o título salvo-conduto de ‘socialismo cristão’. E na defesa de todas as suas fases, as palavras de Cristo são prontamente apreendidas e entusiasticamente citadas como uma expressão dos princípios do socialismo.

Há, no entanto, uma série de considerações sérias que impedem totalmente que esse socialismo de algum modo seja cristianismo. A primeira é que as palavras e princípios de Cristo são absolutamente insignificantes nas bocas, nos planos ou nos dispositivos daqueles que não creem em Jesus; e mesmo havendo alguns crentes em Jesus que estão erroneamente advogando o socialismo, ainda assim, a esmagadora massa daqueles que defendem o socialismo são os que não têm consideração pela verdade, ou a fé, ou os princípios de Cristo. E este fato, por si só, nega completamente toda a possibilidade de que qualquer virtude advenha para o socialismo das palavras ou princípios de Jesus, embora sejam citadas e defendidas em todos os discursos e em todas as páginas. O defeito não está nas palavras ou nos princípios de Jesus; o defeito está nas pessoas que citam estas palavras e princípios e as bradam por um propósito errado.

É a mesma velha história do Sinai: ali Deus deu Suas próprias verdades divinas em palavras ditas diretamente do céu. As pessoas os adotaram e declararam que: ‘Tudo o que o Senhor tem falado faremos e obedeceremos’. Mas o povo os adotou de maneira errada e para propósitos errados:

‘Portanto, encontrando defeitos, disse: Eis que vêm os dias, diz o Senhor, quando eu fizer uma nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá; não conforme o pacto que fiz com seus pais, no dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito, que quebrantaram o meu pacto’ (Hebreus 8:8-9; Jeremias 31:31-32).

A culpa não foi da parte do Senhor, nem foi nas palavras ou nos princípios anunciados na aliança de sua parte; a culpa estava no povo. […] Eles falharam, como todos os outros devem falhar, quando tentam usar os princípios divinos sem a suprema orientação e controle do Espírito divino através da fé divina e permanente de Cristo Jesus, o Salvador e Santificador da alma. Eles falharam, como todos os outros devem falhar, quando tentam usar os princípios divinos para propósitos mundanos ou egoístas, para quaisquer outros propósitos que não sejam divinos, que não estejam de acordo com a vontade divina, sob a suprema orientação e controle do Espírito Divino.

É verdade que as pessoas da igreja primitiva traziam seus pertences, os depositavam em um fundo comum e ‘tinham todas as coisas em comum’. E isso é citado pelos defensores do socialismo como o verdadeiro exemplo e garantia de que o socialismo é a ordem genuína de governo e sociedade na terra. Mas nesta dedução em favor do socialismo, os elementos mais importantes, na verdade os elementos estritamente vitais, são todos deixados de fora. É verdade que naquela época a igreja tinha todas as coisas em comum e ninguém dizia que algo era só seu. Mas essa era a Igreja, não o Estado, nem a sociedade como tal; e era a Igreja imediatamente após o Pentecostes, quando ‘todos estavam cheios do Espírito Santo’. E nem todos os que citam isso na defesa do socialismo são assim cheios do Espírito Santo.

Outro item nessa ação da igreja primitiva é que a questão de ter todas as coisas em comum era completa e absolutamente voluntária por parte de todos os que nela estavam. Enquanto no socialismo proposto, pretende-se conduzir uma campanha política, obter votação majoritária e então ter essa maioria [mais precisamente, os representantes da maioria, como o próprio Jones notou anteriormente] obrigando à força todos a terem tudo em comum. Mas a coisa nunca pode ser realizada pela força, nem por qualquer esquema político ou qualquer outro plano mundano.

Outro elemento vital, que neste socialismo é ignorado, é que o Espírito Santo reinou tão completamente lá que aqueles que eram os líderes tinham, por aquele Espírito divino, a faculdade de detectar os que usariam o sistema para propósitos meramente egoístas, ao passo que, no sistema socialista, como agora defendido pelos Estados Unidos, esse poder é totalmente inexistente. E sem esse elemento, todo esquema de ter todas as coisas comuns certamente falhará, pois é evidente que nunca se poderá dar garantias perfeitas de que entre esses defensores do socialismo não existam, e jamais existirão, nenhum agindo pelos motivos que caracterizados em Ananias e Safira.

Esses itens demonstram que nenhum sistema de todas as coisas comuns, seja distinto do socialismo ou não, seja na igreja ou no mundo, pode ser verdadeiro ou bem sucedido, se todos os que o compõem não entrarem individualmente, por livre escolha; se todos os que o compõem não estiverem inteiramente livres do egoísmo; se cada um não estiver cheio do Espírito Santo, como consequência de ter fé pessoal em Jesus Cristo como Salvador do pecado; se todos não estiverem absolutamente sujeitos ao controle e orientação do Espírito Santo; se o Espírito Santo não presidir em um grau absoluto para proteger a comunidade de todo egoísmo e hipocrisia.

Não obstante, não há dúvida que esse equivocado sistema do socialismo continuará a ser defendido; e será até defendido como socialismo ‘cristão’. Também é difícil duvidar que, pelo menos até certo ponto, o esquema seja efetivado em assuntos governamentais. Mas, seja qual for o grau em que a coisa será efetivada, ela se mostrará apenas um elemento de muitos na aceleração da anarquia [“caos social” é, provavelmente, a ideia que o autor tinha em mente], que é a única lógica da proposição socialista desde o início.

O governo do povo, tanto na vida individual quanto na vida pública, está tão distante que, em todas as fases da vida pública, o governo é de poucos. A disputa entre capital e trabalho chegou ao ponto em que é, na verdade, uma disputa quanto a quem controlará a máquina governamental formal em detrimento da outro. O desenvolvimento dessa disputa é tão certo como a continuação do dia e da noite. E à medida que se desenvolver, a confusão e a incerteza crescerão e os expedientes do governo certamente terão de ser usados ​​como meio de equilibrar questões e preservar a ordem. E, no ritmo que as coisas têm acontecido ultimamente, será muito em breve”.

Fonte: “The Sign of the Times”, Vol. 29, March 16, 1904, p.44-45. Disponível em:

https://m.egwwritings.org/en/book/1221.323#323

Traduzido por Davi Caldas

Fonte: Reação Adventista

Sobre Weleson Fernandes

Escritor & Evangelista da União Central Brasileira

Verifique também

Voltando para casa

Deus criou um dia para si (Sábado), a fim de ser lembrado como Criador e …

Resgatar laços com judeus e a fé judaica: fogo estranho?

Recentemente postei um texto intitulado “Voltando para casa”. No artigo eu cito uma série de …

Tréplica sobre a questão dos alimentos puros e impuros

O amigo e irmão (em Cristo) Raphael Meza gentilmente leu meu texto “Por que a …

Deixe uma resposta

×

Sejam Bem Vindos!

Sejam bem Vindo ao Portal Weleson Fernandes !  Deixe um recado, assim que possível irei retornar

×